De 0 a 100

Brasil foi de campeões que vendiam bala no farol a ouros que valem R$ 160 mil

Demétrio Vecchioli Do UOL, em São Paulo Marino Azevedo

Comentarista do SporTV nas Paralimpíadas de Tóquio e ela mesma uma medalhista na Rio-2016, Verônica Hipólito criou um bordão para festejar as medalhas conquistadas no Japão: "Solta o Pix, CPB". É uma referência ao valor que o Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB) promete pagar por cada um dos pódios brasileiros. Um ouro individual vale R$ 160 mil. A prata, R$ 32 mil. O bronze, R$ 16 mil.

Só Yeltsin Jacques, deficiente visual que já ganhou dois ouros no atletismo, tem garantidos R$ 320 mil. Isso sem contar as bolsas, oferecidas pelo governo federal e por estados como São Paulo, e patrocínios privados que se acumulam.

Enquanto o vencedor da 100ª medalha de ouro paralímpica do Brasil é recompensado por um comitê que só entre 2017 e 2020 recebeu mais de R$ 680 milhões das Loterias Caixa, entre valores previstos na Lei Piva e patrocínio direto, os atletas que inauguraram essa história de conquistas se ressentem de nunca terem sido reconhecidos financeiramente ou esportivamente por feitos que alcançaram em condições para lá de precárias.

Márcia Malsar, a dona do primeiro ouro, sobrevive até hoje com um salário mínimo pago pela União. Não é suficiente nem para cobrir suas despesas mínimas. Luiz Carlos da Costa, dono da primeira medalha, que ele nem sabe onde foi parar, tem tanta mágoa que se nega até a dar entrevistas. Sequer atende o telefone. Miracema Ferraz, como tantos outros, vendia bala em faróis, entre os treinos, para poder se sustentar.

Juntos, dependendo de assistencialismo, com as portas fechadas no mercado de trabalho, implorando por apoio estatal para competir e sem o treinamento adequado, eles foram os primeiros medalhistas do Brasil que hoje festeja sua 100ª conquista.

Marino Azevedo
Marino Azevedo
Márcia Malsar, dona da primeira medalha paralímpica brasileira

Entre números e a primeira medalhista

Na era das redes sociais, da informação minuto a minuto, cada conquista é acompanhada de uma estatística. O ouro de Beth Gomes foi o 99º do Brasil em Tóquio. O de Alana Maldonado, o primeiro do judô praralímpico brasileiro. O segundo de Carol Santiago, o quinto da equipe brasileira de natação no Japão...

Mas nem sempre foi assim. Sem cobertura diária da imprensa e com pouca documentação, o que entrou para a história é que, nos Jogos de 1984 o Brasil conquistou sete medalhas de ouro, suas primeiras. Mas qual dessas foi a primeira? O UOL foi atrás dessa resposta e teve dificuldades de encontrá-la. Mesmo pessoas que se dedicam ao resgate histórico do movimento paralímpico brasileiro não a tinham.

A resposta veio pelas datas. É Márcia Malsar, que teve danos cerebrais irreversíveis como consequência de um sarampo na infância. Aos 60 anos, ela tem como principal passatempo o passeio diário para dar alimento aos peixes de uma pracinha perto da casa onde vive com a irmã Mara em Rio Pequeno, no interior do Rio.

Uma questão que incomoda muito ela é nunca ter ganho um valor em dinheiro pelas medalhas conquistadas. Ela é muito esperta intelectualmente, entende tudo, e sabe que os atletas hoje em dia ganham uma premiação pelas medalhas conquistadas. Essa é uma das queixas dela sempre."

Mara, irmã da pioneira Márcia, que costuma intermediar as entrevistas da medalhista pioneira, que tem dificuldades severas na fala

Acervo Memória Paralímpica
Parte da delegação brasileira que foi às Paralimpíadas de Nova York

Estreia em Nova York...

A primeira campeã paralímpica do Brasil começou no esporte em uma instituição chamada IBMR, no Andaraí, no Rio, onde foi descoberta por um técnico chamado Nivaldo, que montou uma equipe de nove atletas para ir à edição de Nova York da Paralimpíada. Naquele ano, Los Angeles, sede dos Jogos Olímpicos, não chegou em um acordo para fazer também a edição Paralimpíada, e o evento se dividiu entre a Big Apple e vila de Stoke Mandeville, onde fica a clínica onde surgiu o esporte paralímpico, na Inglaterra.

As competições para cegos e para pessoas com paralisia cerebral aconteceram em Nova York, no fim de junho. As demais provas em julho, na Inglaterra.

"Ninguém acreditava que eles iam conseguir medalha. Foi tudo muito improvisado, não havia uniforme. Era tudo muito intuitivo, eu diria. Esse professor, Nivaldo, ele acreditava que ela tinha muitas possibilidades. Quando chegou lá e viu as pessoas competindo, ele apostou que ela conseguiria", diz Mara.

E ela conseguiu. Além do ouro nos 200m rasos da classe C6, completando a prova em 34 segundos e 83 centésimos, Márcia também foi prata no cross country 1.000m e bronze nos 800m. Revezando-se entre os treinamentos e o trabalho como faxineira da IBMR, ela depois seria bronze em 1988, em Seul, nos 100m.

Acervo Memória Paralímpica

...ou na Inglaterra?

Amintas Piedade morreu há dois anos com a certeza de que a primeira medalhista de ouro do esporte paralímpico brasileiro era ela. Mas a confusão se explica. A pernambucana, que não movimentava as pernas e tinha dificuldades motoras nos membros superiores, faturou o primeiro título do Brasil em Stoke Mandeville, onde as competições foram acompanhadas de perto pelo já casado príncipe Charles, que encantou as brasileiras.

A técnica Sandra Perez até hoje tem como foto de Whataspp um registro desse encontro com Charles. Ele era técnica de uma equipe que ganhou cinco medalhas de ouro, oito de prata e uma de bronze. Amintas, que era das classes mais baixas, foi um dos destaques, com dois ouros (arremesso de peso e slalom) e duas pratas (dardo e disco).

"Ela foi [de Pernambuco] para o Rio para a Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação e de lá foi para a SADEF, a Sociedade Amigos do Deficiente Físico, que foi onde ela começou o processo de reabilitação e conheceu o esporte. E lá ela ficou interna, porque a família não estava no Rio", conta a pesquisadora Michelle Barreto, que fez sua tese de doutorado em Educação Física pela Unicamp sobre a memória de medalhistas paralímpicos.

Amintas é uma dessas pessoas que o esporte brasileiro esqueceu. Em algumas citações na internet, é até tratada como homem. Além Michelle, a reportagem não encontrou ninguém da comunidade paralímpica que tenha estado com ela nas últimas décadas. Ela morava no Rio de Janeiro e tinha 42 anos quando conquistou seus ouros olímpicos.

Patrocinadores ajudavam, mas pediam para não aparecer

O CPB só foi criado depois da Olimpíada de 1992, quando houve um estímulo para a formação de entidades paralímpicas que cumprissem a mesma função dos comitês olímpicos. Na sua estreia em Paralimpíadas, em 1972, o Brasil foi representado por atletas avulsos de dois clubes: Otimismo, de São Paulo, e Paraplégicos, do Rio.

Nas três edições seguintes, incluindo a de 1984, a responsabilidade por levar as delegações do Brasil foi da ANDE, criada para atender os deficientes físicos e que foi se moldando às necessidades até, hoje, virar a confederação que cuida da bocha paralímpica. O movimento era o corpo e a alma do professor Aldo Nicolelis, falecido em 2009.

"Tivemos que ir no governo do estado pedir dinheiro. Foi uma correria. Foi nessa época que a gente começou a trabalhar a criação do comitê", lembra Luiz Cláudio Pereira, que até hoje está entre os maiores campeões paralímpicos da história do Brasil. Também treinado por Sandra Perez, ele disputou oito provas entre 1984 e 1988, e ganhou cinco ouros e três pratas.

Sem financiamento estatal contínuo, como é agora, atletas e dirigentes dependiam de favores. "Atletas contaram que havia empresas que até davam dinheiro, mas pediam para não terem suas marcas expostas, porque não queriam ficar associadas aos deficientes", relata Michelle Barreto.

Acerto Memória Paralímpica
Luiz Carlos da Costa, dono da primeira medalha paralímpica

"Esse povo não tinha dinheiro para tomar uma Coca-Cola"

Militante do esporte paralímpico desde o final dos anos 1980, Antonio Menescal se dedica ao resgate da história do movimento há oito anos. Mantém uma página e um grupo no Facebook dedicados a reunir e relatar essas histórias. Ele também escreveu um livro, a pedido do CPB, que nunca foi publicado.

"O Mizael, que hoje é presidente do CPB, me contou anos atrás que uma das maiores surpresas dele foi descobrir que o Luiz Cláudio, que foi vice antes dele, foi medalhista e recordista mundial. Veja, uma pessoa super engajada no movimento paralímpico não sabia. É uma história que ainda precisa ser revelada", diz Menescal. "Muitos dos heróis dos períodos mais difíceis foram esquecidos. Tanto atletas quanto técnicos, dirigentes, foram esquecidos."

Outro responsável pela difusão da memória paralímpica é João Batista Carvalho, primeiro presidente do CPB e agora presidente do Comitê de Clubes Paralímpicos, que recentemente também entrou na divisão do bolo das loterias. "Hoje, o esporte paralímpico é uma coqueluche, mas essas pessoas são muito feridas, porque elas de toda maneira foram as precursoras e ficam meio chateadas de não serem reconhecidas. Hoje, uma medalha paralímpica vale 160 mil reais. Esse povo não tinha dinheiro para tomar uma Coca-Cola."

Acervo Pessoal
Miracema Ferraz conquistou medalha de outo no arremesso de peso em 1984

Primeira estrela paralímpica vendia balas no farol

Promulgada em 2001, a Lei Piva mudou a cara do esporte paralímpico brasileiro. Se até então o país só havia ganhado 23 ouros entre 1984 e 2000 (média de menos de cinco por edição), depois dela o Brasil entrou no top 10 e não mais saiu, sempre com pelo menos 14 medalhas douradas, patamar já assegurado em Tóquio. No Japão, o CPB começa a sentir o impacto de uma mudança na lei que praticamente triplicou sua verba anual, para mais de R$ 140 milhões.

Além disso, a Bolsa Atleta também mudou a relação entre os atletas paralímpicos e o esporte, que passou a ser uma alternativa de sustento. Um medalhista em Campeonato Mundial ganha pelo menos R$ 10 mil ao mês da União, enquanto um título continental garante uma bolsa de quase R$ 2 mil.

Enquanto isso, ex-atletas reclamam. "Nunca tive uma ajuda. Agora que não trabalho, não tenho como trabalhar, não tenho ajuda nenhuma. Não tenho um reconhecimento do meu país. Tenho das associações, e só", diz Miracema Ferraz, que consta apenas como M. Ferraz na lista do site da Paralimpíada com os medalhistas de 1984. Na ocasião, ela ganhou cinco medalhas de prata e uma de ouro, no arremesso de peso.

Homenageada ontem pelo governo do Estado do Rio junto com Márcia, ela sonhava que se tornaria ginasta quando pudesse andar, o que nunca aconteceu. Ao se tornar interna de uma associação para deficientes físicos, conheceu o esporte. "Eu ia trabalhar de manhã, de lá ia para o Maracanã treinar, e vendia bala no farol à tarde", conta ela.

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