Bailarinas de ouro

Martine Grael e Kahena Kunze velejam como quem dança para serem bicampeãs olímpicas

Adriano Wilkson e Talyta Vespa Do UOL, em Enoshima (Japão) e São Paulo Jonne Roriz/COB

Os barcos da classe 49er FX se amontoavam diante da linha de largada quando uma vela pintada com a bandeira brasileira se destacou na linha do horizonte. Martine Grael tinha tido uma ideia. Como timoneira, era sua missão encontrar os caminhos invisíveis por onde o barco navegasse com mais velocidade.

Instintivamente, conforme contaria depois, ela percebeu que havia uma correnteza em uma região distante na área de regata, viu que os ventos daquele lado pareciam mais promissores e avisou sua companheira, Kahena Kunze, que elas deveriam ir por ali. Kahena deu uns passos para o lado e, manejando os cabos que controlam a vela, ajustou os ângulos, fazendo o barco brasileiro se afastar rapidamente do restante da flotilha.

Quem olhava de longe poderia pensar que tinha acontecido alguma coisa errada com aquele barco solitário que se afastava dos demais. Mas com aquele movimento contra-intuitivo, Martine e Kahena puderam, por um tempo, pegar vento limpo, sem interferências, enquanto todas as suas adversárias disputavam o mesmo espaço.

Começavam ali a ganhar uma medalha de ouro pela segunda vez. Agora, nas águas tranquilas do Oceano Pacífico.

O barco da 49er FX tomba no mar se não houver ninguém em cima dele e por isso quem o veleja precisa usar o próprio corpo como contrapeso. Martine e Kahena pisaram sobre as asas do barco, chamado Tsuru, como se dançassem. Um passo de cada vez, saltos na hora certa, em sincronia com barco, vento e mar.

"Às vezes, o que fazemos parece com um balé", costuma dizer a carioca Martine. O balé da dupla já tinha garantido a elas o primeiro ouro olímpico da classe, no Rio de Janeiro, em 2016. Agora, na marina de Enoshima, elas dançaram para o bicampeonato e colocaram seu nome no topo do esporte olímpico brasileiro.

Jonne Roriz/COB

Acidente com o barco Tsuru

Martine e Kahena já se conhecem há muito tempo, mas o esporte que elas praticam exige conhecer muito bem tanto a natureza como o barco. No caso da campanha de Tóquio, esse foi um desafio. O 49er FX das brasileiras estreou nas águas japonesas e foi batizado já na baía de Enoshima.

Em uma cerimônia simples, o barco recebeu um banho de champagne e o nome de Tsuru, aquele origami em formato do pássaro mitológico que é sinal de boa sorte.

Mas Tsuru, que deu sorte até o final da competição olímpica, não teve tanta sorte depois de levar as brasileiras ao ponto mais alto do pódio. Na comemoração, foi erguido junto com elas e acabou tendo o mastro quebrado ao voltar para a água.

Phil Walter/Getty Images

Desenhos com lápis de cor

Martine e Kahena têm 30 anos e cresceram juntas nas regatas da baía da Guanabara. Filha do bicampeão olímpico Torben Grael, Martine colecionou medalhas e troféus na Optimist, a classe de entrada da vela. Logo viu outra rival surgir no horizonte quando a família de Kahena se mudou de São Paulo para o Rio.

"Eu sempre admirei a Tine desde que nos conhecemos e competimos contra a outra", afirmava Kahena na véspera da regata da medalha. Depois de anos de rivalidade, as duas resolveram unir forças em 2009. Juntas, foram campeãs do Mundial da Juventude em Búzios, na classe 420 — um barco mais tradicional que aquele com que competem hoje. Se separaram e, quando a classe 49er FX foi escolhida para estrear no programa olímpico, em 2012, Kahena enviou um e-mail para a amiga, que estava viajando, fazendo o convite.

Hoje, elas costumam fazer coisas que amigas normalmente fazem juntas, como surfar e andar de bicicleta. Na concentração das Olimpíadas, isoladas em Enoshima dos outros atletas brasileiros, elas foram vistas pintando desenhos com lápis de cor.

Reprodução/Instagram

A mãe coruja

Apesar de ser o pai Torben o colecionador de medalhas, foi Andrea Sofiatti Grael, a mãe, a maior incentivadora da filha no esporte. Foi ela quem ensinou os filhos a velejar. Martine tem um irmão, Marco, que também participou das Olimpíadas deste ano e terminou em 16º lugar.

A percepção materna fez com que a filha fosse desenvolvendo os próprios gostos dentro do esporte, e aprendendo a lidar com perdas e ganhos. Andrea e Martine têm ligação forte com a natureza. Veterinária, a mãe trabalha em projetos de preservação. Algumas vezes, faz autópsias em tartarugas mortas com plástico.

Como Torben viajava muito, era Andrea quem segurava as pontas em casa —cuidava dos filhos, trabalhava e ainda incentivava que as crianças buscassem prazer no esporte. Martine praticamente nasceu em um barco. A mãe, que também é velejadora, completou uma regata Santos-Rio quando estava grávida de sete meses da filha. Estava a bordo de um barco com tripuação feminina. "A Martine começou a velejar na minha barriga. Foi a primeira regata dela".

Em entrevista ao UOL Esporte, Andrea se diz extasiada. "Estou emocionada para caramba, feliz, sem caber dentro de mim. Estou muito orgulhosa, nem dá para descrever o quanto. Foi uma determinação delas, são atletas que sabem trabalhar sob pressão, porque tiveram competição bastante adversa, começando mal. A segunda regata teve o incidente na largada. Um incidente atrás do outro e foi dando um aperto no coração porque eu sabia o quanto elas estavam preparadas para essa competição. Deu aquela tristeza no começo, mas a vitória foi muito bacana, fiquei muito feliz."

Clive Mason/Getty Images Clive Mason/Getty Images

Família tradicional

As duas já são herdeiras de dinastias familiares. Kahena é filha de Claudio Kunze, campeão mundial da classe Pinguim nos anos 1970. A história de Martine é ainda mais rica. Seus tios-avôs, os gêmeos Erik e Axel Schmidt, são os primeiros campeões mundiais da vela brasileira —e os primeiros tricampeões também... O tio, Lars Grael, tem duas medalhas olímpicas. O pai, cinco —duas de ouro, como Martine.

Andrea relembra a infância dos filhos, quando tiveram o primeiro contato com a vela: "Eles começaram pequenininhos. O Torben ficava muito fora, velejando em barcos de oceano, e eu, como velejava, sentia muita falta de praticar. Então, comecei levar as crianças comigo, para que eu pudesse velejar também. A Martine dormia, e batia a cabeça no barco dormindo, coitadinha."

À medida que as crianças foram crescendo, o interesse deles pelo barco também aumentou. Nas viagens, a mãe colocava um filho em cada barquinho, e os acompanhava. "A gente fazia piquenique, parava nas praias, brincava. Depois, mais tarde, a gente montou uma escolinha de vela lá no lá no clube e aí começaram a velejar em grupo", relembra.

A Kahena é quase como minha filha, é minha segunda filha, é uma princesa que mora no meu coração. Parece que duas filhas minhas conseguiram ganhar medalha."

Andrea Grael, mãe de Martine

Jonne Roriz/COB

Dominantes na 49er FX

A prova de 49er FX é uma das mais difíceis e físicas da vela. O skiff é um barco muito veloz e instável, as velejadoras ficam no trapézio, com colete e presas por um cabo, para fazer o contrapeso. Por ser um barco instável, demanda uma velejada quase acrobática.

Em alguns momentos, exigem que as atletas fiquem com o corpo totalmente para fora do barco. Quando mudam de direção e trocam as velas de lado, fazem manobras semi-acrobáticas, que demandam preparo físico e muita agilidade.

Além da sensibilidade, ser velejador exige muito estudo meteorológico. É preciso saber como estará o vento no dia e local de competição, além de entender detalhadamente como a posição dele interfere na prática da vela. Na final, por exemplo, Martine e Kahena escolheram o lado direito da raia. Acreditaram que o vento viria naquela direção e acertaram. Enquanto elas iam para um lado, os outros barcos foram para a esquerda. Como os 49ers FX são barcos velozes, ficou difícil recuperar depois.

Jonne Roriz/COB

Cabeça pensante e força física

Na teoria da vela, um timoneiro é a cabeça pensante, que guia o barco e comanda a vela grande, a principal. O proeiro é a força física e fica com o ajuste das velas de proa. Na prática, não é bem assim: a equipe brasileira campeã olímpica divide as funções. Quem dá a decisão final é Martine, mas Kahena também participa da parte tática. Como tem mais chance de olhar ao redor, informa a timoneira sobre o que está acontecendo e dá sugestões.

Na medal race desta terça-feira, a que garantiu o ouro, a vitória começou a acontecer depois que a dupla fez uma manobra contra-intuitiva logo na largada e se distanciou da flotilha para pegar vento sem interferência. As duas aproveitaram, ainda, uma corrente marítima que Martine disse ter percebido —a baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, é cheia de correntes assim, e foi lá que Martine aprendeu a velejar.

Ainda em alto mar, as brasileiras pareciam não acreditar no feito. Martine destacou a campanha de recuperação ao longo das regatas. "Foi uma semana difícil, difícil de velejar. Fizemos um campeonato de recuperação", comentou. "No primeiro dia, aconteceram coisas que deixaram a medalha de ouro muito longe. Ficamos inseguras, mas conseguimos dar a volta por cima", completou Kahena. As brasileiras haviam terminado o primeiro dia de competição na 15ª colocação geral.

UOL

Kahena sofre ao torcer por namorado

Após ganhar o ouro, Kahena não desgrudou da tela que transmitia a regata da medalha de seu namorado, o espanhol Iago Lopez Marra. Muito nervosa, ela chegou a gritar e se abraçou com uma atleta da Espanha. Iago e seu parceiro, Diego Botim le Chever, cruzaram a linha de chegada em sétimo lugar. No cômputo final do campeonato, o barco espanhol acabou em quarto, perdendo o bronze para os alemães. Uma atleta da Alemanha estava ao lado de Kahena assistindo à prova e comemorou com um grito o bronze de seus compatriotas. Logo em seguida, pediu desculpas.

Clive Mason/Getty Images Clive Mason/Getty Images

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