Fiz o que pude

Daiane dos Santos relembra frustração em Olimpíada e corrida contra o tempo na ginástica

Daiane dos Santos, em depoimento a Denise Mirás Colaboração para o UOL, em São Paulo Keiny Andrade/UOL

Tomar a decisão de parar, de abandonar uma carreira já consolidada, é muito difícil. Não tem como não dar medo —e deu. Muito! Tentei racionalizar as ideias e entender que eu já havia colaborado muito como atleta —fui a primeira brasileira a ser campeã mundial de ginástica artística, participei de três Jogos Olímpicos e fui finalista em dois. É uma trajetória de dar orgulho: tem dois movimentos no esporte com o nome da minha família. Fiz o que pude, e o que pude fazer foi muito. Quando venci o Mundial de 2003, foi inacreditável. Pensava: "Sou campeã do mundo, a melhor do mundo no solo. Nem acredito". A gente fica extasiada.

Quando o resultado chega, você sente alívio e se lembra com satisfação, também, dos momentos que não foram tão bons para chegar até ali. É um sentimento de que tudo tinha valido a pena. Agora, quando esse resultado não chega, como aconteceu em 2004, na Olimpíada de Atenas, é preciso parar para entender o porquê.

Naquele momento, eu vivia o sonho da primeira Olimpíada, e posso afirmar que o erro foi por excesso. Também erramos por excesso, sabia? São aqueles 110% de que se fala tanto. Sentia um desejo tão grande de fazer o melhor, que passei do ponto. O importante é reavaliar, reconhecer nossas pequenas vitórias — e as grandes também —, reconhecer que não fazemos nada sozinhos. Nenhuma vitória minha foi só minha.

Hoje, aos 38 anos, encabeço o projeto Brasileirinhos, que proporciona aulas de ginástica para crianças e adolescentes na comunidade de Paraisópolis, na zona sul de São Paulo. É um cenário similar ao que permeou meu primeiro contato com o esporte: fui notada pela professora Cleusa de Paula aos 11 anos —uma idade já avançada para começar na ginástica. Ela me viu, hiperativa e pequenininha, brincando na rua cheia de agilidade, e pediu aos meus pais que eu treinasse ginástica artística na Aacete (Associação dos Amigos do Centro Estadual de Treinamento Esportivo).

A anuência veio sob a condição de que eu não descuidasse da escola. Em três anos de esporte, eu já fazia parte da seleção brasileira. A ginástica me encantou; me trazia disciplina e organização, coisas que eu sabia que se tornariam parte de mim independentemente do rumo que eu decidisse tomar. Um ano depois, passei por uma peneira no Grêmio Náutico União e, aos 12 anos, comecei a integrar o time juvenil do clube, treinada pele Adriana Alves e pelo Eliseu Burtet, o Kiko.

Sempre fui curiosa. Queria aprender, e precisava fazer isso muito rapidamente -como comecei tarde, o tempo era curto. Eu era explosiva e forte e, por isso, tinha facilidade com os aparelhos de impulsão, desempenhava bem no salto e no solo. Mas, na trave? Nossa! Não parava em cima dela. Subia por um lado e caía pelo outro. Foi assim durante um bom tempo, e precisei me esmerar um monte até conseguir, simplesmente, parar em cima dela.

Keiny Andrade/UOL Keiny Andrade/UOL

Casa com (mais de) 20 mulheres

O que me ajudou a crescer, entretanto, foi a confiança que sempre depositei no meu treinador —e assim permaneci quando deixamos os campings esporádicos em Curitiba e chegamos à seleção permanente, comandada pelo técnico ucraniano Oleg Ostapenko. Nós vivíamos um momento diferente da ginástica. Antes, eu treinava no União, e só esporadicamente com a seleção brasileira. O Oleg trouxe um formato novo de aprendizado, e todas as 22 atletas passaram a morar juntas em Curitiba, no início de 2001. De um dia para o outro, a equipe estava montada para o Mundial de Anaheim 2003.

Agora, imagine mais de 20 mulheres juntas. Foi complicado, viu? Éramos como irmãs —e irmãs brigam às vezes. Havia conflitos culturais, já que cada uma de nós era de um canto do Brasil. Ainda assim, foi um aprendizado interessante, porque a convivência permitiu que criássemos um elo tão forte que, até hoje, se mantém. Não é só uma amizade, é uma irmandade.

Laís Souza e Daniele Hypólito faziam parte desse elenco. A gente se conhecia de forma tão profunda que nem precisava dizer uma à outra como nos sentíamos. Essa relação se estreitou, também, com nossos treinadores. Esse laço é importante para construir uma equipe, essa doação, essa vontade de entender a demanda do outro. Juntos, construímos não só um grupo forte, como uma amizade, respeito, admiração e —é claro!— competitividade, porque no esporte não tem como ser diferente.

Keiny Andrade/UOL Keiny Andrade/UOL

Esforço exagerado para manter o peso

Emocionalmente, toda essa trajetória não foi simples, mas vamos falar de sacrifícios físicos: estar no patamar mais alto da entidade esportiva do país demanda dedicação e doação acima da média. Para isso, existem peculiaridades do esporte. No caso da ginástica, é preciso ter força. Então, tínhamos de treinar força, subir na corda. Não é em vão: ficamos penduradas em uma paralela pelos braços. As mãos, os antebraços e os ombros precisam de força.

É aí que entra a parte da manutenção do peso, que não é estética. Manter um peso corporal baixo é uma questão de segurança. Aos 25 anos, eu pesava 39,3 kg. E tinha de ter força para aguentar o impacto no solo. A cada aterrissagem, são 150 kg de impacto —agora, imagine isso oito horas por dia, seis dias por semana, praticamente durante todo o ano? É muita coisa.

Além de controlar o peso, passávamos por medição de percentual de gordura e ingeríamos vitaminas. Na época, o trabalho era conduzido só pelos treinadores, que, além de entenderem de técnica, também eram recheados de memórias de família e crendices. Houve exagero? Acho que sim, mas era a informação que todos tínhamos à época.

Eu treinava muito. Me cobrava muito. Não treinar o suficiente seria desprezar o trabalho de toda uma equipe, e entender isso demandou maturidade e compreensão. A ginástica é um esporte de excelência, em que você só perde —a pontuação começa lá no alto e, a cada errinho de performance, é um pouco da pontuação que se vai. A ideia é a busca pela perfeição, sempre foi assim que enxerguei.

Precisa se esforçar muito para não perder pontos. Não é atividade física, é competição constante. Antes de ganhar dos outros, tinha que ganhar de mim mesma todos os dias. Era muito difícil, mas eu fazia porque amava. E, com a ginástica, desenvolvi valores que levo para a vida".

Keiny Andrade/UOL Keiny Andrade/UOL

Recomeço fora do esporte

Esses valores, que continuam me acompanhando, foram imprescindíveis para que eu tomasse a decisão de abandonar a ginástica. Depois das Olimpíadas de Pequim, em 2008, eu, como atleta do Esporte Clube Pinheiros, passei a integrar o programa para os jogos de Londres. No entanto, havia muitas situações limitantes que permeavam minha participação.

Eu havia acabado de terminar a reabilitação de uma cirurgia grande no joelho e estava finalizando a faculdade de Educação Física. Minha cabeça não estava totalmente no ginásio, e isso ficou claro em 2012. Depois de Londres, entendi que já tinha colaborado o máximo com o esporte, como atleta, e que era o fim. Ainda assim, sabia que faltava minha parte como cidadã.

O esporte me fez mudar de vida, me deu formação acadêmica e permitiu que eu conhecesse diversas culturas. A ginástica fez com que eu me descobrisse e me reconhecesse. E tudo isso foi tão grandioso que eu sentia, de algum modo, que deveria proporcionar o mesmo para outras pessoas. Daí veio a ideia do Brasileirinhos —hoje, o projeto atinge 250 crianças.

Keiny Andrade/UOL Keiny Andrade/UOL

Incluir para educar

Esporte é inclusão. Em um país com mais de 55% de população negra, são poucos os que ascendem dentro de empresas e clubes como treinadores ou dirigentes. Temos um problema, né? As pessoas têm de ser bem tratadas independentemente da cor, do credo, da orientação sexual e da condição financeira —e, infelizmente, não é o que a gente vive no Brasil. São assuntos delicados, mas que precisam ser explicados.

Tento fazer isso com amor. Explicar, pacientemente, que não é normal seu amigo preto ser seguido por seguranças no shopping. Precisamos ser o vetor desta desconstrução. Esse extremismo de ódio está aguçado —e isso ficou muito mais claro durante a pandemia.

Antes, gente preconceituosa tinha medo de se expressar. Hoje, essas pessoas se sentem respaldadas, sentem que não serão punidas. Alegam liberdade de expressão, mas ofender a existência do outro não é liberdade de expressão. Essa reflexão é a mais importante, e, para essa e tantas lutas resultarem em mudanças práticas, temos e devemos segurar uns nas mãos dos outros, trabalhar aos poucos —dentro de casa, no trabalho, onde estiver. E mesmo dentro de si mesmo. É isso que busco.

Arte/UOL

Projeto Origens

"Outros têm orgulho das raízes. Por que a gente, africano, não teria? Eu tenho, do que somos e construímos". Em maio, Daiane participou do projeto documental Origens, do UOL, que propôs a 20 personalidades fazer um teste de DNA e descobrir de onde vieram seus ancestrais. Os de Daiane vieram de Angola, como sua avó contava, mas ninguém tinha certeza até agora.

Ler mais
Keiny Andrade/UOL Keiny Andrade/UOL
Lucas Lima/UOL

Minha História

Os Jogos Olímpicos de Tóquio, originalmente marcados para agosto de 2020, foram adiados para 2021. Com todo o mundo impedido de sair de casa, os atletas tiveram de parar, pensar e traçar planos para recomeçar. Para marcar essa etapa, o projeto Minha História, do UOL Esporte, em que grandes nomes do esporte nacional contam, em suas palavras, o que viveram para chegar ao topo, publica relatos dos grandes nomes do esporte brasileiro que devem brilhar no Japão.

A primeira edição teve o campeão olímpico do salto com vara de 2016 Thiago Braz, que fez um relato sincero sobre relacionamentos, como o que está reconstruindo com seus pais, e amizades, como as com o saltador Augusto Dutra, o treinador Elson Miranda e o fisioterapeuta Damiano Viscusi, que morreu em 2017.

Ler mais

+ Minha história

Rafael Roncato/UOL

Nathalie

"Ganhar pelo Brasil é mais intenso": campeã mundial de esgrima diz que não traiu Itália ao escolher competir pelo Brasil

Ler mais
Apu Gomes/UOL

Joaquim Cruz

Campeão olímpico de atletismo conta porque está pronto para voltar ao Brasil após morar por 30 anos nos EUA.

Ler mais
Lucas Seixas/UOL

Fofão

Campeã mundial de vôlei superou cobranças do pai, timidez e uma casa que desabou para chegar ao auge como levantadora.

Ler mais
Marcus Steinmeyer/UOL

Tandara

Campeã olímpica de vôlei conta como lidou com gravidez inesperada a um ano e meio da Olimpíada do Rio, em 2016.

Ler mais
Topo