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Técnico de Bate-Estaca a abrigou e ensinou da luta a comer de garfo e faca

Jéssica "Bate-Estaca" Andrade celebra ao lado de Gilliard "Paraná" após conquistar título do UFC - Buda Mendes/Zuffa LLC/Getty Images
Jéssica "Bate-Estaca" Andrade celebra ao lado de Gilliard "Paraná" após conquistar título do UFC Imagem: Buda Mendes/Zuffa LLC/Getty Images

Bruno Braz

Do UOL, no Rio de Janeiro

16/05/2019 11h00

"Família pra quem sabe ser". Quando o mestre Gilliard Paraná implementou este lema na "PRVT - Paraná Vale Tudo", sabia muito bem seu significado. Ao olhar emocionado sua aluna Jessica "Bate-Estaca" envolvida com o cinturão do UFC no último sábado, teve a certeza de que todo o esforço valeu a pena por alguém que considera uma filha.

Ainda dentro do octógono, recebeu uma homenagem da lutadora que jamais irá esquecer:

"Estou muito feliz, mas esse cinturão é desse cara aqui. Sem ele eu não teria chegado até aqui hoje".

Mas quem pensa que para chegar até ali foi fácil, se engana. Vamos por partes...

Um aficionado por lutas

Gilliard Paraná não encara o mundo da luta somente como profissão. Há muito amor envolvido. E o início deste romance começou mais precisamente em 1993, quando era lutador de capoeira. Em meados de 2000, aumentou seu leque de habilidades com muay thay e jiu jitsu e dali ingressou para o MMA na época em que o esporte estava bem longe do glamour atual.

Filho de pedreiro e faxineira, ganhou apoio da mãe

Jessica Bate-Estaca, Gilliard Paraná e Pola Vieira (mãe de Gilliard) dias antes da luta no UFC Rio - Instagram / Gilliard Paraná - Instagram / Gilliard Paraná
Jessica Bate-Estaca, Gilliard Paraná e Pola Vieira (mãe de Gilliard)
Imagem: Instagram / Gilliard Paraná

A vida foi dura para Gilliard, que por ter um nome de "desagrado" em seu meio social, foi rapidamente apelidado de "Paraná", seu local de origem.

Filho de um pedreiro e uma faxineira, se desdobrava entre as lutas e os bicos auxiliando seu pai nas obras em São Paulo ou como segurança particular para ajudar no orçamento do lar. Porém, mesmo em condições adversas, recebeu um inesperado apoio de sua mãe Pola:

"O que impressionou muito nessa hora é que ela falou: 'você acha que vai dar certo?' E eu respondi: 'acho que vai dar, sim'. E ela disse: 'se você tem certeza, dorme, descansa e deixa que a mãe trabalha".

Gilliard, então, passou a focar exclusivamente na carreira. Mesmo com todo aperto, chegando a muitas vezes se alimentar de comida vencida de um asilo próximo, decolou, tendo vencido suas seis primeiras lutas no 1º round por nocaute ou finalização.

Tatame na sala de casa

A grana, no entanto, seguia curta, e Paraná passou a dar aulas também. O inusitado nessa história é que a "academia" foi montada dentro de sua própria casa, mais uma vez com o respaldo de sua mãe.

"A sala tinha um tatame. Tinha que abrir a porta, tirar o tênis, passar pelo tatame para só depois adentrar o restante da casa", se recorda.

Academia era "zebra" e "saco de pancada"

Academia PRVT - Paraná Vale Tudo saiu de zembra para referência do MMA feminino no Brasil - Facebook / Gilliard Paraná - Facebook / Gilliard Paraná
Academia PRVT - Paraná Vale Tudo saiu de zembra para referência do MMA feminino no Brasil
Imagem: Facebook / Gilliard Paraná

A rotina de lutador em paralelo com a de professor pesou, o que fez com que conhecesse suas primeiras derrotas na carreira. Aos poucos, foi percebendo que conciliar os dois lados estava pesando, e decidiu por mergulhar de cabeça no projeto como treinador.

Assim como sempre em sua vida, enfrentou muitos obstáculos. Segundo Paraná, o meio das competições amadoras tem muita "panela", o que o obrigou a, muitas vezes, adotar uma "tática suicida" para obter prestígio entre os organizadores.

"Aos poucos comecei a ter muitos alunos, mas era muita panela nos eventos. Eu tinha que entrar com atletas menos graduados e mais fracos nas lutas para poder participar. Sempre entrava como zebra e a maioria das vezes eu perdia, mas aí fazia contato com os caras do evento, eles ficavam me devendo um favor, aí eu entrava de vez em quando com um ou outro e, com o tempo, esses caras passaram a me pedir de novo e eu botava uns caras mais graduados", disse.

A guinada com as meninas. Virou referência

Técnico Gilliard Paraná é mestre de Jessica "Bate-Estaca" Andrade desde o início da carreira da lutadora - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Imagem: Arquivo Pessoal

A guinada de Gilliard e sua academia PRVT se deu mesmo com as meninas. Na avaliação do treinador, a grande sacada foi entender o universo feminino e suas nuances.

"Vi que realmente meninas treinarem com meninos não era algo bom, podiam se machucar. Daí comecei a me adaptar e pensei: 'vou investir nisso e transformar a Jessica em campeã'. Comecei a trabalhar e entender essas coisas de TPM, humor... E nisso virei um especialista em treinar meninas. A partir daí começaram a vir muitas meninas e, como no começo não tinham muitas para lutar, sempre me ligavam pedindo lutadoras", explicou.

Faixa branca, Bate-Estaca nocauteou sua atleta top

O encontro entre Gilliard e Bate-Estaca, curiosamente, foi em lados opostos. O treinador, na ocasião, tinha uma aluna de destaque com duas vitórias seguidas no MMA e precisava de uma oponente para um torneio amador no Paraná, em 2011. Eis que surgiu Jessica, ainda uma faixa branca:

"Eu tinha uma menina despontando e falei naquela época: conhece uma menina para lutar com ela? E me responderam: 'tem uma do projeto social. É faixa branca, mas acho que ele (professor) coloca, é meio maluco'. Aí eu falei: 'Então coloca essa aí que vamos ganhar dela (risos)'. A nossa aluna entrou cheia de pompa. A Jessica começou fechando a guarda, depois começou a dar, parecia briga de bar, e aos poucos minha atleta foi sucumbindo (risos)".

Ensinou Bate-Estaca a comer de garfo e faca

Treinador Gilliard Paraná em momento de graduação de sua "filha" Jessica "Bate-Estaca" Andrade - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Gilliard Paraná em momento de graduação de sua "filha" Jessica "Bate-Estaca"
Imagem: Arquivo Pessoal

Pouco tempo após a luta, Gilliard se reuniu com a família de Jessica e pediu para que a lutadora se mudasse para o Rio, onde Paraná já tinha montado uma academia na Região Oceânica de Niterói. Bate-Estaca, no entanto, relutou, e acabou ficando na filial da PRVT em Umuarama - cidade natal de Jessica no interior paranaense - recebendo uma ajuda de custo.

"Ela não queria sair de Umuarama. Falei, então, para ela ficar na filial e aí ela ia ajudar também no dia a dia da academia limpando, fazendo essas coisas. Pedi para dar R$ 300 a ela. Depois de um tempo, o menino de lá me ligou e disse que ela não servia nem para limpar. Então liguei para a Jessica, disse que o menino não queria dar mais a ajuda mensal e que a proposta era vir para o Rio que aqui eu dava um jeito", se recorda.

O sentimento familiar que Gilliard nutre por Bate-Estaca é comovente. O treinador se recordou de momentos simples, mas que significaram muito na vida de ambos no início da trajetória.

"Quando eu a vi com o cinturão, era eu vendo minha filha. Ela está há sete anos comigo, mas parece que foram 20. Foi muito intenso. Eu que a ensinei a comer de garfo e faca, o primeiro Yakult que ela tomou foi comigo. Ela abriu a geladeira e perguntou o que era. O primeiro restaurante bom foi comigo, o primeiro Mcdonalds foi comigo, o primeiro carro que ela teve foi o meu... Ver uma filha realizando um sonho e ver minha mãe, que estava lá na Arena e que apostou em mim lá atrás, não tem preço", disse Gilliard emocionado.

Quem virou as costas agora o bajula

Gilliard Paraná e Jessica Bate-Estaca: relação de pai e filha - Facebook / Jessica Bate-Estaca - Facebook / Jessica Bate-Estaca
Imagem: Facebook / Jessica Bate-Estaca

De academia "saco de pancada", a PRVT agora tem prestígio e virou referência para o MMA feminino no Brasil. Com o título de Jessica, então, imediatamente pessoas que lá atrás deram as costas para Gilliard agora o bajulam:

"No mesmo dia já apareceram. Tem mensagens no meu Whataspp que são inacreditáveis. Gente que ressuscitou dos mortos, já tinha derretido no caixão. Caras que achavam que meu trabalho era uma porcaria e agora me procuram", disse Paraná para complementar: "era uma questão de honra chegar ao topo do mundo sozinho".

Comprou casa para fazer de alojamento à atletas

Hoje com a evolução da PRVT e o sucesso de Jessica Bate-Estaca, a academia consegue dar um melhor suporte e estrutura para seus atletas. Gilliard, por exemplo, comprou uma casa para servir de alojamento aos alunos mais necessitados. A regra por lá é a de dar lugar a outra pessoa assim que se consiga obter uma condição financeira melhor através do desempenho.

Paraná e Bate-Estaca também costumam fazer doações de cestas básicas sempre que podem.

O trabalho da PRVT segue a todo o vapor e Gilliard aponta quem, em sua opinião, será o próximo lutador da academia a despontar no UFC:

"Continuamos formando atletas. O próximo será o Vinicius Sorriso. Eu tirei ele do tráfico. Ele perdeu na estreia e está com 11 vitórias seguidas. Em breve vai estar no UFC, pode aguardar".

A favor do golpe bate-estaca

Bate-estaca aplicado por Jéssica em Rose Namajunas impressionou e levantou debate sobre legalidade do golpe - Buda Mendes/Zuffa LLC/Zuffa LLC via Getty Images - Buda Mendes/Zuffa LLC/Zuffa LLC via Getty Images
Imagem: Buda Mendes/Zuffa LLC/Zuffa LLC via Getty Images

O golpe que nocauteou Rose Namajunas e deu a vitória a Jessica impactou. Muita gente defendeu a bandeira de que ele deveria ser proibido no UFC. Gilliard Paraná, porém, é 100% a favor e considerou o artifício "lindo".

"Eu sou do tempo do Vale-Tudo. A maioria das minhas lutas valia pisão e 'tiro de meta'. Quando me chamavam para o MMA, só falava que tinha que valer 'tiro de meta'. Para mim foi a coisa mais linda do mundo o que ela (Jessica) fez. Se alguém me erguer e vejo que vai querer me enterrar, eu solto a posição e caio do jeito certo. Para mim foi uma infelicidade da Rose não imaginar isso", avaliou Gilliard para complementar: "Se o pessoal começar a ver wrestling, judô, sambo... vai ver aquela queda em um monte de evento. Aquela queda ali é linda".

Quer dar revanche para Namajunas

Jessica venceu Rose Namajunas com sua especialidade: o golpe bate-estaca - Leandro Bernardes/Ag. Fight - Leandro Bernardes/Ag. Fight
Imagem: Leandro Bernardes/Ag. Fight

Embora o UFC ainda não tenha se manifestado, tanto Jessica Bate-Estaca quanto Gilliard Paraná já têm preferência pela próxima adversária: a própria Rose Namajunas numa revanche, embora ela tenha dado a entender após a derrota que pode se aposentar precocemente.

"Gostaria de dar a revanche dela e fazer a luta na cidade dela (Milwaukee-EUA) para retribuir tudo o que ela fez por nós. E também para mostrar que não teve sorte e que a gente previa a vitória. Eu aposto numa nova vitória da Jessica, mesmo sabendo da qualidade da Rose", disse.