Uma nova Marta

Maior jogadora da história sai de Tóquio sem medalha e com uma imagem diferente dentro e fora de campo

Gabriel Carneiro Do UOL, em São Paulo REUTERS/Molly Darlington

O futebol feminino vive uma onda de atenção e investimentos tardios no Brasil, mas vem de eliminações precoces da seleção nas competições mais importantes: caiu nas oitavas de final da Copa do Mundo de 2019 e hoje (30) perdeu para o Canadá nos pênaltis nas quartas de final das Olimpíadas de Tóquio, o que impediu até a disputa por uma medalha.

Protagonista das duas campanhas e de quase duas décadas com a amarelinha, Marta apresentou mudança no discurso entre uma eliminação e outra. Em 2019, fez cobranças às jogadoras jovens ao dizer que "não vai ter uma Marta para sempre". Já em 2021, o foco mudou: "Espero que as pessoas tenham mais consciência e não apontem dedo para ninguém."

As palavras mostram que Marta abraçou uma versão mais leve e desencanada de sua personalidade, como se conseguisse sentir menos a pressão por sua história. A visão de pessoas do convívio da seleção que o UOL Esporte ouviu é que Marta foi a Tóquio com o sentimento de que não precisava se provar e que nesta fase é melhor aproveitar o momento e de certa forma inspirar quem vem depois dela.

Essa leveza é que causou gestos como o de dedicar seus gols à noiva Toni Pressley, num movimento de tratar publicamente de assuntos pessoais que ainda são vistos como tabu no esporte — como orientação sexual, por exemplo — que é recente. E também no estilo de jogar. Agora ela não é a única protagonista na equipe. Há então uma nova Marta, mais livre, que não teve resultado nas competições mais recentes e deixou em dúvida a permanência na seleção, mas só aumentou sua relevância.

REUTERS/Molly Darlington

Marta em Jogos Olímpicos

  • Atenas-2004

    Jogou seis partidas e fez três gols. Brasil foi medalhista de prata.

    Imagem: Clive Mason/Getty Images
  • Pequim-2008

    Jogou seis partidas e fez três gols. Brasil foi medalhista de prata.

    Imagem: Lars Baron/Bongarts/Getty Images
  • Londres-2012

    Jogou quatro partidas e fez dois gols. Brasil caiu nas quartas de final.

    Imagem: Ben Radford/Corbis via Getty Images
  • Rio-2016

    Jogou seis partidas e fez dois gols. Brasil foi quarto colocado.

    Imagem: Alexandre Schneider/Getty Images
  • Tóquio-2020

    Jogou quatro partidas e fez três gols. Brasil caiu nas quartas de final.

    Imagem: REUTERS/Molly Darlington
  • Paris-2024?

    Marta terá 38 anos na próxima edição dos Jogos. Seria a 6ª participação.

    Imagem: iStock
Koki Nagahama/Getty Images

Faltou só um gol

Marta fez três gols em quatro jogos nas Olimpíadas de Tóquio, sendo dois contra a China na primeira rodada e mais um diante da Holanda no jogo seguinte, ainda na primeira fase. Em branco contra a Zâmbia — quando jogou só um tempo — e principalmente na eliminação para o Canadá, chegou a 13 marcados e assumiu a posição de segunda maior goleadora da história da modalidade na competição.

O futebol feminino está no programa olímpico há apenas sete edições e é outra brasileira, Cristiane, quem lidera a artilharia histórica com 14 gols e não foi convocada para esta edição dos Jogos. Marta viveu neste ano a expectativa de destronar a companheira, mas agora torcerá à distância para ela própria não ser ultrapassada nos próximos dias.

Isso por que a classificação do Canadá permitirá que a experiente Christine Sinclair, de 38 anos, faça mais dois jogos nas Olimpíadas. Ela tem 12 gols e é a perseguidora mais direta de Marta pelo recorde de Cristiane. Por sorte, não marcou contra o Brasil.

Os gols de Marta nas Olimpíadas:

2004

1ª rodada: Brasil 1 x 0 Austrália
3ª rodada: Brasil 7 x 0 Grécia
Quartas de final: Brasil 5 x 0 México

2008

2ª rodada: Brasil 2 x 1 Coreia do Norte
Quartas de final: Brasil 2 x 1 Noruega
Semifinal: Brasil 4 x 1 Alemanha

2012

1ª rodada: Brasil 5 x 0 Camarões (duas vezes)

2016

2ª rodada: Brasil 5 x 1 Suécia (duas vezes)

2020 (2021)

1ª rodada: Brasil 5 x 0 China (duas vezes)
2ª rodada: Brasil 3 x 3 Holanda

Agora é pensar no futuro. Continuar apoiando a modalidade porque o futebol feminino não acaba aqui, continua. Espero que as pessoas tenham mais consciência e não apontem dedo pra ninguém, não tem culpado. Faltou a bola entrar. Estou muito orgulhosa da equipe."

Marta, Após a eliminação do Brasil em Tóquio-2020

Philip Fong/AFP

Mais tática ou reprimida?

Aos 35 anos, Marta não tem a mesma disposição física das temporadas que marcaram seu auge e que a obrigavam a ser uma faz-tudo na seleção brasileira. Era "quem batia o escanteio e corria para cabecear", único grande diferencial técnico de um time pouco coletivo sem muitas atenções da CBF. A ideia com a contratação da técnica Pia Sundhage há quase dois anos era mudar esse panorama.

A sueca bicampeã olímpica montou um time em que Marta não é a estrela. Ela teve diferentes funções nos Jogos. Em três das quatro partidas foi escalada como meio-campista pela esquerda no esquema tático 4-4-2, com Formiga e Andressinha à frente da zaga, Duda pela direita e o ataque formado por Debinha e Bia Zaneratto.

A exceção foi contra a Zâmbia, quando atuou meio jogo mais avançada — como atacante mesmo. Diante do Canadá, começou como meia-esquerda e passou para meia-direita após a entrada de Ludmila no ataque. A ideia era que a camisa 10 tivesse liberdade de puxar as jogadas para o centro para armar por dentro mais próxima do gol canadense, mas faltou fôlego.

Pelos lados, Marta precisou sustentar as subidas para o ataque da lateral Tamires e marcar as laterais adversárias, uma função que a esgotou em todos os jogos — só não foi substituída na eliminação. O que tinha cara de organização tática na verdade restringiu o talento da melhor jogadora do Brasil, mesmo já veterana.

Sam Robles/CBF

Tirando a coroa para jogar

Como o jogo da seleção é coletivo e não mais baseado em sua individualidade, Marta deixou pelo caminho um peso que sempre carregou, que é o de fazer o Brasil vencer um torneio importante na modalidade para, assim, fomentar a cadeia de clubes, competições, interesse do público e de patrocinadores. O futuro do futebol feminino não depende só dela e isso foi de certa forma libertador.

Há outro elemento que contribui com essa sensação de leveza: é a primeira vez desde que Marta apareceu entre as melhores jogadoras do mundo, em 2004, que ela fica dois anos consecutivos fora do top 3 de indicadas da Fifa. Eleita seis vezes como a melhor de todas (2006, 2007, 2008, 2009, 2010 e 2018), a camisa 10 não carrega mais responsabilidades e olhares como antes nestes 17 anos de classe mundial.

É como se a mulher apelidada de Rainha tivesse tirado a coroa para jogar em Tóquio.

A partir do momento em que o peso dentro de campo é reduzido, teve destaque o posicionamento de Marta em assuntos fora das quatro linhas, algo despertado só recentemente, incentivado pela presença maciça de mulheres no comando do futebol feminino da CBF e que justifica o tipo de discurso adotado. Um exemplo dessa nova postura é o fato de ela estar há três anos sem patrocínio de marcas esportivas por entender que os valores oferecidos pelas empresas são desproporcionais em relação à sua história. Ela diz não querer receber o mesmo dos astros do futebol masculino, mas o justo.

Esse peso atrapalha qualquer atleta, estamos vendo a ginasta americana [Simone Biles] que desistiu de competir. Ser atleta de alto rendimento e defender seu país por si só já é uma grande pressão, mas ser o centro das atenções amplifica essa pressão. Senti que a Marta este ano esteve mais leve, a coroa está dividida."

Daniela Alves, ex-jogadora da seleção, medalhista de prata em 2004 e 2008

Sam Robles/CBF

"Enfrentar o preconceito tem expressão maior a partir dela"

Marta dedicou seus gols nas Olimpíadas à noiva, sua companheira de time no Orlando Pride-EUA Toni Pressley. Ela faz um gesto de "T" com os dois braços como referência à inicial do nome da zagueira americana. O relacionamento é público desde maio de 2019 e toda conquista em casal, como o noivado em janeiro, é compartilhado com os seguidores de ambas na internet.

Essa liberdade para tornar o assunto público é novidade, como mostra Helena Pacheco, treinadora responsável por lançar a retraída Marta no futebol profissional do Vasco e até hoje amiga e incentivadora.

"Tivemos um papo recente e eu perguntei se ela iria casar, se estava namorando, essas coisas que perguntamos depois de muito tempo sem ver a pessoa. Conversamos, e eu falei que ela tinha, como Marta atleta e jogadora, uma posição muito favorável para colocar publicamente suas vontades e desejos. Disse que lutar contra o preconceito teria uma expressão muito maior se fosse a partir dela e que não tivesse receio. Ela me respondeu que receio não havia, só não tinha espaço, mas que na cabeça dela pensava em se posicionar", diz, ao UOL Esporte.

Por muitos anos não fez parte do plano de comunicação da carreira de Marta abordar esse assunto. O avanço da pauta LGBTQIA+ no Brasil e o crescimento do futebol feminino que parou de tratá-la como única esperança contribuíram para que isso mudasse aos poucos. Hoje não há restrição.

Eu fico feliz de saber que ela está tão livre, acho que isso só ajuda dentro da seleção, de poder se libertar sobre o que gosta. É um momento mágico para ela e para nós que sofremos tanto preconceito e sempre somos julgados até mesmo quando não saímos do armário, vamos dizer assim. Sabemos a importância dela no esporte e assim encoraja muitas a poderem sentir essa liberdade. Ela nos bastidores sempre foi assim e que bom que agora pode transmitir isso."

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Formiga, Companheira de Marta na seleção

Como somos exemplo e espelho para muitas pessoas não só no futebol, acho bacana a gente se posicionar, continuar quebrando esse preconceito, essas barreiras, sair do armário realmente. Eu não vejo nenhum problema e fico feliz de saber que minha esposa está falando na TV, que a Marta se posicionou, que a Cristiane apareceu com seu filhão. É dessa forma que vamos conquistando respeito das pessoas, porque respeito é tudo. Não só por ser atleta, mas por ser humano. Juntas vamos conquistar isso."

Sobre a postura de Marta

Marta "política"

Sam Robles/CBF

Protesto

Jogadoras da seleção e a técnica Pia Sundhage fizeram uma sessão de fotos de divulgação das Olimpíadas em 12 de julho. Um detalhe chamou atenção nas imagens de Marta: ela cobre com o cabelo o logotipo da fornecedora de material esportivo, um protesto silencioso que reforça seus posicionamentos sobre o baixo investimento das marcas no futebol feminino.

Reprodução/Instagram

Engajamento

Já durante a Olimpíada, Marta foi anunciada como líder global de "diversidade e inclusão" de uma empresa de aviação, uma iniciativa publicitária que propagará mensagens de transformação até internamente. Um dos elementos do acordo é o incentivo para a empresa ter mais mulheres pilotos e homens tripulantes de cabines. O prazo da parceria não foi anunciado.

Reprodução

Direitos

Marta foi porta-voz das jogadoras da seleção num protesto contra o assédio sexual feito em amistoso pré-Olimpíada. As jogadores exibiram uma faixa escrito "assédio não" dias após o afastamento do presidente da CBF, Rogério Caboclo, acusado de crime desta natureza por uma funcionária da entidade. "Necessitava mostrar nosso posicionamento", disse, na ocasião.

Dan Istitene/Getty Images

Bolsonaro

Uma pergunta do Enem-2020 colocou em evidência a desigualdade salarial entre Neymar e Marta. Dias depois, o presidente Jair Bolsonaro disse que a pergunta era "ridícula" e que o futebol feminino "não era realidade" no Brasil. A jogadora postou uma foto sua pela seleção e a legenda: "Uns serão lembrados como os melhores da história, já outros...".

Koki Nagahama/Getty Images

Fim de uma geração?

O Brasil conquistou sua última medalha olímpica no futebol em 2008, uma prata em Pequim. Quatro jogadoras daquele elenco estiveram no grupo da Tóquio-2020: a goleira Bárbara, a zagueira Érica, a volante Formiga e a meia Marta. As duas primeiras têm 33 anos e indicam a possibilidade de um novo ciclo até Paris-2024. Formiga, que esteve em todas as edições desde 1996, se despede aos 43 anos.

Já Marta deixou no ar.

Óbvio que ficou um gostinho de quero mais. Até falei para as meninas, especialmente para a Formiga, que queria viver mais uma vez a emoção de lutar por uma medalha por ela. Uma vida dedicada à modalidade, inspiração para todas e que poderia ter um final um pouco mais feliz, mas ela é guerreira e isso nos orgulha demais. Sobre mim, eu não sei [se continuo na seleção]. Difícil dar essa resposta agora, a cabeça está a mil. Estou muito emocionada, vou deixar essa resposta para depois."

Sem contar o quarteto de prata, o elenco da seleção brasileira em Tóquio foi formado por jogadoras muito experientes. Já passaram dos 30 anos Poliana (30), Rafaelle (30), Aline Reis (32), Tamires (33) e Bruna Benites (35). Curiosamente, as cinco são jogadoras de defesa.

Os próximos amistosos da seleção ainda não foram divulgados. Certeza no calendário é a Copa América marcada para daqui um ano, com sede indefinida. Dará entre três e cinco vagas na Copa do Mundo da Austrália e da Nova Zelândia em 2023. Grupo renovado até lá? Fica no ar.

Koki Nagahama/Getty Images

"Sorrir no fim"

Marta é o elo entre uma geração relegada pelo sistema, com nomes como Pretinha, Roseli, Sissi, Katia Cilene e a própria Daniela Alves, e outra que começa a aparecer como fruto do tempo somado a organização, investimentos, apoio da iniciativa privada, publicidade, resiliência das jogadoras e cobrança dos incentivadores do futebol feminino ao longo dos anos.

A equiparação salarial das seleções brasileiras de homens e mulheres aprovada em 2020 é um passo, assim como a contratação de profissionais mulheres para cargos de gestão e o fomento aos torneios das categorias de base à elite. Ano que vem será a estreia da Terceira Divisão profissional dentro de um calendário que já tem há três anos duas competições para jogadoras jovens. Daniela Alves, por sinal, é a atual campeã nacional sub-16 como treinadora do Corinthians.

"Minha geração pavimentou o caminho de certa forma. A seleção hoje tem meninas com quem eu joguei e meninas que treinei. É muito importante ter competições de base, ter a seleção na base, porque quanto mais bagagem elas tiverem, melhor elas vão competir quando adultas. Saber competir, saber ganhar e saber perder é muito importante para o futuro dessas atletas, e até pouco tempo não existia", diz a ex-jogadora.

O recado de Marta depois das eliminações precoces da seleção brasileira parece fazer cada vez mais sentido: "Chore no começo para sorrir no fim." Ela só não disse quando será o fim.

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