Alma leve, punho pesado

Hebert Conceição ganha ouro no boxe com nocaute impressionante, exalta Nelson Mandela e luta contra o racismo

Adriano Wilkson Do UOL, em Tóquio (Japão) Wander Roberto/COB/Wander Roberto/COB

Quando Hebert Conceição entrou no ringue para a luta mais importante da sua vida, as caixas de som do ginásio Ryogoku Kokugikan ressoavam com os batuques do Olodum e uma voz que seguiu sua caminhada com os seguintes versos:

Nobre guerreiro negro de alma leve / nobre guerreiro negro lutador / que os bons ventos calmos assim te levem aonde você for."

Seu treinador fez respingar água por todo seu corpo antes dele cruzar as cordas do ringue, enquanto seus parceiros de treino gritavam seu nome das arquibancadas. Mas quando soou o gongo, Hebert começou a ser atropelado. O ucraniano Oleksandr Khyzhniak o amassou com jabs, diretos e cruzados e o pressionou em direção às cordas. Foram seis minutos de sofrimento, seis minutos nos quais o baiano não encontrava uma saída e via o ouro olímpico arrancado de si com violência.

Ele parou, tentou respirar, mas entre uma respiração e outra, os braços do ucraniano o acertavam em partes diferentes do corpo. Os ventos não estavam calmos, mas Hebert tentava navegar mesmo assim contra eles. Ele buscava acertar um soco. Talvez um soco fosse tudo o que precisasse. Quando o ucraniano avançou para mais uma rajada de fúria, os treinadores e amigos pressentiram o pior, mas Hebert jogou o braço esquerdo no sentido contrário, por instinto. "Um soco", ele deve ter pensado e pedido e mentalizado o movimento perfeito.

O punho saiu e parou exatamente onde devia, na ponta do queixo, sacudindo a têmpora do ucraniano. Um soco. O ar do ginásio ficou carregado de expectativa enquanto Khyzhniak desmoronava diante do brasileiro. Nocautes são raros no boxe olímpico, mas o peso da mão de Hebert Conceição também é raro. Quando o ucraniano voltou a si, o árbitro já estava cruzando os braços no ar, decretando o fim da luta e a medalha de ouro do brasileiro.

Hebert primeiro se jogou ao solo e pareceu chorar, talvez lembrando da sua família que se reunia no bairro de Pau da Lima, em Salvador, para ver o filho tentar a sorte do outro lado do mundo. A mãe, Ieda, o tinha proibido de telefonar enquanto estivesse em Tóquio porque Hebert sempre chorava quando falava com a mãe e ela não queria vê-lo chorando.

Ao se dar conta do que tinha acontecido, Hebert gritou pra câmera, bateu no peito e já não chorava mais. Depois, dançou. Um negro guerreiro de alma leve, campeão olímpico aos 23 anos.

Wander Roberto/COB/Wander Roberto/COB
Wander Roberto/COB/Wander Roberto/COB
O momento do "pombo" que Hebert soltou, no único momento em que encontrou espaço para ele na luta

Nocaute antevisto em um sonho premonitório

Na euforia da vitória, com a medalha de ouro pesando no pescoço, Hebert ficou sério quando um jornalista lhe perguntou no que ele estava pensando quando perdeu os dois primeiros rounds. Naquele momento, no intervalo antes do terceiro round, seus dois treinadores se entreolharam preocupados, e Hebert já tinha entendido que não podia mais esperar.

Moni Silva foi o responsável por transformar aflição em estratégia. "Fixa os pés no chão, entra com um pombo e cruza depois", ele orientou, conforme lembraria depois. "Pombo" é o termo técnico para um direto que cai de cima pra baixo. O golpe incentiva o adversário a responder com o braço oposto, o que abre sua guarda e o deixa vulnerável.

Sob intenso bombardeio ucraniano, Hebert encontrou um espaço, o primeiro espaço da luta, para executar a estratégia. Ele soltou o "pombo", o ucraniano respondeu de direita e, sem querer, ofereceu o queixo para o cruzado do baiano.

O nocaute tinha sido antevisto na noite anterior por Moni Silva, conforme ele revelaria depois. "O Hebert não é conhecido por ser um nocauteador, mas eu sonhei que a luta terminaria assim. Quando aconteceu, as minhas pernas tremiam", disse o técnico. Segundo a comissão da seleção, esse foi o primeiro nocaute que Hebert aplicou em uma luta internacional na carreira.

UESLEI MARCELINO/REUTERS UESLEI MARCELINO/REUTERS
Buda Mendes/Getty Images

Em pleno século 21 ainda conviver com casos de racismo é muito lamentável. Como negro, não poderia deixar de fazer a minha raça se sentir representada e mostrar pra eles que nós podemos. Basta a gente trabalhar, não ligar pra críticas, absorver apenas as críticas construtivas e ter fé, seja lá quem alimente a sua fé. Respeite o próximo, seja branco, negro, pardo, índio. Trabalhe, porque com certeza você será recompensado."

Hebert Conceição

Hebert entrou em sintonia com Olodum e Mandela em Tóquio

Quando venceu a luta que o levou às semifinais, Hebert cantou ao vivo diante da câmera da TV "Madiba" a música do Olodum que usa como inspiração. Trata-se de uma homenagem ao líder sul-africano Nelson Mandela. A cena emocionou os artistas da banda, que lembraram uma coincidência. Em agosto de 1991, há 29 anos, Mandela visitava Salvador e fazia um discurso histórico contra o racismo na praça Castro Alves.

O Olodum e outros artistas da capital mais negra do país têm uma ligação histórica com Mandela. Nos anos 80, já usavam o Carnaval para cantar pela libertação do político e o fim do apartheid na África do Sul. Hebert, que nasceu em 1998, quando Mandela já era presidente, é herdeiro desse movimento, como muitos jovens que seguem cantando "Madiba" na periferia de Salvador.

Segundo o blogueiro do UOL André Santana, a música não costuma tocar nas rádios da cidade. Esse é um dos motivos para que Acelino "Popó" Freitas, que comenta as lutas na "Globo", tenha dito que não a conhecia quando ela tocou ao vivo. Mas vídeos de ensaios e apresentações, muitas vezes gravados pelo celular, circulam pelo Whatsapp e redes sociais, mantendo viva a música entre os jovens "olodúnicos", como Hebert.

Reuters Reuters

"Essa luta é para você, irmão"

A primeira conquista de Hebert também tem uma história comovente. Ele dedicou seu primeiro título a um amigo vítima de um crime na Bahia. Quem conta é o técnico Marquinhos, o Marco Antônio, que encaminhou a carreira de Hebert quando o conheceu, ainda menino.

"Eu estava na sede da Federação Baiana, porque eu era o técnico da equipe de cadetes que ia disputar o campeonato brasileiro de 2012, em Sergipe", relembra Marquinhos, que foi campeão baiano dos galos. "Foi quando o presidente Joílson Santana ligou para o [técnico] Davi Bispo e perguntou se ele tinha algum jovem na categoria 81 quilos. Faltava exatamente esta categoria para completar a equipe. E o Davi tinha o Hebert".

Hebert era um menino que trabalhava como lavador de carros e também como atendente em uma padaria no bairro Sete de Abril e disse que tinha coragem de disputar o Brasileiro.

Falei para ele lutar com mais determinação e ele pediu para eu dar um murro nele. Eu me neguei a isso, mas dei um tapa para despertá-lo. Ele voltou ao ringue e venceu por nocaute no segundo round mesmo".

Marquinhos, sobre a primeira luta de Hebert, que estava perdendo em sua estreia.

No dia da disputa pelo título, outro atleta da equipe foi contar ao técnico que Hebert estava chorando. "Cheguei lá e perguntei o que estava acontecendo e ele disse que um grande amigo tinha sido assassinado em Salvador. Bairro pobre, periferia. O Hebert nunca teve problemas, estudava e trabalhava, mas o amigo foi assassinado".

Marquinhos sugeriu ao menino: "Suba no ringue, lute e dedique a vitória a ele". E foi o que Hebert fez. "Ele venceu a luta por nocaute e o no fim se ajoelhou no meio do ringue e disse: 'Essa luta é para você, irmão'."

Reprodução/Instagram

Torcedor do Bahia, lutador evita falar a palavra "vitória"

"Sabia que ia ser difícil, ele me vendeu caro esse triunfo", afirmou Hebert após vencer o cazaque Abilkhan Amankul nas semifinais. "Hoje o triunfo veio, e eu estou muito feliz."

Vitória não, porque o lutador evita usar essa palavra, sempre preferindo o sinônimo "triunfo". Como se sabe, a torcida do Bahia não gosta de evocar o nome do maior rival nem de brincadeira. E Hebert é tricolor fanático. Depois de cada vitória, ele agradeceu o carinho dos torcedores do Bahia, que o procuravam a desejar sorte nas lutas.

"Ele é fanático e ama o Bahia. E não fala a palavra 'vitória', não", confirmou o treinador Luiz Dórea, que conhece Hebert desde que o atleta tinha 14 anos. "O momento de ver ele nervoso é quando o Bahia perde. Na luta, ele é muito seguro e sério, mas se o Bahia não tiver bem, ele fica muito chateado."

O lutador costuma acompanhar o time em partidas inclusive fora Bahia. Ele só abriu uma exceção quando precisou falar sério e conclamou a torcida de todos os brasileiros, independente da paixão clubística.

Fico feliz de representar todo baiano, não importa se é Bahia, se é Vitória, se é Jacuípense, são-paulino ou corintiano. Todo brasileiro se sentiu representado."

Hebert Conceição

Wander Roberto/COB/Wander Roberto/COB

Hebert quis lutar MMA, mas foi convencido a ficar no boxe

Quando era adolescente, o baiano quase trocou o boxe pelo MMA, mesmo já tendo sido campeão no ringue. Quem o demoveu da ideia foi seu treinador, Luiz Dórea, que comanda a Academia Champion e o projeto social que leva aulas de luta a crianças e adolescentes carentes.

"Hebert é um garoto muito talentoso. Com três meses de treino, faltou atleta para lutar no Brasileiro, quando ele tinha mais ou menos 15 anos. Ele foi neste campeonato brasileiro, estreou e foi campeão", contou Dórea, por telefone. "Depois, me disse que queria lutar no MMA, que já tinha entrado no jiu-jitsu."

Dórea respondeu na hora. "Não, meu filho, você tem muito futuro, você vai treinar, ficar especialista em boxe e quando for maior de idade, a gente vê o que você vai fazer."

Hebert ficou maior de idade, permaneceu no boxe e agora alcançou o pódio olímpico.

Outros campeões da academia que revelou Hebert

  • Adriana Araújo

    Bronze em Londres-2012

    Imagem: Scott Heavey/Getty Images
  • Robson Conceição

    Ouro na Rio-16

    Imagem: Danilo Verpa/Nopp
  • Popó

    Tetracampeão mundial de boxe

    Imagem: Divulgação
  • Júnior Cigano

    Campeão dos pesados do UFC

    Imagem: Jorge Corrêa/UOL
  • Rodrigo Minotauro

    Campeão dos pesados do UFC e do Pride

    Imagem: Buda Mendes/Zuffa LLC/Zuffa LLC via Getty Images
  • Rogério Minotouro

    Campeão sul-americano de boxe e ex-atleta de MMA

    Imagem: Getty Images

Todos os medalhistas

  • DA GARAGEM À PRATA

    A história de Kelvin Hoefler e das mulheres decisivas para a primeira medalha do Brasil em Tóquio-2020.

    Imagem: TOBY MELVILLE/REUTERS
    Leia mais
  • O OLHAR DE DANIEL

    Bronze no judô, Cargnin mirou no ídolo, superou covid-19 e viveu saudade e dor para ser medalhista olímpico.

    Imagem: Gaspar Nóbrega/COB
    Leia mais
  • O QUE VOCÊ FAZIA AOS 13?

    Rayssa Leal dança na final olímpica, zoa repórteres e se torna a mais jovem medalhista brasileira da história.

    Imagem: Wander Roberto/COB/Wander Roberto/COB
    Leia mais
  • PELAS BEIRADAS

    Fernando Scheffer ganha bronze na natação após passar três meses sem ter uma piscina para nadar.

    Imagem: Satiro Sodré/SSPress/CBDA
    Leia mais
  • TEMPESTADE PERFEITA

    Italo Ferreira supera prancha quebrada, ganha 1º ouro do Brasil e consolida domínio brasileiro no surfe.

    Imagem: Jonne Roriz/COB
    Leia mais
  • TRÊS VEZES MAYRA

    Após 7 cirurgias e 9 meses sem treinar, Mayra leva bronze em Tóquio-2020 e confirma: é a maior da sua geração.

    Imagem: Chris Graythen/Getty Images
    Leia mais
  • BAILE DA REBECA

    Rebeca Andrade conquista o mundo com carisma e funk para ser prata no individual geral da ginástica.

    Imagem: Ricardo Bufolin/CBG
    Leia mais
  • PERMISSÃO PARA SER FELIZ

    Bruno Fratus viveu a angústia de quase ser medalhista por mais de dez anos. Até que hoje um bronze mudou tudo.

    Imagem: Jonne Roriz/COB
    Leia mais
  • AS ÚLTIMAS SÃO AS PRIMEIRAS

    Luisa Stefani e LauraPigossi entraram na última vaga da dupla feminina para ganhar a medalha do tênis brasileiro.

    Imagem: Reuters
    Leia mais
  • OUTRO PATAMAR

    Rebeca Andrade conquista ouro no salto e se torna a 1ª brasileira a se sagrar campeã olímpica na ginástica.

    Imagem: Laurence Griffiths/Getty Images
    Leia mais
  • XAVECO DO MOMENTO

    A história de Alison Piu dos Santos, bronze no atletismo, e do seu mantra: "o importante é xavecar o momento".

    Imagem: Patrick Smith/Getty Images
    Leia mais
  • BAILARINAS DE OURO

    Martine Grael e Kahena Kunze velejam como quem dança para serem bicampeãs olímpicas.

    Imagem: Jonne Roriz/COB
    Leia mais
  • DIAS DE LUTA

    Abner Teixeira não chegou na final, mas o bronze o aproxima de outro grande objetivo: dar uma casa à mãe.

    Imagem: Gaspar Nóbrega/COB
    Leia mais
  • O NOVO RAIO

    Thiago Braz repete a sua história, chega a uma Olimpíada sem favoritismo e sai de Tóquio-2020 com medalha.

    Imagem: Wagner Carmo/CBAt
    Leia mais
  • A MEDALHA QUE FALTAVA

    Ana Marcela foi a melhor do mundo durante os últimos dez anos. Agora, tem um ouro para comprovar isso.

    Imagem: Daniel Ramalho / COB
    Leia mais
  • PRATA, PAZ E AMOR

    Pedro Barros ganha prata em Tóquio, diz que medalha é souvenir e valoriza fraternidade entre skatistas.

    Imagem: REUTERS/Mike Blake
    Leia mais
  • QUANDO O CÉU SE ABRIU

    Isaquias sabia que não poderia repetir as 3 medalhas de 2016. Mas estava tudo programado para um ouro especial.

    Imagem: Miriam Jeske/COB
    Leia mais
  • ALMA LEVE, PUNHO PESADO

    Hebert Conceição ganha ouro no boxe com nocaute impressionante, exalta Nelson Mandela e luta contra o racismo.

    Imagem: Wander Roberto/COB/Wander Roberto/COB
    Leia mais
  • CANARINHO OLÍMPICO

    Ouro consolida o Brasil como maior potência olímpica do futebol e pode render frutos na Copa do Mundo.

    Imagem: Alexander Hassenstein/Getty Images
    Leia mais
  • CAIR E LEVANTAR

    Medalha de prata é testemunho de como vôlei feminino do Brasil conseguiu se reconstruir após derrota em 2016.

    Imagem: Gaspar Nóbrega/COB
    Leia mais
  • PUNHOS QUE ABREM PORTAS

    Bia Ferreira leva medalha de prata, chega mais longe que qualquer mulher no boxe e incentiva meninas a lutar.

    Imagem: UESLEI MARCELINO/REUTERS
    Leia mais
Topo