Canarinho olímpico

Ouro consolida o Brasil como maior potência olímpica do futebol e pode render frutos na Copa do Mundo

Gabriel Carneiro Do UOL, em São Paulo Clive Mason/Getty Images

A seleção cinco vezes campeã do mundo pode finalmente se considerar também uma potência no futebol masculino em Jogos Olímpicos. A medalha de ouro conquistada hoje (7) pelo Brasil sobre a poderosa Espanha no Estádio Internacional de Yokohama é a segunda seguida e aparece para espantar de vez os traumas relativos à competição que foram carregados ao longo de décadas.

Depois de 12 tentativas que renderam no máximo três pratas (2012, 1988 e 1984) e dois bronzes (2008, 1996), além de dois vexames quando nem conseguiu se classificar para as Olimpíadas (1992 e 2004), as conquistas na Rio-2016 e Tóquio-2020 isolam o Brasil como quem mais subiu no pódio na história da modalidade e com apenas um ouro atrás de Hungria e Grã-Bretanha.

Na soma das duas pratas femininas (2004 e 2008), passa a ser o país com mais medalhas no futebol na história dos Jogos. Que venha Paris-2024! O caminho do time masculino passa antes pela Copa do Mundo do Qatar, marcada para começar daqui um ano e três meses e que deve ter participantes desse título.

Se no Brasil foi Neymar quem conduziu a conquista do ouro inédito, o bi no Japão veio com o brilho do artilheiro Richarlison usando a mesma camisa 10 depois de ser desafiado pelo próprio amigo. A experiência de Renato Augusto foi encarnada por Daniel Alves e o comando silencioso de Rogério Micale repetiu o padrão com André Jardine. Mas há um último personagem que representa o tempo em que vivemos: o coordenador Branco, que sobreviveu à covid-19 após dias de intubação para voltar do Japão campeão mais uma vez.

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Polêmica pós-jogo

A CBF resolveu desafiar o Comitê Olímpico do Brasil (COB): a seleção masculina foi ao pódio para receber a medalha de ouro descumprindo uma determinação expressa de vestir o agasalho oficial da delegação, fornecido pela empresa chinesa Peak. Em vez disso, todos os jogadores usaram a camiseta do time, da Nike, com o agasalho amarrado na cintura. Isso pode gerar punição para o Time Brasil e dificuldades na renovação contratual.

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Melhor da história

Com o ouro do futebol, o Brasil alcançou sua melhor campanha olímpica na história, desde 1896. A delegação chegou a 19 medalhas no penúltimo dia no Japão, com sete ouros, quatro pratas e oito bronzes. No entanto, mais duas premiações estão garantidas. Amanhã (8), Beatriz Ferreira no boxe e a seleção feminina de vôlei disputarão as finais de suas modalidades, e serão no mínimo prata. Serão ao todo 21, duas a mais do que na Rio-2016.

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O Brasil desde Atenas-2004

  • Pequim-2008

    A seleção foi medalhista de bronze. Eliminada nas semifinais em uma derrota por 3 a 0 para a Argentina, repetiu o placar sobre a Bélgica na decisão do terceiro lugar. Técnico era Dunga e a principal referência em campo, Ronaldinho Gaúcho.

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  • Londres-2012

    A seleção foi medalhista de prata. Tirou Honduras e Coreia do Sul no mata-mata depois de vencer todos os jogos da primeira fase, mas perdeu por 2 a 1 para o México na final. Time de Mano Menezes tinha Thiago Silva, Hulk e Neymar.

    Imagem: Luis Acosta/AFP
  • Rio-2016

    A seleção, enfim, ganhou o ouro. Eliminou Colômbia e novamente Honduras no mata-mata sem sofrer gols e superou a Alemanha nos pênaltis depois de empate em 1 a 1. Rogério Micale era o técnico de Neymar, Gabriel Jesus e Gabigol.

    Imagem: Leonhard Foeger
  • Tóquio-2020

    O segundo ouro consecutivo veio com classificações diante de Egito e México no mata-mata e vitória por 2 a 1 na prorrogação sobre a Espanha com um gol marcado por Malcom. André Jardine conduziu a campanha.

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Herói improvável (e atrasado)

Autor do gol do título na vitória por 2 a 1 sobre a Espanha aos dois minutos do segundo tempo da prorrogação, o atacante Malcom foi reserva em toda a campanha e hoje só entrou no intervalo entre o tempo normal e o tempo extra para ficar na história.

Sua ida aos Jogos Olímpicos já foi atribulada. Seu time, o Zenit (Rússia) não aceitou liberá-lo de primeira para a disputa do torneio, um problema que a comissão técnica enfrentou com vários outros jogadores — o caso mais emblemático foi Pedro, do Flamengo, que viu até uma ação na Justiça impedir sua ida para o Japão.

Malcom e seu estafe fizeram pressão nos bastidores e o Zenit topou a liberação durante a fase de preparação da seleção na Sérvia, na vaga do lesionado Douglas Augusto. O atacante partiu direto para o Japão depois de um jogo pelo time russo e conseguiu ficar à disposição. O resto é história.

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Richarlison é a estrela dentro e fora de campo

A estrela de Richarlison começou a brilhar nos Jogos Olímpicos de Tóquio antes mesmo da estreia, quando fez três gols na Alemanha. Ainda a serviço da seleção principal na Copa América, ele conseguiu convencer o Everton (Inglaterra) a liberá-lo e aceitou um desafio proposto por Neymar para pedir ao técnico André Jardine a camisa 10 do time. "Tem que assumir a responsabilidade agora", disse o 10 campeão de 2016.

Richarlison assumiu. Virou referência para os companheiros mesmo com idade olímpica, foi um dos principais responsáveis pelo clima alegre dos bastidores e personagem até fora de campo, com vários momentos que viralizaram nas redes sociais, seja torcendo por atletas de outras modalidades, trocando provocações com argentinos, xavecando celebridades ou tocando samba.

"O Richarlison é um exemplo de jogador brasileiro que tem atributos muito fortes de comunicação contemporânea. Ele é um criador de tendência, que sabe se expressar com códigos de memes, que são bem recebidas pelo público jovem de rede social", diz o especialista em novos negócios do esporte Bruno Maia.

Em campo, o camisa 10 atuou como centroavante na formação tática que tinha o 4-3-3 como base, mas com liberdade para abrir pelo lado esquerdo e gerar tabelas no jogo de posse de bola. Deu certo. Sonhava com a artilharia histórica do torneio, mas faltaram três gols para igualar os oito de Bebeto pelo mau desempenho na reta final.

Destaques da campanha

Lucas Figueiredo/CBF

Guilherme Arana

Lateral-esquerdo teve atuações consistentes em toda a campanha, com assistência na estreia contra a Alemanha. Alinhado com os atacantes nos momentos em que o Brasil tinha posse de bola, contribuiu com chances de gol, movimentação e precisão nos passes. Já foi convocado uma vez por Tite e pode entrar no ciclo.

Lucas Figueiredo/CBF

Bruno Guimarães

Volante se destacou nas duas funções no setor. Foi um motorzinho, condutor de dinâmicas ofensivas com facilidade para bolas longas, duas assistências e saída de bola limpa. Na defesa agradou pelos desarmes e acertos em duelos pessoais. Talvez tenha sido o craque da campanha além de Richarlison.

Lucas Figueiredo/CBF

Matheus Cunha

Para além dos gols marcados contra Arábia Saudita, Egito e na final contra a Espanha, deu assistência, foi o jogador-chave para o sistema de jogo de André Jardine funcionar e fez falta durante o tratamento de lesão. Artilheiro do ciclo olímpico, já foi convocado por Tite e pode reeditar o entrosamento com Richarlison.

Merecemos esse titulo. Trabalhamos com muita humildade e pés no chão e todo o esforço foi recompensado. Meu próximo sonho, nunca escondi de ninguém, é disputar a Copa do Mundo. Vou trabalhar em cima disso. Professor Tite já me conhece e sei que ele sempre dá oportunidade para quem trabalha."

Guilherme Arana

Briguei bastante para poder estar aqui, coloquei até em contrato, é um sonho realizado. Estou muito feliz e agora é já pensar no próximo passo. Meu sonho era uma Olimpíada, uma Copa do Mundo e Champions League, o primeiro passo está dado. Tenho 23 anos e espero que possa conquistar todos."

Bruno Guimarães

Para chegar nesse ponto a gente sofre, mas depois tem um gostinho diferente. Estar na Seleção me fez abrir mão de muito. Eu troquei de clube para estar no Pré-olímpico. Perdi alguns gols no primeiro jogo e fiquei mexido, mas isso é secundário. Cada um tem o seu dia para que as coisas aconteçam."

Matheus Cunha

O que não deu certo

Lucas Figueiredo/CBF

Time previsível

O Brasil só fez oito gols em cinco jogos até a final. O México medalhista de bronze, por exemplo, foi o melhor ataque com 17 gols. Os números mostram que a seleção sofreu mais do que deveria por ter tido soluções pouco criativas para finalizar as jogadas. Com pontas que precisavam de muita dedicação tática e nem sempre atacavam com fôlego, faltou drible, inversão de jogo e velocidade. Controle e posse de bola não foram problemas, mas o torcedor queria mais e se irritou na final mesmo com dois gols pela demora nas substituições.

Lucas Figueiredo/CBF

Renovação da zaga

Thiago Silva jogará a Copa do Mundo do Qatar com 38 anos em seu último ciclo, o que gera debate sobre a reposição do setor na seleção principal. Diego Carlos é uma das principais esperanças, mas precisará mostrar mais do que mostrou no Japão para conseguir uma nova chance: ele errou movimentos em dois gols de bola aérea na campanha. Nino foi um pouco melhor, mas a dupla parece não ter dado liga com uma série de momentos de insegurança. Na final Diego Carlos se redimiu ao tirar uma bola em cima da linha.

Não tenho medo de perrengue e estou preparado para desafios. Vim aqui como um dos maiores acima de 24 anos e com uma responsabilidade muito grande. A partir do primeiro dia conversei com o treinador para ajudar os meninos e também para poder ser ajudado. A gente pode ter a idade que for, o título que for, mas a gente sempre aprende."

Diego Carlos, Zagueiro medalhista de ouro em Tóquio

Loic Venance/AFP

Um campeão discreto

André Jardine não é do tipo que rende manchetes. Multicampeão nas categorias de base e com apenas um trabalho no futebol profissional pelo São Paulo, comandou o ciclo para Tóquio-2020 com bons resultados em 23 jogos, mas sem dar muitas entrevistas ou chamar atenção para algo fora de campo. O tom de suas declarações é sóbrio e quase sempre só aspectos do jogo são assunto.

Não é difícil fazer a comparação com o perfil de Rogério Micale, que comandou a seleção na Rio-2016. Mas agora, Jardine terá o desafio de fazer uma carreira profissional com mais afirmação que a do antecessor, que em cinco anos desde o ouro treinou seis clubes e não emplacou.

Ainda não se sabe se Jardine seguirá para o futebol profissional imediatamente depois do ouro olímpico, mas trata-se de um desejo manifestado em diversas ocasiões e uma trajetória que ele já cumpria antes do convite para assumir primeiro a sub-20, em 2019. A CBF não quer perdê-lo até pela proximidade de Paris-2024, mas sabe que uma fase de tanta exposição é rara.

Jardine teve problemas para montar o elenco, mas durante a campanha as coisas foram calmas: só mudou o time duas vezes, por suspensão de Douglas Luiz e lesão de Matheus Cunha, e permitiu que o elenco se sentisse livre mesmo diante da forte rotina de jogos. O segredo do trabalho, dizem pessoas que acompanharam de perto, foi a quantidade de informação colhida e explorada por auxiliares e analistas para neutralizar adversários.

Lucas Figueiredo/CBF

Seleção principal de olho

O Brasil jamais conquistou uma medalha olímpica no futebol masculino sem que algum participante das campanhas fosse convocado para a Copa do Mundo de dois anos depois. É uma rotina. O auge foi entre 1988 (prata em Los Angeles) e 1990 (Mundial da Itália), com sete nomes iguais nas listas. Entre Rio-2016 e a Copa da Rússia, já sob o comando de Tite, foram cinco figurinhas repetidas.

Os números indicam e a realidade de desempenho recente da seleção principal mostra que é provável que alguns jogadores deste ciclo olímpico entrem com mais força no radar da comissão técnica. Do time titular, só três nunca foram chamados por Tite (Nino, Claudinho e Antony), mas a maioria teve poucas convocações ou minutos jogados (Santos, Diego Carlos, Arana, Bruno Guimarães e Matheus Cunha).

De trajetória sólida com a Amarelinha só mesmo Daniel Alves, Douglas Luiz e Richarlison.

A próxima convocação da seleção brasileira principal deve ser no intervalo entre dez dias e duas semanas, ainda em agosto. A Conmebol está para confirmar a realização de uma rodada tripla de Eliminatórias da Copa do Mundo do Qatar nos dias 2 (Chile, fora de casa), 6 (Argentina, como mandante) e 10 (Peru, como mandante). A equipe é líder disparada do torneio e algumas novidades são esperadas nesta lista. Ainda mais depois de um ouro olímpico.

Alexander Hassenstein/Getty Images

O auge mental de Daniel Alves

Estranho no ninho? Que nada! Aos 38 anos — o dobro da idade de Reinier, por exemplo —, Daniel Alves foi o capitão nas Olimpíadas para realizar dois planos pessoais: disputar um torneio em que nunca tinha estado para tentar o 42º título da carreira; e voltar ao radar da seleção brasileira principal com foco na Copa de 2022 num cenário internacional competitivo. Ele tinha sido convocado para a Copa América, mas se machucou.

Ele teve uma conversa com os jovens do elenco logo na apresentação para dizer que não queria ter privilégios ou tratamento diferente e a relação que se viu foi saudável do começo ao fim dos Jogos. Na primeira semana de concentração, Dani chamou atenção de funcionários do hotel onde a delegação estava hospedada por fazer tiros de corrida nos corredores já de noite, bem depois do treinamento. Essa disposição do ponto de vista físico do jogador mais velho do grupo teve um efeito positivo internamente, além do comando das conversas animadas e rodas de samba durante refeições e de uma relação próxima com a comissão técnica.

Em campo, André Jardine disse que ele vive o "auge mental". "Não se desgasta à toa dentro do jogo, ultrapassa quando precisa e está sempre bem posicionado para não correr errado ou correr para trás", disse, sobre o lateral que também foi meia durante a campanha.

O plano de estar no Qatar fez escala em Tóquio e saiu dourado.

Lucas Figueiredo/CBF

Ouro Branco

"Mamãe, estou com saudade do papai. Por que a gente não pode ligar de vídeo?".

A pergunta do pequeno Lucca Ibraim, de 8 anos, desconcertou a estudante de Medicina Cleo Pozzebon. Horas antes, ela tinha sido informada por telefone pelos médicos que o marido precisou ser intubado para tratamento de quadro grave de covid-19. Apesar da fé e do sentimento positivo, o lado racional de quem faz estágio em CTI não dava esperança: "Dentro daquele contexto eu achei que ele não fosse voltar. O quadro dele era grave demais, estava obeso, era diabético, hipertenso, fumante e etilista. Já vi gente sem um terço do que ele tinha partir."

O marido de Cleo é Branco, ex-jogador da seleção brasileira, campeão mundial em 1994 e hoje coordenador das categorias de base da seleção brasileira campeã em Tóquio. A resposta para Lucca foi que o pai não podia falar porque os médicos tinham tirado o celular para ele se recuperar e voltar logo para casa. "Ele resolveu escrever uma carta junto com o irmão de 14 anos e eu levei para ler para o Cláudio [nome verdadeiro de Branco] intubado. Eu chorei em cima dele, mas enquanto lia os batimentos começaram a oscilar, como se ele estivesse me ouvindo ou sentindo. Disse que ele precisava voltar."

No Brasil, dois a cada três doentes de covid-19 intubados em UTI morrem. Branco sobreviveu. Foram cinco dias com a respiração artificial até que o quadro melhorasse um pouco: "Aos poucos ele voltou, leu a carta e chorou. Nem ele acreditava, me dizia 'eu estive do outro lado'. Mas cinco minutos depois já queria participar das reuniões da seleção, saber quem poderia ser convocado e a logística (risos)".

Lembro que ele foi para o hospital contrariado. Tinha chegado de uma viagem com a seleção de base, começou a sentir dores de cabeça, fez o teste e deu positivo. Aí ele foi para o nosso apartamento de praia ficar isolado e um dia falando ao telefone eu senti que ele não estava bem. Fui levar um prato que ele gosta e quando o vi fiquei apavorada. Ele teimou que não precisava de hospital, mas no elevador teve duas síncopes com perda de consciência. Chegou com 50% do pulmão comprometido e órgãos parando, o médico disse que se demorasse mais três horas morreria. Logo foi intubado."

Cleo Pozzebon, Estudante de Medicina, esposa de Branco

Depois de recuperado, pode apostar que foi um tremendo sacrifício para ele ter que esperar para voltar a trabalhar. Está muito feliz de ter ido ao Japão brigar por essa sonhada medalha em Jogos Olímpicos, independentemente da cor. Hoje ele mudou a alimentação, perdeu uns 25kg, não fuma mais, faz acompanhamento médico e mudou a forma de ver a vida. A realidade da população do Brasil não é o tipo de assistência que ele teve, pouquíssimas pessoas têm acesso e isso ainda mexe comigo. Mas só agradeço a Deus e peço que ele entenda que é uma nova chance, com superação, esperança e fé."

Sobre a busca pelo ouro no Japão

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