Só os loucos sabem

Rebeldes, estilosos e sustentáveis: skate e surfe levam valores da geração Z para dentro da Olimpíada

Felipe Pereira Do UOL, em Tóquio (Japão) Patrick Smith/Getty Images

Skate e surfe chegaram chegando, bagunçando a zorra toda. Ítalo Ferreira, Gabriel Medina e Rayssa Leal são os nomes mais comentados das Olimpíadas de Tóquio-2020. Tem a ver com as medalhas, sim, e também com a treta Yasmin Brunet e COB e o veto para que a mulher de Medina não fosse a Tóquio. Mas a verdade é que as pessoas só prestam atenção com aquilo que se importam. E skate e surfe importam, e muito, para uma parcela importante da população.

"Skate e surfe delimitam uma mudança geracional no esporte", diz Sereno Moreno, diretor de planejamento da Box 1824, um bureau de tendências que faz estudos para marcas como Globo e Nike. Skatistas e surfistas cativam um público menos envolvido com às Olimpíadas, os jovens entre 14 e 24 anos. Chamados de Geração Z, eles se conectam a Tóquio-2020 por meio de valores representados pelos praticantes das duas modalidades. No lugar da disciplina e do sacrifício necessários para ganhar um milésimo de segundo, entra o estilo de ficar "de boas" e relaxar.

"O olhar da Geração Z nasce de um mundo excessivo. Excesso de conteúdo, de possibilidades e de pressão para fazer tudo. Vai para esporte e ele é focado na performance, na tensão para obter resultado. [Isto] Coloca mais desconforto na Geração Z e gera desconexão. Não há sensação de prazer ou de relaxamento. O surfe e o skate desconectam deste gatilho de colocar no limite. E a ansiedade talvez seja o maior problema da geração. No trabalho, na educação", resume Modesto.

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Ezra Shaw/Getty Images Ezra Shaw/Getty Images

Lifestyle e rebelde

Falando no conceito fica meio cifrado, mas é assim. As roupas, tênis, penteados, tatuagens, músicas e posturas de surfistas e skatistas traduzem esta nova forma de lidar com um mundo com excesso de informações e possibilidades. E o tal do lifestyle destes dois esportes emerge mesmo quando enquadrados —e é isso que aconteceu nos Jogos Olímpicos. As duas modalidades tiveram de aceitar uma série de limites para virarem olímpicas.

Em Tóquio, por exemplo, Leticia Bufoni teve que se enfiar num uniforme padrão. Mas os cabelos vermelhos, o braço fechado de tatuagens, o piercing no nariz e o jeito desencanado de falar revelam que ela é diferente da fauna dos atletas de esportes tradicionais.

E são dois esportes conhecidos por desafiar a ordem. A organização de Tóquio-2020 proibiu andar de skate na Vila Olímpica por questões de segurança e de contenção de covid-19. Pamela Rosa, número um do mundo, colocou as coisas no lugar. "Falei para o pessoal da organização que sinto muito, mas vocês vão me ver andando para lá e para cá de skate, não quero nem saber."

Wally Skalij/Los Angeles Times via Getty Images Wally Skalij/Los Angeles Times via Getty Images

Movimento friamente calculado

Ícone do surfe em ondas gigantes, Carlos Burle conta que os esportistas atletas têm consciência dos motivos que os fizeram ser recrutados pelo COI (Comitê Olímpico Internacional). "Fica claro pra gente que os Jogos Olímpicos estão querendo se reinventar, se renovar, trazer um público mais jovem. Ter um engajamento diferente".

De fato, o movimento olímpico incorporou o surfe e o skate para rejuvenescer o público. Faz sentido porque os grandes grupos empresariais estão de olho nestes esportes. O diretor de planejamento da Box 1824 conta que em 2015 a empresa foi contratada pela Globo para mapear o consumo das duas modalidades. Moreno declara que o estudo revelou que o skate carrega a cultura underground e se popularizou. O surfe ainda é um esporte de nicho porque há mais dificuldade de praticar.

O skate carrega mais o espírito jovem e transgressor. A perspectiva da liberdade e lifestyle urbano."
Sereno Modesto, da Box 1824

Hexacampeão mundial de skate, Sandro Dias concorda que a facilidade em dar um rolê ajuda muito o skate. Ele acrescente que os esportes tradicionais exigem infraestrutura com pouca disponibilidade. "Eu gosto de badminton, mas não é acessível. Você não vê ninguém jogando nas praças públicas."

Ryan Pierse/Getty Images Ryan Pierse/Getty Images

Grande família

A comunidade do skate sempre se orgulhou de ser um esporte de brothers e onde os adversários não são vistos como inimigos. Eis que na primeira Olimpíada do esporte uma medalha, e justamente de um brasileiro, coloca esse conceito em xeque. O paulista Kelvin Hoefler, vice-campeão olímpico do skate street, expôs um racha na seleção brasileira —mostrando que toda família tem seus conflitos.

Mas a camaradagem também apareceu na pista montada em Tóquio. Kelvin bateu no peito e subiu a rampa onde os atletas ficam quando encaixou a manobra que garantiu a prata. O peruano Angelo Caro (esse chutando o skate nas fotos acima) esperava o brasileiro com os braços abertos para um abraço.

Na fase de classificação foi ao contrário. Caro precisava de nota e recebeu conselhos de Kelvin. Sandro Dias declara que o espírito dominante do skate é este. Ele acrescenta que o esporte leva para dentro das Olimpíadas o espírito das ruas, a liberdade para contestar as regras e diferentes personalidades. "Cada skatista é de um jeito. Um tá com calça rasgada, outro tá de camisa social, outra usa calça jeans e camiseta."

Ainda que existam diferenças, há características comuns a quem faz parte do cenário. No lugar de repetir frases ensaiadas à imprensa, skatistas metem palavrão nas respostas, abusam das gírias e não se vendem como guerreiros abnegados que fazem tudo pela vitória. Estão curtindo o rolê.

Rayssa Leal virou assunto e figurinha de WhatsApp por dançar na pista na final da Olimpíada. Agia como se estivesse ensaiando para um vídeo que postaria no TikTok. "Eu tento o máximo me divertir porque eu tenho certeza que me divertindo as coisas fluem. Deixa acontecer naturalmente. E estar dançando ali é muito engraçado."

Jonne Roriz/Jonne Roriz/COB Jonne Roriz/Jonne Roriz/COB

Surfe: embaixador da natureza

Uma característica que une surfe e skate é permitir expressar a individualidade e o estilo. Tudo a ver com o intervalo dos 14 aos 24 anos da geração Z, uma faixa etária de experimentar coisas e de afirmação da personalidade. E o surfe carrega valores muito caros a este público.

"O Surfe é o esporte que entrega saúde corporal e saúde do planeta. Ele pressupõe cuidados com a natureza para a prática. Depende do mar, das condições da natureza. Os debates sobre a sustentabilidade fazem que o esporte que lida com natureza seja protagonista. Surfistas são embaixadores do cuidados com corpo e com o meio ambiente", afirma Sereno.

Carlos Burle cita ainda a questão do cuidado com a consciência pessoal e a espiritualidade. "A gente [surfistas] pode levar uma palavra de sustentabilidade. O relacionamento com a natureza é muito intrínseco, é muito profundo. E temos um gesto de cuidado maior com as relações pessoais."

Olivier Morin/Reuters Olivier Morin/Reuters

Espírito do tempo

O skate e o surfe têm mais conexão com o espírito do tempo em que vivemos. Seus valores refletem as questões da sociedade e seus atletas refletem leituras desta situação. E não é consequência da idade. Ainda que outros esportes não tenham uma pré-adolescente de 13 anos competindo, como Rayssa Leal, há muitos jovens nas outras modalidades do time Brasil em Tóquio.

A identificação com surfistas e skatistas existe porque eles não cresceram na dobradinha hierarquia e disciplina. Quando os millenials descobriram que são cringes, ficaram ofendidos por saber que Harry Potter é coisa de tiozão. Esta é a parte menor da mudança. Mais que zoar os mais velhos, a Geração Z começa a ditar como será o mundo.

Modesto afirma que trazer atletas que compartilhem os mesmos dilemas e valores é o primeiro passo para Jogos Olímpicos chegarem mais perto dos mais jovens. Mas não é o trabalho completo. "Acho que é um passo de rejuvenescer. Fica mais jovem, mas precisa aproximar a juventude destes personagens."

Na final, Rayssa estava na pista ao som de Charlie Brown, a banda de Chorão, um skatista com o escritório na praia e que sabia o que é "tomar um rola" (queda) e "vento terral" (que sopra da terra para o mar). As Olimpíadas também precisarão saber se quiserem continuar importantes.

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