De atleta olímpica a servente de obras: "Sofri abusos no taekwondo"
Resumo da notícia
- A atleta do taekwondo Julia Vasconcelos disputou a Olimpíada do Rio 2016
- Depois de abusos psicológicos do técnico, ela decidiu abandonar o esporte
- Se mudou para os Estados Unidos onde trabalha como servente de obras e professora de luta
- Julia teve dois episódios de depressão e vários de bulimia durante a carreira
- Após a perda do pai, ela quer ficar mais perto da família. Para isso, pretende voltar ao Brasil em quatro anos
Julia Vasconcelos defendeu o Brasil pelo taekwondo nos Jogos Olímpicos de 2016. A lutadora de São José dos Campos foi a única de sua equipe a fazer parte da equipe brasileira, mas os custos da realização do sonho, para ela, não valeram a pena: a jovem de 27 anos alega ter sofrido abusos psicológicos e assédio moral por parte do treinador desde a infância.
Julia se mudou para Nova Jersey em 2018, largou as competições e, hoje, come o que tem vontade. Trabalha em dois empregos, que tomam 15 horas do dia dela: é servente de obra pela manhã e professora de taekwondo à noite. Nas poucas horas que restam, ela dorme. "Sou constantemente cansada, mas não tem outro jeito. Uma hora o corpo acostuma", diz.
A decisão de largar a mãe, a ex-noiva e o esporte foi tomada num repente, na virada do ano. Como ela já tinha o visto de atleta, precisou de apenas dois meses para vender o carro, os móveis e entregar o apartamento em que morava. Julia teve depressão em dois momentos da vida, sendo o último, pouco antes de se mudar, o mais severo. "Passei por uma cirurgia, coloquei cinco parafusos na mão e quando encontrava meu mestre, ele só falava sobre meu peso".
Da equipe, com quem ela passava mais tempo, afirma não ter tido qualquer apoio. Do treinador, nem uma palavra. "Tentei procurá-lo porque precisava de ajuda, eu estava com depressão. Um funcionário da Liga [Valeparaibana de Artes Marciais] tentou contato com ele nesse dia e ele falou que só era para eu procurá-lo quando ele me ligasse. Me senti muito sozinha. Por sorte, minha mãe e minha família ficaram ao meu lado".
Cobranças indevidas e punição a quem não apoiasse políticos
Ali foi o fim de uma situação recorrente desde os seis anos de idade de Julia, quando começou a treinar. "Eu sempre vi coisas erradas acontecendo ali. A última delas foi meu ex-técnico pedir uma porcentagem do meu salário. Eu não concordava com isso e não tinha espaço para falar sobre. A associação alegava que essa parte do salário era guardada para ajudar atletas que não tivessem dinheiro para competir. Mas eu sabia muito bem que não era esse o destino do dinheiro".
"Em 2016, época de Olimpíada e de eleições municipais, minha mãe se candidatou a vereadora em São José dos Campos. Eu não pude apoiá-la. Sabe por quê? Tinha um vereador que apoiava a equipe, a gente viajava com dinheiro da emenda dele. Só que, em troca, a gente tinha que explicitamente apoiá-lo. Queria apoiar minha mãe e não deixaram. Ouvi que se eu não apoiasse o vereador, teria de cair fora".
Segundo Julia, sempre houve ganho de dinheiro em cima dos atletas. "O preço do ônibus que nos levava às competições era R$ 30 e meu treinador cobrava R$ 60 da gente. A camiseta da equipe, que era um direito dos atletas, era vendida por ele. Se a gente negasse contribuir com essa grana, nós recebíamos punições: éramos proibidos de participar das competições, por exemplo. Chegou uma hora que não deu mais para mim".
A última competição da qual Julia participou antes de ter de operar a mão foi o mundial da Coreia em 2017. Ela conta que, além de todos os abusos psicológicos do técnico, ele também tentou demovê-la da ideia de operar —mesmo com todos os médicos recomendando a cirurgia. "Quando voltei, ele ficou fazendo graça, dizendo que eu precisava perder peso, que era indisciplinada. E aí comecei a ficar deprimida. O treino, que era meu melhor momento do dia, deixou de me dar prazer".
Compulsão alimentar e bulimia
Julia foi titular da seleção brasileira por quatro anos e nunca reprovou em uma pesagem. Ela competia pela categoria de até 58 quilos, mesmo medindo 1,75 m. A magreza exigida dentro da categoria teve altos custos: Julia desenvolveu bulimia durante a adolescência. "Quando faltavam cinco ou seis dias para a competição, eu ia ao shopping, comia o que tinha vontade e, quando chegava em casa, colocava tudo para fora", conta. "Às vezes, eu pegava o carro de madrugada e ia ao supermercado só para ver comida: passava a noite olhando para as barras de chocolate e pizzas".
"Quando eu viajava para competir, comprava quilos de chocolate e bolos. Depois da pesagem, me acabava de comer. Me pesava todos os dias, todos. Quando ia chegando perto da competição, eu apertava a dieta. Dias antes, eu sobrevivia com, mais ou menos, 600 calorias por dia —comia só uma clara de ovo e um pouquinho de frango desfiado", conta.
Para o dia da pesagem, quando faltavam ainda alguns gramas para que a atleta se encaixasse nos 57 quilos, ela desidratava "em saunas três vezes por dia" ou em banheiras com água quentíssima que, por pouco, não queimava a pele. A cada banho, Julia eliminava dois quilos. "Na Olimpíada, fiquei 20 horas sem tomar qualquer líquido".
Com a depressão, veio o medo do futuro. A atleta fez faculdade de nutrição, mas não concluiu o curso. "Eu sofria porque estava odiando treinar, só que tinha medo, pensava: 'Se eu não fizer isso, vou fazer o quê? Com o que vou trabalhar?'. Então, um amigo que mora nos Estados Unidos sugeriu que eu passasse um tempo aqui. E eu realmente precisava me afastar. Não tenho vergonha alguma de ser uma ex-atleta olímpica que hoje trabalha em obra", diz.
Julia está feliz com a vida nova, mas garante que a moradia nos Estados Unidos tem prazo de validade. "Quero voltar para o Brasil em, no máximo, quatro anos. Eu gosto daqui, tenho amigos, mas bate uma solidão às vezes e é bem difícil ficar longe da minha família. Meu pai morreu quando eu tinha 11 anos e foi ele quem me colocou no taekwondo. Preciso estar perto das pessoas que amo".
Nos poucos momentos de folga, o prazer de Julia deixou de ser o esporte. Agora, ela pega a moto, coloca uma música e viaja por 1h30 até a praia mais próxima. "Aqui me sinto livre. Nada paga essa liberdade."
Liga investigada pelo Ministério Público
Em agosto de 2018, o Ministério Público de São Paulo abriu um inquérito para investigar possíveis irregularidades nos repasses e nas prestações de contas entre a Prefeitura de São José dos Campos e a Liga Valeparaibana de Artes Marciais, pela qual Julia lutou.
A investigação faz parte de um inquérito que já apurava uma suposta cobrança de pedágio aos alunos. O valor arrecadado seria dividido entre vereadores. Procurado pela reportagem, o Ministério Público explica que o processo corre em segredo de Justiça mas que "estão sendo feitas análises técnicas de informações contábeis e financeiras referentes ao que foi denunciado e também ao que foi solicitado pela Promotoria às partes envolvidas. A investigação está em curso".
Outro lado
O advogado da Liga Valeparaibana de Artes Marciais Carlos Eduardo Rennó afirma "que [associação e técnico] jamais receberam qualquer tipo de vantagem ilícita ou praticaram qualquer ato em desfavor de seus atletas, equipe e/ou colaboradores. Ao contrário do que injustamente se tenta atribuir a eles, o que se vê dessa parceria é o brilhante trabalho realizado em prol ao esporte e a cultura na cidade de São José dos Campos, região do Vale do Paraíba e Litoral Norte".
"Trabalho que, dentre as diversas medalhas em competições e circuitos nacionais e internacionais, também possibilitou a classificação de jovens atletas do Vale do Paraíba e região para os Jogos Olímpicos, o que demonstra e ratifica a seriedade dos trabalhos realizados por ambos. As alegações feitas por essas pessoas más intencionadas têm o simples intuito de macular a imagem da Associação e do profissional do esporte, relacionando-os a supostas práticas as quais carecem de quaisquer provas".
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