Muitas mulheres em uma

Minha História: Hortência fala de gravidez a 5 meses da Olimpíada, casamento, Paula, Playboy e pódio com Fidel

Hortência Marcari, em depoimento para Denise Mirás Colaboração para o UOL, em São Paulo Jorge Bispo/UOL

Eu estava casada havia sete anos com o José Victor Oliva quando engravidei. Dei a notícia que ia parar com o basquete. Aí, curti tudo: roupinha, fazer o quarto... Quando nasceu o João Victor, começaram com aquela história: "Você tem de voltar a jogar. É Olimpíada!"

A Olimpíada era a de Atlanta, em 1996. E eu fiquei com aquilo na cabeça.

Quinze dias depois de ter o João, coloquei uma esteira dentro do meu quarto. Tirei os pontos da cesariana e no outro dia comecei a caminhar e correr, caminhar e correr. Com um mês, conversava com a CBB [Confederação Brasileira de Basquete]. Todo mundo me pressionando. Fiquei praticamente dez meses parada, sem fazer nada, meu médico superpreocupado com a história de eu não perder o filho...

Quando convocaram a seleção, fiz um acordo com o técnico, o Miguel Ângelo da Luz: "Se você achar que tenho condições de ir e jogar como titular, eu vou. Porque não vou terminar minha carreira no banco de reserva, jogando sem ter condições. Tenho uma imagem. Vou treinar e se você achar que consegui chegar a pelo menos uns 80% do que sei jogar, eu vou. Vamos trabalhar nisso?"

Eu fiquei pensando assim: nosso time tem chance de ganhar uma medalha, já pensou se eu não vou e o time ganha? Fiz parte dessa história, do progresso da seleção, ajudei a equipe a chegar lá. Eu mereço ganhar também. Não ia me perdoar se perdesse essa medalha olímpica.... Então voltei.

Foram cinco meses difíceis. Cheguei a uns 75-80%.

Dia da caça e do caçador

Eu até poderia ter ficado com o João em um hotel em Atlanta, mas optei pela Vila Olímpica. O ambiente era importante para mim. Então, quando chegamos, ele foi para um lado, com o pai e a babá, e eu fui para outro, para a Vila Olímpica. Era um bebê de cinco meses e, pela primeira vez, nós íamos ficar separados. Aquele foi o momento mais difícil.

(Ah, olha o João me mandando mensagem pelo celular: vai ser capa do adestramento do site de Tóquio 2020)

João Victor de Oliva é atleta do Brasil no adestramento e vai competir em Tóquio-2020

Na decisão com os Estados Unidos, não tinha condição para a gente ganhar. Aquela era a Olimpíada delas. Dizem que quem vence a luta não é o melhor lutador, mas o que está melhor no dia, não é? Você pode ser o melhor, mas dá uma bobeada, toma uma no queixo e cai estrebuchando que nem frango no chão... Naquela final, a gente podia jogar dia e noite que não ganhava delas.

No Mundial da Austrália, em 1994, não... Era nosso.

Naquela época, a gente via pela tevê a convocação da seleção brasileira. Quando falaram o nome do técnico, Miguel Ângelo da Luz, eu perguntei: "Como assim? Não sei nem quem é! Nunca vi, não sei quem é essa pessoa". A gente tinha um problema: um cara que nunca foi de seleção brasileira, nem de categoria de base, pegar um time como o nosso, eu com 35 anos, a Paula com 33...

A solução era trazer ele para o nosso lado. Quando me dão uma jogada, eu vejo o posicionamento de que tenho de partir, para começar e ir para a cesta. Porque eu buscava a cesta, era a pontuadora. Aí eu falava para a Paula que não ia dar certo. A gente dizia: "Miguel, que tal se corresse por aqui e fizesse assim?" Ele falava: "Pode fazer". O Miguel recebeu com bons olhos, não como crítica. E isso foi muito legal.

Jorge Bispo/UOL Jorge Bispo/UOL

Paula é unanimidade para mim

A Paula era o cérebro do nosso time. Ela tinha uma visão de jogo muito boa. Juntava com o que eu tinha, também, e deu sinergia. Duas líderes completamente diferentes, o oposto. Nas primeiras convocações, a gente olhava meio estranho uma para a outra. A competição era muito grande aqui, internamente. Culpa dos jornalistas! Mas foi boa aquela rivalidade. Bom para o basquete, bom para mim. E para ela também. Fez o basquete crescer.

A rivalidade era muito grande. Até hoje eu lembro de uma música que cantavam quando a gente se enfrentava: "Loira vagabunda..." e você imagina o resto. Cantavam para mim, a nossa torcida cantava outra para a Paula. Pensa que a gente ligava? Só estimulava. A gente brigava era pelas nossas conquistas. Aliás, se me perguntarem quem foi a pessoa mais importante na minha vida profissional, vou dizer que foi a Paula. Eu trouxe nossa concorrência para o lado positivo. Treinava o dia inteiro pensando nela. Joguei minha vida inteira para ganhar do time dela. A Paula é a única unanimidade para mim. Foi quem mais me motivou na vida!

Ganhamos aquele ouro na final do Mundial 1994 com a China. Era madrugada no Brasil e estávamos no meio da Copa do Mundo de futebol, que o Brasil também ia ganhar. Toda imprensa estava nos Estados Unidos. Na Austrália, onde era o nosso Mundial, só tinha um jornalista, o Juarez Araújo —e a Band fez a transmissão off-tube. Entrei falando por aquele tijolão, que era o celular... Anos depois, estava lá na Fiba (Federação Internacional de Basquete) e falei: não dá para ter competição junto com o futebol... E eles mudaram a data do Mundial.

Jorge Bispo/UOL Jorge Bispo/UOL

Do dia para a noite

Naquela época, eu já estava casada com o José Victor. Nós nos conhecemos no Gallery, uma casa noturna — ele era o dono. Mas foi em uma entrevista com o Octávio Mesquita em que ele apareceu e começou a me paquerar. Não tinha absolutamente nada a ver, eu e ele. Ficamos juntos mais porque ele insistiu e acabei conhecendo um outro lado do Victor. Não era do glamour, de ser o rei da noite. Era o lado família.

A gente se casou muito rápido. Cinco meses e marcamos o casamento para cinco meses depois. Todo mundo achava que era marketing. É surreal: eu jamais faria isso comigo.

(Ah, tinha de convidar a Paula para madrinha, né? E era amiga do Pelé. Então botei os dois no altar.)

A gente ficou casado dez anos, teve dois filhos maravilhosos, o João Victor e o Antônio. Somos amigos até hoje. Sou amiga da mulher dele, torço pelas filhas dele que também montam, como o João. Somos uma família só.

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Dinheiro, orgulho e desafio

Você está me perguntando se continuo namoradeira? Sigo igual, só que não fico por aí mostrando... Depois do Victor, nunca mais me casei. Já tive a experiência e sou feliz com a minha família. Há uns sete anos não namoro mais. Se é muito radical? Mas nem quando casei a gente morava junto. Eu ficava em Sorocaba, com o time, e ele aqui. Estou feliz com meus paqueras, tenho amigos, viajo quando quero, estou tranquila. Se aparecer alguém por quem valha a pena abrir mão dessa liberdade que tenho hoje, OK. Minha porta está fechada, mas não trancada. Se alguém tiver capacidade de abrir... Eu não vou abrir para qualquer um.

Quando me convidaram a posar para a Playboy, nem tinha isso de empoderamento feminino. Era 1987, porque foi dois anos antes de eu me casar com o Victor. Diziam que quem jogava basquete era masculinizada, não tinha corpo bonito... A Playboy era bem conceituada. Primeiro, falei com meu pai e minha mãe e eles disseram que estavam junto comigo. Aceitei por três razões:

  1. Pelo dinheiro
  2. Para mostrar que quem jogava tinha corpo bonito --naquela época nem tinha Photoshop, era na luz, mas a gente não tinha estria
  3. Porque era um desafio posar nua e eu adoro desafios

Daí, o que aconteceu? Nada! Continuou tudo como sempre foi. Posei, saiu e ponto final. Continuei jogando, fazendo minhas coisas.

Talvez fosse diferente hoje, com essa polarização toda. E vou usar uma cena que ficou na história para explicar.

Sérgio Berezovsky/AE
Hortência, Fidel Castro e Paula

O pódio com Fidel

Estou falando do pódio dos Jogos Pan-Americanos de Havana, em 1991, em que eu e a Paula falamos com o Fidel Castro. Vou dizer: tenho três medalhas especiais, uma mais importante, outra mais difícil e uma mais emocionante. A mais importante foi a do Mundial de Sydney 1994 - apesar de a gente estar lá, na Austrália, sozinha, com todo mundo no Brasil focado no futebol. A mais difícil foi a prata da Olimpíada de Atlanta 1996, porque realmente foi muito duro entrar em forma logo em seguida de ser mãe.

A mais emocionante foi a do Fidel. O Brasil inteiro estava assistindo e parecia que a gente estava jogando em casa. Os cubanos adoram a gente, só torciam contra quando a gente enfrentava eles. Quando a gente desceu do pódio com a medalha de ouro que ganhamos sobre Cuba, o Fidel puxou a gente e disse que não ia dar a medalha nem para a Paula, nem para mim. Porque a gente tinha "trapaceado", jogando com uma "mira laser" para não errar o alvo.

Outro dia postei essa foto e as pessoas começaram a falar: "Foto com o Fidel, é comunista!" Gente, é o momento da minha vida! Independentemente de política, foi importante, um momento que ficou na cabeça de todas as pessoas, a favor ou contra.

Essa polarização hoje é muito ruim. Nós, brasileiros, temos de nos respeitar, o que inclui a opinião política. Se é minha opinião, não significa que seja a verdade absoluta, nem a do outro. Não podemos nos agredir porque sua opinião é diferente da minha.

A gente pode viver bem com a diversidade que o mundo tem. Combater racismo, homofobia. Eu procuro saber, analiso todos os lados e tomo minha decisão. E vivo um dia atrás do outro.

Jorge Bispo/UOL Jorge Bispo/UOL
Jorge Bispo/UOL

Hoje, Hortência é comentarista de basquete da TV Globo e do SporTV e estará nas transmissões da modalidade nos Jogos Olímpicos de Tóquio. Fez duas faculdades, de educação física e de gestão esportiva, e cursos do COB (Comitê Olímpico do Brasil) de transição de carreira. É campeã mundial de basquete, em 1994, vice-campeã olímpica, em 1996, e campeã pan-americana, em 1991. Está em três Halls da Fama: do basquete americano, do basquete internacional e no olímpico do COB. Seu filho mais velho, João Victor Oliva, vai disputar sua segunda Olimpíada em Tóquio, no adestramento.

Lucas Lima/UOL

Minha História

Os Jogos Olímpicos de Tóquio, originalmente marcados para agosto de 2020, foram adiados para 2021. Com todo o mundo impedido de sair de casa, os atletas tiveram de parar, pensar e traçar planos para recomeçar. Para marcar essa etapa, o projeto Minha História, do UOL Esporte, em que grandes nomes do esporte nacional contam, em suas palavras, o que viveram para chegar ao topo, publica relatos dos grandes nomes do esporte brasileiro que devem brilhar no Japão.

A primeira edição teve o campeão olímpico do salto com vara de 2016 Thiago Braz, que fez um relato sincero sobre relacionamentos, como o que está reconstruindo com seus pais, e amizades, como as com o saltador Augusto Dutra, o treinador Elson Miranda e o fisioterapeuta Damiano Viscusi, que morreu em 2017.

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