No dicionário inglês/português, "flow" é "fluxo, curto, corrente". Prefiro a tradução visual: o corpo leve, boiando na água, despreocupado e seguindo para onde a maré levar. Etiene Medeiros está assim. Não literalmente. Fora da água, a cabeça não para. Aos 31 anos, está pronta para fazer e acontecer. Mas, dentro dela, onde foi rainha, só quer saber de ser feliz. "Tive a fase dos 15 anos, dos 20 e poucos, dos 30 com diversas coisas, lesões, um doping positivo, Olimpíada em casa, outra lesão. Agora, tô numa fase de flow, de felicidade, em que você vibra pelos amigos, motiva, mas quer ser mais leve, feliz, quer ter a oportunidade de sorrir de novo", explica. Conversamos por uma hora, por telefone, na sexta-feira (31), quando ela foi apresentada como reforço do Instituto Etiene Medeiros. Vai atuar no dia a dia do projeto que leva seu nome, quer servir de inspiração para as cerca de 160 crianças atendidas, e passará a representar a entidade em competições oficiais. Comecei a entrevista perguntando se, do outro lado da linha, estava uma atleta ou uma ex-atleta. A resposta não respondeu o que eu queria saber. "Com uma atleta. [A aposentadoria] é uma coisa inevitável, vai ser inevitável para todos, mas ainda fala com uma atleta. Uma atleta que está, tipo assim, em outros ambientes, outra fase, mas ainda assim uma atleta." Insisti algumas vezes no tema. Queria entender se Etiene pretende continuar competindo a valer, no nível que nós, da imprensa, costumamos esperar de uma campeã e ex-recordista mundial. Descobri que, vencendo ou não, ela quer estar feliz. "Nos últimos três anos eu sofri demais. Minha mente judiou de mim e, mesmo assim, consegui performar. A natação sempre foi o primeiro plano, sempre vai ser e continua sendo, mas em um momento diferente. Se você pegar um vídeo do Pan de 2019, eu ganho a medalha [de ouro], o câmera foca em mim e eu dou um respiro como se dissesse 'graças a Deus'. E não! É uma medalha de ouro, eu tinha que estar feliz ali. A fase é diferente, a relação é diferente. Não deixa de lado, mas é mais tranquilo, é por livre e espontânea vontade, certa pelos próximos passos, pela decisão, por estar falando com outros atletas em busca de resultados, falar sobre processos com eles." Etiene dá dois exemplos. Diz que foi muito frustrante a performance em Tóquio, quando foi à Olimpíada machucada, mas que guarda ótimas recordações da experiência, principalmente pelas trocas com Teté, como chama a jovem Stephanie Balduccini, de 18 anos. Há duas semanas, teve um longo papo com Bia Dizotti, logo após ela bater o recorde brasileiro dos 1.500 m. A nadadora pernambucana diz que demorou a entender a necessidade de se envolver com políticas públicas de esporte, e este repórter demorou a entender que Etiene não daria a resposta que ele buscava na entrevista. Porque não só Etiene não tem essa resposta como também não a tem como prioridade. O flow é outro. "Agora a fase é de me mudar para Recife, estabelecer novos relacionamentos. Vou treinar com o técnico que meu treinou quando eu era pequena, que é o Antônio, vou competir com as meninas do Instituto, pelo Instituto. Hoje eu escolho perder meus miolos no Instituto." Tanto que, naquela noite, Etiene tinha planos de ir a uma reunião da Federação Aquática Pernambucana para discutir o futuro da natação do estado. No mês passado, participou de um encontro com da ONG Atletas pelo Brasil com a ministra Ana Moser, a quem trata como referência naquilo que hoje é seu foco: mudar o mundo, o país, a cidade, a partir de um projeto social. "Preciso saber o que é o Plano Nacional [do Desporto], como se movimenta o governo dentro do estado, como fazer rodar o instituto com Lei de Incentivo. Se a gente tivesse atletas mais informados, com mais suporte, toda essa resenha, a gente teria mais o legado olímpico que a gente fala. Eu estou buscando informação, correndo atrás de atletas que já passaram por isso. Tenho a Ana Moser como pilar, participei do Instituto dela, vi o que é", conta. (Falta de) reconhecimentoEtiene sofreu uma lesão de LCA (ligamento cruzado anterior do joelho) antes da Olimpíada, foi a Tóquio, e operou na volta ao Brasil. Ela contou ao Olhar Olímpico que, durante a recuperação, não recebeu nenhuma ligação de pessoas ligadas ao Comitê Olímpico do Brasil (COB) ou à Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos (CBDA). "Durante toda minha lesão não recebi uma ligação da confederação, que é uma confederação sustentada pelos atletas. Não recebi uma ligação do meu comitê olímpico. Se não fosse o Sesi, que tem responsabilidade humana com os atletas, não sei como seria", conta. "O que a gente precisa é que as pessoas sejam mais humanas. Escutem os atletas, estejam próximas à confederação. É inadmissível a melhor atleta do Brasil por anos não receber um telefonema porque estava machucada. E a gente já viu esse tipo de coisa, porque ainda converso com a Flavia Delaroli, Fabíola Molina, Joanna Maranhão. Naquela época eu via e era a mesma coisa. O tratamento precisa ser diferente, tem que ser diferente. Quem sai perdendo é a confederação, não somos nós. Eu estou bem resolvida, nadando, na minha casa, com pessoas qualificadas, do bem. Isso que importa." PUBLICIDADE | | |