Outro patamar

Rebeca Andrade conquista ouro no salto e se torna a 1ª brasileira a se sagrar campeã olímpica na ginástica

Demétrio Vecchioli e Denise Mirás Do UOL, em Tóquio (Japão) e colaboração para o UOL, em São Paulo Maja Hitij/Getty Images

A ginástica artística feminina do Brasil é dividida em antes e depois de Daiane dos Santos e Daniele Hypolito. Agora, o dia de hoje também passa a ser um marco divisório. No dia 1º de agosto de 2021, às 18h30 de Tóquio e 6h30 de Brasília, Rebeca Andrade se tornou a primeira mulher brasileira a se sagrar campeã olímpica na ginástica.

Não que a coleção de resultados da ginástica brasileira seja pequena. Daniele Hypolito foi vice-campeã mundial do solo em 2001, Daiane dos Santos conquistou o título no mesmo aparelho em 2003, Jade Barbosa foi a terceira ginasta mais completa do Mundial de 2007 e Flávia Saraiva ganhou três medalhas na Olimpíada da Juventude de 2014.

O ouro olímpico, porém, coloca a ginástica artística feminina em outro patamar. Mais do que isso, coloca Rebeca Andrade, que é apontada desde criança com a grande ginasta revelada no Brasil, em outro patamar, dentro da modalidade, dentro da ginástica brasileira e, de forma geral, no contexto do esporte brasileiro.

Entre as atletas de modalidades individuais, só três brasileiras haviam conseguido, em toda a história da participação do país em Jogos Olímpicos, conquistar a medalha de ouro: Maurren Maggi, no salto em distância, em Pequim-2008, Sarah Menezes, na categoria até 48kg do judô, em Londres-2012, e Rafaela Silva, na categoria até 57kg do judô, na Rio-2016. Agora, Rebeca Andrade, que já tinha sido prata no individual geral, entra nessa lista.

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Segredo a sete chaves

Uma ginasta que faz uma ótima apresentação na trave na fase de classificação das Olimpíadas se classifica para brigar por medalha no aparelho. Mas no salto é diferente. Nesse aparelho, especificamente, vale a média de duas apresentações, em que precisam ser executados dois movimentos diferentes. Não basta ter um truque na manga. É preciso ter dois.

Rebeca sempre os teve, desde os 12 anos, quando já executava o Amanar, um salto considerado de alta dificuldade e de alto impacto para o joelho. Para a brasileira, a articulação passou a ser um problema desde que sofreu sua primeira grave lesão, em 2015. Outras viriam em 2017 e 2019.

Desde então, para preservar o joelho, suas apresentações em competições não são do nível que ela sabe competir. Nos treinos, ela executa o Amanar terminando o exercício no fosso de espuma. Só já em Tóquio, em treino, ela arriscou fazer o exercício em colchão duro, e acertou, o que deu confiança para repetir na final.

"Saltei dupla e meia (Amanar), que é uma coisa que muitas pessoas falavam: 'Ah, não vai dar certo aquilo e outro do joelho dela', mas treinei muito, estava preparada, Se eu ficasse pensando nisso, eu não faria mais ginástica", contou depois da prova.

Na final, ela também executou um Cheng, exercício que ela vinha escondendo e que "vazou" por uma reportagem exibida no Jornal Nacional, porque aparecia ao fundo de uma passagem do repórter Pedro Bassan. "Não coloquei na internet porque acho que é muito melhor surpreender todos aqui, usar tudo que tínhamos. Foi uma decisão muito sábia", avaliou.

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Salto, o queridinho

A primeira lesão no joelho aconteceu em 2015, quando ela tinha 16 anos e finalmente pôde começar a competir entre as adultas. A dois meses do Pan daquele ano, disputado em Toronto, no Canadá, ela sofreu uma lesão no ligamento anterior cruzado e precisou ser operada. Perdeu também o que seria seria o seu primeiro Mundial.

Ela voltaria a sofrer exatamente a mesma lesão em 2017, no treino de pódio do Mundial, e em 2019, no Campeonato Brasileiro, pouco antes do Pan. Nas duas vezes, precisou ser operada e passar por um longo e doloroso processo de recuperação, que dura cerca de um ano.

Por causa dessas lesões, Rebeca não fez, nas duas grandes competições que havia disputado antes de chegar a Tóquio, o segundo salto na classificação, necessário para disputar a final do aparelho. Na Rio-2016, ela teve a quarta melhor nota no salto entre as participantes das eliminatórias. Com mais um salto burocrático para seus padrões, seria finalista. Mas o objetivo era estar inteira para a final do individual geral, onde teria chance de medalha.

Rebeca abriu com um show no salto, com nota menor apenas que Simone Biles (que seria ouro) e Aly Raisman (que seria prata), mas, depois, deixou-se abalar por uma falha nas assimétricas e acabou fazendo apresentações ruins na trave e no solo. Terminou a prova em um decepcionante 11º lugar.

Em 2018, no único Mundial que disputou até hoje, também brilhou no salto. Tirou 14,633 nas eliminatórias, resultado só superado por Simone Biles e pela canadense Shallon Olsen, que acabou medalhista de prata com 14,600 e 14,433. Notas piores que do melhor salto de Rebeca, que não fez o segundo salto e, por isso, nem tentou ir à final.

Laurence Griffiths/Getty Images

Medalha pelo Chico

O ouro de Rebeca veio exatamente na primeira vez em que ela disputou uma final internacional no salto. Mais do que isso: na primeira vez em que ela tentou se classificar para uma final de salto. Por causa desse histórico de lesões, ela sempre foi poupada de mostrar todo seu talento no aparelho. Agora, inteira de corpo e de cabeça, o potencial virou realidade.

Na final de hoje, Rebeca foi a terceira a se apresentar e começou com o Cheng, em que ginasta faz uma entrada em rodante, um meio-giro na primeira fase de voo e um mortal estendido para frente, com um giro e meio na segunda fase de voo. A nota de dificuldade é 6,0 e a apresentação de Rebeca não foi do mesmo nível das anteriores, nas eliminatórias e na final por equipes. Tirou 15,166, contra 15,400 das eliminatórias.

Para brigar pelo ouro, a brasileira precisaria de uma segunda apresentação de "outro patamar", e foi isso que ela fez. Sabendo que o Yurchenko com duplo twist, do grupo 5,4, apresentado nas eliminatórias, poderia não ser suficiente para o ouro, ela mudou para um Amanar, de 5,8, mas que força bastante o joelho. Com nota de execução 9,2, recebeu 15,000. Média de 15,083.

A próxima a se apresentar, Jade Carey, dos Estados Unidos, tinha nível para superar isso. Mas a americana errou no primeiro salto, recebendo só 11,933, e deu adeus à disputa pelo pódio, ficando bastante abalada.

Na sequência, um susto. A sul-coreana Yeo fez um salto de nota de dificuldade 6,2 e alcançou nota 15,333. Se ela tivesse outro bom salto, nem precisava ser ótimo, ficava na frente de Rebeca. Mas ela não tinha, tanto que ficou com o bronze. Aí foi só esperar as apresentações das demais atletas, mais fracas no salto, para o ouro ser confirmado.

Depois de dedicar a primeira medalha às ginastas que a antecederam, dessa vez Rebeca dedicou a conquista ao treinador que esteve ao lado dela desde o início de carreira, Francisco Porath Neto, o Chico. "Acho que fico mais feliz com a felicidade dele que com a própria medalha, porque a gente trabalhou muito desde sempre. A única forma que posso fazer ele se sentir bem é com a minha ginástica."

Jonne Roriz/COB

Ainda tem o solo

Na segunda-feira (2), Rebeca ainda disputa a final do solo. Embalada pelo 'Baile de Favela', a brasileira pode conquistar mais uma medalha --e somar três, ao fim da competição. Assim que deixou o primeiro lugar do pódio depois do ouro no salto, a atleta, em entrevista, falou sobre as expectativas da competição de amanhã. "Meu foco não são as medalhas, mas me sentir pronta, me sentir feliz e me divertir".

REUTERS/Lindsey Wasson

A primeira medalha

Rebeca Andrade conquistou, também, na última quinta-feira (29), a primeira medalha olímpica da ginástica artística feminina. A de hoje é a segunda. Na prova que define a ginasta mais completa do mundo, o individual geral, em que vale a soma das notas dos quatro aparelhos, a brasileira só não foi melhor que a americana Sunisa Lee. Terminou na 2ª colocação, com 57.298 pontos e a prata.

AFP Photo

Lesões fizeram Rebeca pensar em desistir

Rosa Braga, mãe de Rebeca, é a responsável pela medalha inédita de hoje. Quando a filha operou o joelho pela terceira vez, pensou em desistir. "Essa conversa foi quando ela desmoronou. Quando ela realmente desistiu. Eu e ela, as duas, chorando. Mas me veio uma luzinha. Tive de deixar um pouco o lado de mãe, quando ela chorava dizendo que queria voltar para casa, e virar para o lado de incentivadora, dizendo a ela que ao menos se desse mais uma chance. Que tentasse voltar aos treinos e sentisse seu corpo. Ela ouviu. Dois dias depois me ligou, contente, dizendo que tinha treinado e resolvido ficar no Rio. Falou: 'O joelho não está doendo!'. Ela se recuperou muito rapidamente", conta Rosa.

Uma das características destacadas em Rebeca, diz ela, é escutar conselhos — e absorver. "Naquela conversa, eu falei com ela para não desistir antes de tentar, para só então decidir se iria parar ou não. Que às vezes temos obstáculos que precisamos vencer. Não sei o que deu em mim, mas algo me dizia que ela iria conseguir."

Rebeca é filha de Ricardo, primeiro marido de Rosa, com quem teve cinco filhos. Do segundo casamento, são mais três. "A Rebeca é a quinta, dos oito. Sempre ouviu os mais velhos e mostrou responsabilidade, determinação."

São seis homens e duas mulheres, entre 32 anos e 14, e todos esportistas. Os três mais novos também estão na ginástica: Yago, de 18; Henrique, de 16, e Igor, de 14. No momento, parados, esperando o retorno aos treinos, que dependem da prefeitura de Guarulhos para sua continuidade.

Jamie Squire/Getty Images

Go, Rebeca!

Rebeca Andrade gosta de silêncio antes de entrar em cena. Os companheiros brasileiros, todos, sabem da preferência da atleta. E respeitam. Flávia Saraiva (que ainda disputa final da trave), Arthur Zanetti (faz final das argolas) e Caio Souza (na final do salto), respeitaram o silêncio.

Quem talvez não saiba da preferência era Simone Biles, a americana favorita a seis medalhas no início das Olimpíadas, que se afastou da competição para cuidar da saúde mental. Empolgada com a performance de Rebeca nas disputas anteriores, Biles voltou a demonstrar apoio à brasileira, rompendo —por um bom motivo — o ritual silencioso dela.

"Go, Rebeca", gritou Biles várias vezes enquanto a ginasta se preparava para saltar. O incentivo era facilmente perceptível no ginásio, que estava em silêncio esperando a apresentação.

Após o segundo salto da brasileira, Biles aplaudiu bastante e demonstrou ansiedade na divulgação das notas, que acabaram coroando Rebeca com o título que a colocou na história da ginástica do país. Biles mais uma vez aplaudiu.

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