Nos anos 30, Hélio Gracie foi membro do integralismo, o fascismo brasileiro
Hélio Gracie, um dos responsáveis por difundir o jiu-jitsu pelo Brasil, foi militante ativo da Ação Integralista Brasileira, um movimento de inspiração fascista muito popular na década de 1930. É o que revela uma pesquisa em andamento do historiador Leandro Pereira Gonçalves, da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG).
Debruçado sobre o integralismo há 20 anos, o pesquisador encontrou nas páginas do jornal "A Offensiva", o veículo porta-voz do integralismo, evidências da participação de um dos patriarcas da família Gracie no movimento.
Na capa da edição do dia 3 de junho de 1936, Gracie aparece vestido com a camisa verde com o símbolo da letra grega sigma, uma das marcas mais conhecidas do integralismo, doutrina fundada pelo paulista Plínio Salgado em 1932.
Segundo historiadores do fascismo, Plínio estava para os fascistas brasileiros assim como Benito Mussolini estava para os italianos e Adolf Hitler, para os alemães.
"Helio Gracie, o consagrado campeão patrício de jiu-jitsu, assignou sábado, em nossa redacção, o respectivo contracto com a Empreza Pugilistica Brasileira para a realização da esperada peleja com o valoroso instructor da Liga de Sports da Marinha, Takeo Yano", diz o texto de "A Offensiva", com a grafia da época.
Inspirado em movimentos extremistas da Europa, como o fascismo italiano de Mussolini e o nazismo de Hitler, o integralismo brasileiro defendia um estado forte e a retomada de valores nacionalistas, religiosos e conservadores. Um de seus lemas era "Deus, pátria e família". Seus membros vestiam uniforme e se cumprimentavam com um dos braços erguidos sobre a cabeça e a palma da mão aberta, além da saudação de origem indígena "anauê".
Eles eram cristãos e ferrenhamente anticomunistas.
"Um amigo faixa preta de jiu-jitsu e historiador ouviu falar que o Hélio Gracie tinha uma simpatia com o integralismo. Fiquei curioso e fui atrás", afirma Leandro Pereira Gonçalves, que junto com o também historiador Odilon Caldeira Neto, lançou em julho o livro "O fascismo em camisas verdes: do Integralismo ao Neointegralismo" (FVG Editora).
"Folheei minha documentação e achei a informação. O Hélio Gracie foi um membro ativo e frequentava o núcleo de Ipanema. Ele foi referência no grupo, até porque nos anos 30 já era muito conhecido. A Ação Integralista Brasileira (AIB) valorizava a juventude, a agressividade e a virilidade masculina, e o esporte assumiu uma importância grande no integralismo e no fascismo como um todo."
Em uma tese de doutorado apresentada em 2012 à Universidade York, do Canadá, o historiador carioca José Tufy Cairus já havia apontado a ligação de Hélio Gracie com o integralismo, ao mostrar que ele chegou a ser fichado pelo regime Vargas como militante camisa verde (veja abaixo).
A pesquisa de Leandro Pereira Gonçalves dá um passo adiante ao revelar uma foto da lenda do jiu-jitsu no jornal oficial do partido.
Nas páginas de "A Offensiva", o pesquisador encontrou outras referências a Hélio Gracie, mas nenhuma tão significativa quanto a foto em que ele veste o uniforme do movimento. Para o historiador, isso significa uma adesão aos ideais e ao modo de vida pregado pelo integralismo.
"Quando a pessoa veste a camisa verde, ela está incorporando não apenas um partido político, mas um modo de vida. Você era integralista em todos os momentos de sua vida", conta o historiador. Na época, por exemplo, o movimento incentivava seus membros a consumir produtos próprios, como cigarros e talheres com o sigma. As camisas eram feitas apenas com matéria-prima nacional e produzidas no país. Os integralistas tinham rituais próprios de batismo, casamento e funeral, além de celebrações em datas comemorativas específicas.
O movimento buscou, inclusive, substituir a figura do Papai Noel, um símbolo do imperialismo norte-americano, pelo personagem do Vovô Índio, um simpático senhor vestido com penas de todas as cores. A ideia, obviamente, não foi para frente.
Hélio, junto com seu irmão Carlos, são considerados os pais fundadores do jiu-jitsu Gracie, mais tarde conhecido como jiu-jitsu brasileiro. O estilo de luta foi criado por eles ao aperfeiçoarem técnicas tradicionais japonesas, que Carlos aprendeu com um mestre que vivia no Brasil. Na segunda metade do século 20, o o novo jiu-jitsu se espalhou pelo mundo em academias lideradas por membros da família Gracie ou lutadores treinados por eles.
Nos anos 90, a arte marcial se tornaria base de outro esporte, o MMA.
"O fato de ele ser um lutador de uma arte marcial genuinamente brasileira tem uma relação com nacionalismo brasileiro pregado pelo integralismo", afirma Leandro.
A Ação Integralista Brasileira manteve suas atividades entre 1932 e 1937, época em que chegou a reunir centenas de milhares de filiados. Chegou a atrair nomes como o padre Dom Helder Câmara e o poeta Vinícius de Moraes, que mais tarde se identificariam com valores mais progressistas.
Quando a Ação Integralista Brasileira foi posta na ilegalidade, assim como todos os partidos políticos, com a ditadura do Estado Novo, de Getúlio Vargas, Plínio Salgado ainda tentou um golpe de estado. Mas a aventura fracassou e ele se exilou em Portugal.
Foi na perseguição estatal aos membros do grupo que o nome de Hélio Gracie acabou parando em um dossiê feito pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) de Vargas.
Com o fim da 2ª Guerra Mundial e a derrota do eixo liderado por potências fascistas, muitos integralistas passaram a fazer um discurso antifascista. Foi na época em que o mundo descobriu a extensão dos horrores praticados por Hitler na Alemanha.
O pesquisador não encontrou registros da participação de Hélio Gracie no movimento no pós-guerra. Em 1945, antigos militantes do integralismo fundaram o PRP (Partido de Representação Popular), herdeiro direto dos ideais de Plínio Salgado.
Apesar de ter sido um membro ativo na época áurea do partido nos anos 30, Gracie preteriu o PRP e se filiou ao PSD (Partido Social Democrático), o mesmo do presidente Juscelino Kubitschek.
Nas eleições de 1958, o lutador tentou vaga de deputado pelo Distrito Federal (que na época era a cidade do Rio de Janeiro). Fez uma campanha baseada em apresentações populares de jiu-jitsu. Imaginava que, por sua popularidade, seria facilmente eleito.
Mas ele conseguiu apenas 1.328 votos e não se elegeu. Para comparar, Carlos Lacerda, o deputado mais votado naquele pleito, teve cerca de 140 mil votos.
Reila Gracie, sobrinha de Hélio, que escreveu uma biografia do pai Carlos, já conhecia o vínculo do tio com o integralismo. Reila conta ter outra foto de Hélio com o uniforme integralista.
"A vinculação do tio Hélio ao integralismo foi mais por influência de um modismo da época de grupos mais conservadores que se identificavam com a valorização do nacionalismo exacerbado pregado pelo Plínio Salgado", afirmou. "E também porque ele simpatizava com o aspecto militarista dos integralistas. Por outro lado, na década de 50, ele se vinculou ao partido do Juscelino e depois da ditadura foi apoiar o Leonel Brizola no Rio, um político explicitamente de esquerda. No fundo havia uma grande ignorância política, e as avaliações e adesões dele eram muito circunstanciais. Não era um posicionamento estritamente ideológico."
Hélio Gracie morreu em janeiro de 2009, aos 95 anos.
Retorno no século 21
Após ter movimentado a política brasileira na primeira metade do século 20, os integralistas voltaram a chamar a atenção quase cem anos depois. Grupos como a Frente Integralista Brasileira (FIB), o Movimento Integralista e Linearista Brasileiro (MIL-B) e a Associação Cívico Cultural Arcy Lopes Estrella (Accale) reivindicam o legado de Plínio Salgado e se reúnem regularmente em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro.
Além de promoverem uma pauta conservadora e nacionalista, os neointegralistas também se engajam em ações violentas, de inspiração autoritária.
No Natal de 2019, a sede da produtora do canal Porta dos Fundos foi atacada com coquetéis molotov, na zona sul do Rio, depois de exibir um vídeo em que Jesus Cristo é retratado como homossexual. O ataque foi reivindicado pelo Comando de Insurgência Popular Nacionalista da Família Integralista Brasileira.
No vídeo em que assumem a autoria do atentado, os militantes encapuzados vestem a camisa verde, símbolo do movimento. Atrás deles há uma bandeira com o sigma.
Veja o que escreveu o historiador José Tufy Carius
"Dos três irmão Gracie que se tornaram fundamentais na criação do jiu-jitsu brasileiro, Carlos, George e Hélio, apenas o último mostrou apoio público ao integralismo. Ao analisar a filiação de Hélio a ideologias radicais, alguém pode ficar tentado a afirmar que ele estava apenas se colocando no meio de uma tendência política passageira, mas de algumas maneiras seu apoio à versão brasileira do fascismo era esperada. Além disso, o partido valorizava juventude, virilidade e agressividade masculina. A personalidade belicosa de Hélio e suas transgressões do passado faziam sua filiação aos 'camisas verdes' nada surpreendente."
Fonte: The Gracie Clan and the Making of Brazilian Jiu-Jitsu: National Identity, Culture and Performance, 1905 - 2003, de José Tufy Carius. York University.
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