Baile da Rebeca

Rebeca Andrade conquista o mundo com carisma e funk para ser vice-campeã olímpica da ginástica

Demétrio Vecchioli Do UOL, em Tóquio (Japão) Jonne Roriz/COB

Rebeca Andrade já estava no meio de sua apresentação do solo quando Baile de Favela começou a tocar. Sentada no primeiro degrau da arquibancada lateral, ao lado de companheiras de equipe dos EUA, Simone Biles começou a bater palmas no ritmo que embalava a brasileira.

Sim, o maior nome da história da ginástica artística ouviu o funk 100% brasileiro e se empolgou. A maior parte dos assentos de madeira do Centro de Ginástica Ariake estava vazio, mas havia calor humano dentro do ginásio, vindo de ginastas, comissões técnicas, voluntários e jornalistas. Por alguns segundos, parecia que as Olimpíadas de Tóquio eram disputadas com público.

Biles deveria estar na área de competição, mas, por razões pessoais, estava na arquibancada, onde já havia aplaudido Rebeca Andrade nas barras assimétricas, em um gesto efusivo flagrado pela televisão. Na apresentação do solo, porém, a reação foi icônica. Um prêmio para uma garota preta como ela que realizava um sonho.

Um sonho sonhado por Daniele Hypólito, Daiane dos Santos, Laís Souza e Jade Barbosa, todas medalhistas em Campeonatos Mundiais, mas que não conseguiram o pódio olímpico. Ele, o pódio olímpico, demorou, mas veio. No peito de Rebeca Andrade que hoje é a segunda melhor ginasta do mundo, vice-campeã olímpica do individual geral.

O ouro foi para outra ginasta, a norte-americana Sunisa Lee, mas isso é o que menos importa. Porque Tóquio é Baile de Favela e Rebeca não deve parar de comemorar tão cedo.

Jonne Roriz/COB
Jonne Roriz/COB

A dois passos do ouro

No Brasil, nos acostumamos a definir uma ginasta pela música escolhida para se apresentar nos exercícios de solo. O Brasileirinho de Daiane dos Santos é lembrado até hoje mesmo sem ter valido uma medalha de ouro. Vai acontecer o mesmo com Rebeca e o Baile de Favela e, daqui a alguns anos, os quatro aparelhos, mesmo os que não têm trilha sonora, terão o funk ao fundo.

O dia da nova vice-campeã olímpica começou com o salto, sua especialidade, em que teve execução perfeita para receber 15.300 e sair na frente da disputa, mesmo com nota mais baixa que nas qualificatórias. Uma apresentação irretocável nas barras assimétricas, em série ainda mais difícil do que apresentou nas eliminatórias, manteve a brasileira na frente entre as 24 finalistas, com nota de 14.666.

Sua maior adversária, a americana Sunisa Lee, tirou a diferença no terceiro quesito, a trave. Rebeca chegou a figurar na terceira posição, mas um recurso em sua nota na trave — que passou de um duvidoso 13.566 para um ainda criterioso 13.666 — a colocou na vice-liderança antes do último aparelho, o solo.

Na decisão, agora, sim, com música, a americana fez uma prova perfeita, daí o ouro. Rebeca cometeu dois pequenos erros, que custaram 0.40 e valeram a prata, mas não tiraram o brilho de sua competição. Sua apresentação foi a que mais contagiou o público no ginásio. E a medalha coroa um caminho de glórias e finca o Brasil como uma potência mundial da modalidade.

Ricardo Bufolin/CBG Ricardo Bufolin/CBG

A ginástica brasileira no topo do mundo

De todas as 12 maiores economias do mundo, só a Índia, que não tem tradição em Olimpíada, não participou da final de hoje. A disputa pelo posto de melhor ginasta do mundo, afinal, é uma peça no xadrez da geopolítica internacional. China, Rússia e Estados Unidos têm imensas estruturas para formar atletas, são donos cada um de uma consolidada escola de ginástica, e fazem de tudo para sair com medalhas.

Uma brasileira, porém, se enfiou nesse meio. Uma garota que morava com oito irmãos em uma pequena casa nos fundos de um sobrado em Guarulhos, que era tudo que dona Rosa podia pagar. Quando uma garota assim chega onde Rebeca chegou hoje, não há como não falar em superação.

Mas a vitória de Rebeca é também a também a vitória de um país. Convidada para treinar no Flamengo ainda criança, pegou a Via Dutra e repetiu o caminho feito por Diego e Daniele Hypolito uma década e meia antes. Desde muito cedo, foi tratada como joia, olhada com carinho pelo clube e pela Confederação Brasileira de Ginástica (CBG).

Aos 12 anos, já era a melhor ginasta do país, campeã brasileira em 2012, à frente da Daniele Hypolito e Jade Barbosa. Poderia ter ido aos Jogos Olímpicos de Londres aos 13, ainda mais jovem do que Rayssa Leal, vice-campeã olímpica de skate, veio a Tóquio, e teria chances reais de brigar por medalha. Mas a ginástica impõe uma idade mínima, para preservar crianças e adolescentes, e a estreia teve que esperar até o ano em que Rebeca fez 16 anos, 2015.

Só que, junto com o ano da maioridade esportiva, vieram também as lesões. Em 2015 mesmo, a primeira, que a deixou fora do Pan de Toronto (CAN) e do Mundial de Glasgow (ESC) daquele ano. Em 2016, já chegou à Olimpíada do Rio cotada para uma medalha. Foi terceira da fase de classificação no individual, mas se desequilibrou emocionalmente após falhar nas barras assimétricas. Com erros na trave e no solo, ficou apenas na 11ª colocação.

Eu estou feliz demais. Passei por muita coisa. Eu tinha essa Olimpíada como meu objetivo, queria fazer o meu melhor e brilhar da maneira possível. E eu acho que brilhei! Todas as atletas que passaram pela ginástica feminina estão aqui nesta medalha, elas fazem parte desta história. Esta medalha é mais um passo desta geração, e espero que as próximas consigam suas conquistas também. Eu não seria nada sozinha."

Rebeca Andrade

A emoção de quem veio antes

AFP PHOTO / LLUIS GENE

Daiane dos Santos

"Agora a gente tem a primeira medalha do Brasil na ginástica artística com uma negra. Isso é muito forte. Até pouco tempo os negros não podiam competir em alguns esportes. É uma menina que veio de origem humilde, criada por uma mãe solo, veio de várias lesões para ser e a segunda melhor atleta do mundo."

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Kazuhiro Nogi/AFP

Jade Barbosa

"Eu fico muito emocionada porque eu sei o quanto a Rebeca treinou, o quanto que o Chico [o treinador] teve que, às vezes, tirar dela durante o treinamento, não é todo dia que a gente acorda querendo ser campeã olímpica. Os técnicos que proporcionam a motivação durante esse período todo, eu sabia era um momento crucial."

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Eduardo Knapp/Folha Imagem

Laís Souza

"Eu tava chorandinho aqui. A gente esperou por isso por muito tempo. Treinamos e essas horas acumuladas valeram a pena com a Rebeca. Foi um trabalho de equipe. Ela teve muito sangue frio, a dedicação diária foi essencial, e o psicológico, para ter criado a bolha dela, não ter errado em nenhum momento."

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Jonne Roriz/COB

Demorou, mas a hora chegou

Se Londres não foi a Olimpíada de Rebeca por causa da idade e a do Rio pelo psicológico, em Tóquio os fatos convergiram para que ela saísse consagrada. Incluindo as pedras que encontrou pelo caminho. A ginasta brasileira sofreu novas lesões em 2017 e 2019.

Essa última, um ano antes da data em que estava marcada originalmente a Olimpíada de Tóquio-2020, realizada em 2021. Essa lesão quase custou sua participação olímpica. Machucada, não foi ao Mundial em que o Brasil falhou em se classificar como equipe. Com isso, teve de correr contra o tempo para disputar uma etapa da Copa do Mundo, em março, com a recuperação da lesão ainda recente. Aquele torneio parou antes da final, porque o mundo começava a viver a pandemia do coronavírus. E a sorte passou a sorrir para a brasileira, finalmente.

O adiamento dos Jogos foi benéfico e Rebeca ganhou um ano a mais para se preparar para o Campeonato Pan-Americano, em junho, que a classificou para Tóquio-2020. Foi ali que ela mostrou que não só viria a Tóquio, como viria para ser protagonista.

No Japão, já impressionou no treino de pódio, um spoiler do que seria a competição, e depois brilhou na fase de classificação, ficando atrás apenas de Simone Biles. A norte-americana é a melhor do mundo desde 2013, mas desistiu da final de hoje depois de sentir-se desconfortável na final por equipes, anteontem.

Ainda não se sabe se Biles vai participar das finais por aparelhos, na semana que vem. Rebeca vai e tem duas chances de medalha. No salto, a final é domingo, às 5h45 (horário do Brasil). Ela avançou com a terceira melhor nota e tem chances reais de ouro, especialmente se Biles não competir. Já no solo a final é segunda, no mesmo horário. Na classificação, Rebeca foi quarta.

Mustafa Yalcin/Anadolu Agency via Getty Images

Rebeca sobre Biles: "Foi Guerreira"

"A maneira como ela saiu da final não foi por um bom motivo. As pessoas precisam entender que não somos robôs, mas seres humanos. Tenho orgulho que ela tenha pensado em si em primeiro lugar. Ela é uma atleta dos EUA, então imagina a pressão gigante que ela deve sofrer! E ela deve se cobrar também. Ela é a melhor do mundo. Imagina você chegar em uma competição pensando que precisa ganhar. Fico triste, ela foi muito guerreira e precisa pensar nela em primeiro lugar. Se você está com a cabeça boa, consegue fazer tudo direito. Agora é um passo de cada vez. Ela vai voltar e arrasar com todo mundo de novo."

O dia em que Rebeca desabou

Essa história que você está lendo, porém, só terminou assim por causa de uma mulher: Rosa Braga. Foi a mãe de Rebeca quem, em uma conversa depois da terceira cirurgia da filha no joelho direito, que a convenceu: deveria ao menos tentar voltar aos treinos. Se não se sentisse bem, seria recebida com todo carinho da família na volta à casa, em Guarulhos.

Aos 20 anos, a ginasta aceitou. "Essa conversa foi quando ela desmoronou. Quando ela realmente desistiu. Eu e ela, as duas, chorando. Mas me veio uma luzinha. Tive de deixar um pouco o lado de mãe, quando ela chorava dizendo que queria voltar para casa, e virar para o lado de incentivadora, dizendo a ela que ao menos se desse mais uma chance. Que tentasse voltar aos treinos e sentisse seu corpo. Ela ouviu. Dois dias depois me ligou, contente, dizendo que tinha treinado e resolvido ficar no Rio. Falou: 'O joelho não está doendo!'. Ela se recuperou muito rapidamente", conta Rosa.

Uma das características destacadas em Rebeca, diz ela, é escutar conselhos — e absorver. "Naquela conversa, eu falei com ela para não desistir antes de tentar, para só então decidir se iria parar ou não. Que às vezes temos obstáculos que precisamos vencer. Não sei o que deu em mim, mas algo me dizia que ela iria conseguir."

Rebeca é filha de Ricardo, primeiro marido de Rosa, com quem teve cinco filhos. Do segundo casamento, são mais três. "A Rebeca é a quinta, dos oito. Sempre ouviu os mais velhos e mostrou responsabilidade, determinação."

São seis homens e duas mulheres, entre 32 anos e 14, e todos esportistas. Os três mais novos também estão na ginástica: Yago, de 18; Henrique, de 16, e Igor, de 14. No momento, parados, esperando o retorno aos treinos, que dependem da prefeitura de Guarulhos para sua continuidade.

Jonne Roriz/COB

"Eu me conectei comigo mesma"

"Não são somente as do joelho, né? Tenho uma em cada pé, fiz outras cirurgias para retirar fibroses do joelho. Fazer tudo isso tão jovem é complicado. As pessoas te moldam e te mudam. Eu tive acompanhamento psicológico desde os 13 anos de idade, e do ano passado pra cá coloquei em prática o fato de não ficar nervosa, de manter o controle, de fazer na competição tudo o que eu realizava no treino. Passei por um processo de me conhecer melhor. A pandemia foi incrível para mim, tanto para a recuperação do meu joelho quanto para meu psicológico. Aprendi a me enxergar e a me conhecer melhor, a saber o que eu precisava, a perceber o que era bom e ruim. Eu me conectei comigo mesma."

A escolha do Baile de Favela

Ao ser questionada sobre que música escolheria para representar a medalha de prata, Rebeca Andrade apontou uma canção evangélica. Sabor de Mel, da cantora Damares, fala de volta por cima, de ser alguém especial mesmo quando tudo parece dar errado. Uma hora, vai dar certo.

Você é um escolhido; E a tua história não acaba aqui; Você pode estar chorando agora; Mas amanhã você irá sorrir."

Para Rebeca, depois de três cirurgias no joelho, soava biográfica. "Sou muito grata a Deus. Se não fosse pela fé e meu lado espiritual, não estaria aqui hoje. Eu não queria mais continuar, mas muitas pessoas falavam para eu não parar. Voltei melhor todas as vezes em que tive que parar. Estou muito grata. Essa medalha tem sabor de mel", afirmou.

A escolha musical tem a cara do Brasil. Porque, na mesma entrevista que citou uma música evangélica, Rebeca comentou a música escolhida por um coreógrafo para embalar a sua apresentação de solo e disse que se identifica com o funk.

"O funk é um dos estilos mais escutados, é cultura brasileira. Eu adoro funk, as batidas são demais! Fico feliz em saber que todo mundo gostou e que deu repercussão. Está sendo incrível. Sou preta, e quero representar todas as cores. Os pretos, brancos, todas elas. As pessoas querem ser você, serem parecidas com você. Eu acredito que eu tenha feito isso, trazendo essa música (Baile de Favela) para cá."

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