Calor humano

Atletas transformam a frieza das Olimpíadas sem público em enxurrada de carinho e empatia

Felipe Pereira, Talyta Vespa e Denise Mirás Do UOL, em Tóquio e em São Paulo, e colaboração para o UOL, em São Paulo Elif Ozturk Ozgoncu/Anadolu Agency via Getty Images

Ausência do público e das famílias em estádios, ginásios e afins. O atleta pegando a medalha e colocando no próprio pescoço na cerimônia de pódio. O distanciamento e as máscaras escondendo a emoção. A organização das Olimpíadas estabeleceu protocolos sanitários tão rígidos para poder colocar os Jogos de Tóquio em pé no meio da pandemia de covid-19 que esfriaram o clima olímpico. Mas os competidores, vencedores e derrotados, trataram de mostrar que o evento é, acima de tudo, das pessoas. E com muito calor humano deixaram uma mensagem de esperança para o mundo.

Martine Grael e Kahena Kunze ganharam o ouro na vela e uma colocou a medalha na outra. O gesto foi repetido no pódio do futebol, com os jogadores da seleção homenageando os colegas ao lado. Na natação, a tão aguardada medalha olímpica de Bruno Fratus foi seguida de manifestação de amor: ele desceu do pódio e tascou um beijão de final de comédia romântica na treinadora e mulher Michelle Lenhardt.

Demonstrações de carinho foram vistas em delegações de vários países. Na Itália, por exemplo, Lamont Marcell Jacobs venceu os 100 metros rasos e abraçou meio mundo, incluindo jornalistas e o compatriota Gianmarco Tamberi, que ganhou a prova de salto em altura.

O querer estar junto faz parte da natureza do ser humano. O congraçamento entre os povos está nos princípios dos Jogos Olímpicos. Eles prevaleceram mesmo em época de crise sanitária. É contraditório, é questionável, mas faz sentido. O ser humano é uma espécie de hábitos coletivos, se reúne em tribos e clãs desde que fugia de feras na antiguidade.

Esse princípio humano de estar junto, de superar dificuldades, levou à construção de metrópoles como Tóquio. As Olimpíadas são a primeira tentativa de flexibilizar o distanciamento social. E também uma tentativa de reconciliar do ser humano com suas raízes.

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Amizade selada com ouro

Medalha de ouro dividida? Agora pode. E o italiano Gianmarco Tamberi correu alucinado pelo Estádio Olímpico para comemorar o ouro do salto em altura que conquistou com o qatari Mutaz Essa Barshim. Os dois chegaram aos 2,39 metros sem conseguir ultrapassar o sarrafo acima dessa marca. Ou continuavam tentando ou dividiam o lugar mais alto do pódio. Quando o italiano recebeu o "sim" do amigo pela divisão, explodiu em pulos de alegria. O saltador do Qatar sorria tímido ao ver a alegria descontrolada de Gianmarco.

Depois do ouro dividido, o italiano publicou uma "carta aberta ao amigo" e contou como foi consolado pelos rivais do salto em altura quando quebrou o tornozelo. A lesão o tirou dos Jogos Olímpicos do Rio-2016. Quando voltou a competir, em Ostrava-2017, Gianmarco disse que se sentia "como um bebê disputando com adultos". No meeting seguinte, em Paris, foi mal e se trancou no quarto.

Mutaz bateu à porta e insistiu: "Gimbo, quero falar com você". Gianmarco chorou e o amigo o acalmou, dizendo para não se apressar porque a lesão tinha sido extensa, mas ele logo estaria pronto. Para dar tempo ao tempo. Era o que precisava ouvir, disse Gianmarco.

O resultado foi mostrado ao mundo em Tóquio. E o destino quis que, entre todos os competidores que poderiam ter dividido o topo do pódio, foi justamente o amigo Mutaz quem subiu ao lado de Gianmarco para receber a medalha de ouro.

Reprodução/Twitter

Sky Brown nos braços do povo

A britânica Sky Brown conquistou o bronze e os brasileiros. A skatista de 13 anos saiu da prova de park com um bando de admiradores se candidatando a adotar aquela garota que esbanja carisma. Eles só não sabiam que a atleta já havia adotado o Brasil.

Durante as Olimpíadas, Sky Brown estava direto com a delegação do Brasil. Além de refeições e rolês com as brasileiras, ela colava no prédio do Time Brasil para fazerem as unhas juntas.

"Na Vila, a gente ia jantar junto, almoçava, andava de bike. Para lá e para cá, a Sky sempre estava no prédio do Brasil. É quase uma brasileira já", afirmou Dora Pacheco, skatista que disputou a final com Sky Brown.

Este clima de brothers no rolê é a cara do skate. Tanto que outra medalhista, a brasileira Rayssa Leal, prata no skate street, chorou ao saber que a amiga também ia ao pódio. Ela e Sky Brown são amigas e já andaram juntas de skate nos Estados Unidos. A proximidade de Sky com os brasileiros envolve até os negócios. A britânica é sócia de Leticia Bufoni em uma marca de shapes.

Gaspar Nóbrega/COB/Gaspar Nóbrega/COB Gaspar Nóbrega/COB/Gaspar Nóbrega/COB

A fraternidade do skate

O skate mostrou uma forma diferente de competir em alto nível. Os atletas se abraçam e vibram pelos competidores, vistos como companheiros de rolê, não inimigos. O discurso mais incisivo neste sentido foi de Pedro Barros, prata no skate park.

Essa medalha foi simplesmente um detalhe, um souvenir, essa experiência que a gente leva para a vida é muito maior e muito melhor do que qualquer objeto material. Essa medalha aqui não deixa de ser um objeto material.

O convívio entre os skatistas vai além dos campeonatos. Pedro Barros viu o australiano Keegan Palmer, 14 anos, levar o ouro. Os dois se conhecem de longa data, o brasileiro convidou o amigo a passar uma temporada com ele em Florianópolis quando Palmer tinha nove anos.

"Ele foi até lá com o pai, levou a prancha, surfou. Era sorriso no rosto todos os dias. Ele teve essa experiência única de amor, de harmonia, num evento com mais de metade da nossa comunidade. E todos estavam ali só celebrando e dividindo coisas boas."

Jonne Roriz/Jonne Roriz/COB

Empatia viraliza pelas redes

O desabafo de Darlan Romani ao fim da competição de arremesso do peso em Tóquio-2020 comoveu os brasileiros. Quarto colocado na categoria, contou como a pandemia complicou sua preparação. Desde o técnico Justo Navarro em Cuba, sem ter como sair e com dificuldades de comunicação, até ele mesmo com covid-19, precisando se isolar da mulher e parar com os treinos — emagrecendo dez quilos de seus 156kg para 1,88m, e perdendo massa muscular. Darlan também teve familiares com covid-19 e ainda passou por uma cirurgia.

Mas já ganhou a simpatia do público quando conseguiu vaga na final da prova, falando do aniversário da mulher, Sara, que devia estar "se acabando de chorar" e enviando "o nosso coraçãozinho" para a filha Alice. E recebeu ainda mais mensagens de apoio pelo quarto lugar após um vídeo de seu treino improvisado em terreno baldio ao lado de sua casa em Bragança Paulista (SP) viralizar nas redes sociais.

Com a mulher Sara falando em live que o marido não tinha condições adequadas de treinamento (depois rebatida pela Confederação Brasileira de Atletismo a CBAt), uma comoção se transformou em campanha para apoiar Darlan financeiramente.

Ninguém parou para perguntar se o atleta não tinha mesmo apoio e condições financeiras para seguir treinando para Paris-2024. E a "vaquinha" que o site Razões para Acreditar lançou, para arrecadar R$ 150 mil, já tinha batido, e muito, a meta faltando ainda 90 dias para se encerrar a campanha.

Miriam Jeske/COB

Gratidão eterna na canoagem

Isaquias Queiroz conquistou o ouro na categoria C1 1000m da canoagem velocidade nas Olimpíadas de Tóquio. O novo pódio olímpico foi o primeiro do canoísta brasileiro após a morte de seu ex-treinador, Jesús Morlán.

O técnico espanhol, que revolucionou a canoagem brasileira, fez de Isaquias o primeiro brasileiro a subir três vezes no pódio olímpico na Rio-2016 e, antes, o primeiro brasileiro campeão mundial da modalidade (em 2013). Foi para Jesús que Isaquias fez a promessa de que seria campeão olímpico. Em 2018, no Brasil, o espanhol foi diagnosticado com câncer no cérebro e, meses depois, não resistiu. Morreu em 11 de novembro de 2018, em Lagoa Santa, Minas Gerais.

Após o ouro, Isaquias e o Lauro de Souza Jr, técnico responsável por dar continuidade ao trabalho de Jesús, homenagearam o ex-treinador. Lauro usava uma camiseta que dizia "Suso Morlán, o ouro é seu". Isaquias lembrou o espanhol logo que deixou a canoa.

A gente veio com um objetivo: ganhar a medalha de ouro do Jesús. Eram duas, mas não conseguimos. A gente pôde realizar um sonho que ele tinha, que era ser um campeão olímpico.

Xavier Laine/Getty Images Xavier Laine/Getty Images

Todo amor para Simone Biles

Simone Biles foi a atleta que mais recebeu carinho em Tóquio. Cotada para ser o grande nome das Olimpíadas, ela saiu dos Jogos com apenas duas medalhas (uma prata e um bronze), mas com uma contribuição inestimável ao esporte. Ao desistir de disputar algumas finais na ginástica artística, Biles abriu a discussão sobre os cuidados com a saúde mental dos atletas.

O bloqueio que Biles sentiu em Tóquio revelou algo que muitos atletas passam e talvez não admitam nem para si mesmos. A brasileira Flávia Saraiva deu uma pista, uma pincelada apenas (e também talvez), do medo dos riscos do esporte e da pressão que um atleta pode sentir. Foi quando lembrou que "Biles tem voz para falar isso" e mencionou o apoio (que pode na verdade ser o peso) de COB, CBG, patrocinadores, país.

Flavinha falou da dor (física mesmo) que sente. E, com a voz tremendo, foi fundo: "Sei o que ela [Biles] passou, porque já aconteceu comigo". Contou que "não importa a idade, não importa o momento. É assim, do nada, vai mais além do mental, é uma coisa que não tem controle. Você sabe fazer o movimento, só que na hora te dá um branco. Ou então você está fazendo o movimento e na hora sua cabeça para. Isso vai mais além, é perigoso. A gente não pratica um esporte fácil. Tem risco e o risco não é bobo. É risco de vida, você pode se machucar, acabar com sua carreira que construiu durante anos".

Simone Biles é a grande estrela da ginástica artística mundial. Ao chegar no aeroporto, de volta para casa, foi ovacionada. A atleta recebeu apoio de colegas e fãs do mundo inteiro. A empatia, de todos os lados, deu força para que a americana se encorajasse a disputar, pelo menos, as finais na trave. E ela foi aplaudida de pé após conquistar a medalha de bronze.

REUTERS/Phil Noble REUTERS/Phil Noble
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