Italo disse amém

E o ouro olímpico do surfe chegou a Baía Formosa, cidade que transformou e foi transformada por Italo Ferreira

Júlia Flores De Baía Formosa, RN Marcia Costa/UOL

Ainda que o termômetro marque cerca de 30°C, não é o calor que toma conta de Baía Formosa, cidadezinha a 100 km de Natal, no Rio Grande do Norte. No vilarejo com pouco mais de 9 mil habitantes, o clima que prevalece é o de vitória. Pelas ruas estão espalhadas bandeirinhas do Brasil e mensagens de apoio com o slogan "Diz amém que o ouro vem", mantra de seu filho mais famoso, o surfista Italo Ferreira.

Foi de Baía Formosa que surgiu o primeiro campeão olímpico de surfe. Desde a vitória de Italo nas Olimpíadas de Tóquio, no dia 27 de julho, a cidade é a "onda" do momento, recebendo turistas e fãs do potiguar que, três dias após subir ao lugar mais alto do pódio, já estava em casa.

A cidade é pacífica. Além do som do mar, desde a quinta passada outro barulho interrompe o silêncio das ruas do vilarejo: alto-falantes anunciam a volta do "nosso campeão" à terra natal; ao fundo dá para ouvir o emblemático tema da vitória de Ayrton Senna.

Italo passa os dias isolados em sua casa, localizada à beira da praia Mar Aberto, na companhia de pai, mãe, irmã, cunhado, primos, tios, gatos, cachorros e amigos. Nos últimos cinco dias, deixou o lar poucas vezes. Saiu para surfar e ir a um culto evangélico. Também viajou a Maceió (AL) para se encontrar com o influencer Carlinhos Maia.

A reportagem do UOL acompanhou uma dessas sessões de surfe. Cercado de fãs que foram até o "secret point" de Baía Formosa só para encontrar o potiguar, Italo foi recebido com aplausos e gritos de "É campeão" na areia. Ele posou para fotos e cumprimentou todos aqueles que estavam no local, mas revelou que ainda não se acostumou com o assédio. "É estranho", disse, saindo do mar com a prancha.

Cristiano Sarmento/UOL Cristiano Sarmento/UOL

Feriado em Baía Formosa

A pesca, a colheita de cana e, agora, o turismo, são as principais fontes de renda de Baía Formosa. Com um litoral exuberante, o vilarejo é repleto de buggies, quadriciclos e guias turísticos. Desde que Italo venceu o Mundial de Surfe, em 2019, pousadas, restaurantes e bares vivem lotados. "Nosso projeto é transformar Baía Formosa na cidade temática do surfe", conta a prefeita Camila Melo (Republicanos), que aprovou na última semana o dia 27 de julho (data da vitória olímpica) como feriado municipal.

Mas não teve festa pela volta de Italo à terra natal. Qualquer evento que promova aglomeração está cancelado. Ainda que BF (como o vilarejo é conhecido) seja a cidade com mais vacinados do Rio Grande do Norte, Italo e sua equipe proibiram a realização de eventos públicos e carreatas.

Ele quer paz. Antes mesmo de o atleta partir para Tóquio, a equipe do surfista se reuniu com a família para passar orientações do que devia ser feito dali em diante. "A gente deixou ele quieto nas Olimpíadas. Só ia mensagem daqui pra lá. Se a gente precisasse de alguma coisa, passasse mal, nada ia chegar até ele, porque ele precisava estar concentrado. Só falei de verdade com Italo quando ele estava com a medalha na mão", conta o pai do surfista, Luiz Ferreira, o Seu Luiz.

Nem ele sabia direito quando Italo retornaria à cidade. A mãe, Dona Katiana, foi quem recepcionou o filho mais velho em sua volta. "A tia está ocupada fazendo a limpeza da casa, cuidando das coisas, fazendo comida para o Italo, é por isso que ela não pode te atender", disse o primo Hugo, quando a reportagem tentou falar com a mãe do campeão. Levou quase uma semana para que Katiana encontrasse um espaço na agenda para falar com o UOL.

É de se explicar: o campeão demanda atenção, principalmente quando o assunto é comida. A primeira frase dita por Italo ao chegar em casa foi: "Estou com fome". O pai conta melhor: "Agora ele está de dieta, porque precisa manter os 70 kg; parou de comer carne vermelha e vive de salada. Katiana está sem tempo, vive na cozinha".

Baía Formosa respira Italo

Marcia Costa/UOL

Seu Magal, o vizinho

"Tenho um restaurante na frente da casa em que Italo cresceu e por isso o conheço desde que era pequeno. Ele é simples demais; até hoje vem aqui no bar para tomar água de coco depois do surfe"

Marcia Costa/UOL

Tia Valquíria, da cocada

"Vendo cocadas a R$ 5 e R$ 10 pelas ruas de Baía Formosa. Passo o dia sob o sol para sustentar minha família. Sempre que o Ítalo me encontra, ele compra a caixa de isopor inteira"

Marcia Costa/UOL

Gê, do turismo

"Hoje a casa de Dona Mariquinha se transformou em uma atração da cidade, por isso, trago meus clientes aqui. Desde que o Italo foi campeão, senti um aumento de cerca de 80% no fluxo de turistas na cidade"

Histórias de pescador

"Acabei de fazer dois eletrocardiogramas e está tudo normal", brinca Seu Luiz ao ser questionado sobre "como anda o coração" desde que o filho venceu as Olimpíadas. Nem a máscara é capaz de esconder a felicidade no rosto do ex-pescador - orgulhoso, ele tem andado pela cidade com uma camisa verde e amarela com o nome de Ítalo.

Se Italo não está presente, é o pai quem conversa - e posa para fotos - com os fãs do surfista. Não por menos: Seu Luiz é peça fundamental na história do atleta. De origem pobre, era dele a tampa de isopor em que Italo aprendeu a surfar. "Eu era pescador e ele usava a tampa de isopor da minha caixa [de guardar peixe] para brincar no mar."

Quando o filho ganhou fama e dinheiro, ele o tirou dessa vida de pescador. "Antes eu acordava à 1h da manhã para trabalhar - não que eu não gostasse, afinal de contas, todo trabalho é digno... feio é seu filho pedir um pão e você não ter dinheiro para dar. Até hoje, se eu pesco um peixe, vou lá e vendo", conta, usando shorts e Havaianas, na varanda da casa em que Italo cresceu e onde recebeu a reportagem. Hoje, Seu Luiz se dedica a administrar os negócios da família.

A família Ferreira tem duas casas em Baía Formosa: a nova mansão do campeão, no topo da cidade, e um terraço que era da avó de Italo, Dona Mariquinha, no centro do vilarejo, em frente a uma pequena capela católica e a poucos metros do porto. A avó, se estivesse viva, ficaria orgulhosa do neto. Após ganhar a medalha, ele agradeceu aos prantos: "Queria que ela pudesse ter visto aonde eu cheguei".

Dona Mariquinha morreu em 2019, vítima de um AVC. "Ela era uma mulher especial. Bondosa e carinhosa. Como o Italo cresceu na casa dela, ela cuidava dele como ninguém", conta Hugo Costa, primo do surfista.

O lar em que o campeão cresceu virou uma pousada requisitada. Seu Luiz, junto com a mãe de Italo, Dona Katiana, e a irmã do campeão, Pollyana, são os responsáveis pela administração da "Pousada do Porto", que está fechada para obras desde que Italo anunciou a transformação da residência na sede do seu novo projeto social, voltado para o ensino do surfe a crianças e adolescentes.

"Nossa avó era aquela senhora que deixava de comer para que os outros pudessem se alimentar. Por isso, nada mais justo do que o Instituto ser lá", comenta Hugo. Além de Instituto, a casa de Dona Mariquinha se transformou em ponto turístico da região. Na frente do local, não é raro se esbarrar com turistas. Com sorte, eles também poderão encontrar o pai do campeão, seu Luiz, sentado na calçada ao lado de amigos.

Ele não foi lá para buscar o bronze, mas sim o ouro. O bom de Italo é isso: ele não desiste de nada. Eu sempre soube que ele ia longe. Só não imaginava que seria tão longe -- e tão rápido.

Seu Luiz, pai de Italo

Marcia Costa/UOL Marcia Costa/UOL

Menino de fé

Depois de derrotar o japonês Kanoa Igarashi na final das Olimpíadas, Italo deixou o mar de Tsurigasaki emocionado, com os olhos marejados e os dedos indicadores apontados para o céu. Nas unhas do campeão uma pintura com a palavra "fé" chamava atenção.

É de família a religiosidade do surfista. A avó Dona Mariquinha era uma católica devota, mas a filha Katiana se converteu à Igreja Universal e Italo seguiu os passos da mãe. Antes de embarcar para o Japão, o atleta recebeu Messias, pastor da congregação local, em sua mansão à beira-mar, para ganhar uma benção. Um dos únicos compromissos públicos de Italo desde que ele voltou à cidade foi participar da gravação de um "depoimento" com o bispo da igreja na manhã do último sábado (31).

"Sempre preguei e falei sobre a palavra de Deus para meu filho", conta Katiana, "ainda bem que ele me ouviu." Se a oração foi eficiente, não é possível responder, mas racionalmente é difícil de explicar como, mesmo depois de perder o passaporte, os equipamentos, e de ver sua prancha quebrar em plena final, Italo tenha se mantido calmo e concentrado para conquistar o ouro.

"Ele é um menino de fé, só tenho isso a dizer", comenta Arevaldo Delfino, o seu Magal, dono de um bar localizado na frente da casa em que Italo cresceu. Magal acompanhou a infância do atleta e, para ele, não há dúvidas de que houve um empurrãozinho místico na vitória do potiguar, que transformou a fé em slogan, "Diz amém que o ouro vem".

Italo é ligado à família até hoje. E vice-versa. Hugo diz: "Sempre que rola um campeonato, todos os primos se reúnem para assistir". Uma tradição familiar é revelada pelo parente do campeão. "Batizamos uma pedra de quartzo rosa de 'pedra mística'. Sempre que ele vai entrar na água, todo mundo passa a mão nela para desejar sorte e mandar energia para Italo", revela. Nas Olimpíadas de Tóquio, o ritual deu certo.

Rodolfo Buhrer/Reuters Rodolfo Buhrer/Reuters

Prancha paga com peixe

"Ele voltou para Baía Formosa porque é aqui que ele recarrega as energias. Treina, curte a família e os brothers", diz Buxexa, um dos melhores amigos de infância de Italo. Com uma lata de energético na mão, óculos estilo juliete no rosto e camisa preta com o logo do principal patrocinador do surfista, Buxexa - que se tornou fotógrafo do amigo - encontrou com a reportagem do UOL na frente da antiga casa de Italo.

No braço direito do fotógrafo, tatuagens com o rosto de Italo, o nome do modelo da prancha usada pelo campeão e o símbolo das Olimpíadas são as provas físicas de uma amizade que dura cerca de 10 anos. "Quem diria que um menino de Baía Formosa, no interior do Rio Grande do Norte, iria conquistar o mundo como ele conquistou? Eu sempre acreditei, mas muitas pessoas não. Por isso eu digo: 'Acreditem nos seus sonhos e acreditem nos sonhos de seus amigos'.".

Quando Italo começou a surfar, era Buxexa quem o acompanhava. O nativo de BF, que não pôde ir com o colega para Tóquio porque o Comitê Olímpico Internacional (COI) diminuiu ao máximo o número de pessoas envolvidas nas Olimpíadas, relembra momentos da infância:

Eu ficava lá, sentado no porto, vendo ele surfar. Até que um dia ele me deu uma câmera, modelo TEC Pix, para que eu o fotografasse. No começo, usava o braço de tripé. Lembro que eu estava lá numa das primeiras manobras que ele deu, mas estava olhando para o lado e não consegui registrar a cena. Ele ficou puto.

Nessa época Italo já não surfava com a tampa de isopor. Quando Seu Luiz reparou que o menino levava jeito para a coisa, investiu em um equipamento para a criança. Uma prancha de R$ 120, paga R$ 60 em dinheiro, R$ 60 em peixe. "No começo, ele precisava pedir dinheiro pelas pousadas e comércio para conseguir pagar as viagens e torneios. Depois que passou a vencer campeonato, ganhou patrocínio, e logo se mudou para o litoral de São Paulo. Aos 13 já estava viajando para o México, onde participou do primeiro torneio internacional", comenta o pai.

Rodolfo Buhrer/Reuters Rodolfo Buhrer/Reuters

Fuga dos estudos e namoro com a prancha

Se no mar Italo mostrava muita dedicação, na escola era bem diferente. "De estudar ele não gostava, fugia para surfar. Até hoje ele diz 'painho, se eu tivesse estudado, eu teria feito faculdade e estaria liso. Hoje em dia eu tenho meu dinheiro para comprar o que quero'", entrega Seu Luiz.

Gicele dos Santos foi professora do surfista na Universidade do Guri, escola de Baía Formosa, em duas séries distintas. "Eu dizia que ele era o menino mais cheiroso da turma, andava sempre engomadinho. Com 4 anos, ele dizia que já sabia ler... sabia nada".

Estudar não era o forte de Italo, como Gicele confirma. "Ele ia à escola de manhã e, depois que o sinal do intervalo tocava, ficava o tempo todo perguntando se a aula já tinha acabado, porque queria ir surfar", relembra a professora. "Ele sempre foi uma criança pacífica, tinha bastante energia, mas não gostava de brigar e era tímido com as meninas".

Se hoje Italo paquera até a ex-BBB Juliette publicamente nas redes sociais, antes não era assim. "Ele detestava quando chegava a época de festa junina porque precisava escolher um par para dançar". Mas foi na infância, e na escola, que Italo conheceu Geovana, primeira namorada "séria" do atleta.

O casal ficou junto por cerca de 5 anos, de 2013 a 2018, e chegou a noivar. A arquiteta Geovana é irmã de Camila, a prefeita de Baía Formosa. Depois de Geovana, Italo assumiu o relacionamento com a cantora Mariana Azevedo; o namoro durou pouco mais de dois anos e acabou em abril de 2021. Agora ele está solteiro.

Para Hugo, primo do surfista, na verdade, a namorada de Italo sempre foi a prancha. Buxexa confirma: "Ele é muito reservado, nunca gostou de sair por aí pegando todo mundo. O foco de Italo é outro: acordar cedo, ir surfar, ele não bebe, não usa nenhum tipo de droga, é um atleta exemplar".

E como ele se sente sendo o novo crush do Brasil? "Não sou crush de ninguém, eu sou surfista, isso sim", respondeu o atleta desviando os olhos castanhos para o lado, com a mesma vergonha que o aluno de Gicele teria ao ser convidado para dançar quadrilha.

Buxexa não entende o sucesso do amigo: "Acho Italo feio. Infelizmente a gente não consegue controlar o que acontece na internet". Mas Italo precisa se acostumar ao sucesso; de um dia para outro viu o número de seguidores disparar nas redes sociais. Depois do ouro, passou de 1,6 para quase 3 milhões de followers no Instagram.

Rodolfo Buhrer/Reuters Rodolfo Buhrer/Reuters

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