Não deixe o samba morrer

Seleção feminina vê final olímpica em casa pela 3ª vez, mas trabalho de Pia sugere dias melhores

Gabriel Carneiro Do UOL, em São Paulo REUTERS/Amr Abdallah Dalsh

Suécia e Canadá decidem amanhã (6) quem fica com a medalha de ouro no futebol feminino das Olimpíadas de Tóquio.

A seleção brasileira passou longe desta vez: caiu justamente para as canadenses nas quartas de final, nos pênaltis. É só a segunda vez em sete edições desde a inclusão da modalidade no programa olímpico em que o país não entra na briga por medalha. Além disso, é a terceira final consecutiva sem o Brasil no provável último suspiro de algumas jogadoras que formaram a geração que conquistou a prata em Pequim-2008, como Formiga — que já anunciou sua aposentadoria da seleção.

Tudo isso poderia indicar que o futebol feminino brasileiro vai ladeira abaixo em relação à competitividade, mas a visão de quem trabalha e acompanha o esporte no país e foi ouvido pelo UOL Esporte é que existe um caminho positivo sendo traçado com investimento e organização, além do trabalho da técnica Pia Sundhage.

A decisão da CBF (Confederação Brasileira de Futebol) de manter a sueca no comando é pela certeza de que a Copa do Mundo de 2023 na Austrália e na Nova Zelândia e as Olimpíadas de 2024 em Paris podem traduzir melhor do que Tóquio-2020 o trabalho realizado ao longo dos últimos dois anos. É como no simbolismo da mensagem da Rainha Marta depois da eliminação: "não deixe o samba morrer".

REUTERS/Amr Abdallah Dalsh
Koki Nagahama/Getty Images

Os dois anos com Pia

Pia foi anunciada pela seleção em 25 de julho de 2019, com o bicampeonato olímpico no currículo. Já somando os Jogos de Tóquio-2020, além de amistosos e torneios preparatórios, são 22 partidas no comando da amarelinha, com 13 vitórias, sete empates e duas derrotas, num aproveitamento de 69,7% dos pontos disputados.

O Brasil fez 58 gols e sofreu 11 sob o comando da sueca, que teve um hiato de mais de oito meses sem jogos durante seus dois anos de trabalho em razão da pandemia de covid-19. Na prática, então, Pia teve 16 meses disponíveis para montar o elenco e estabelecer um sistema de jogo diante de uma transição de gerações e com uma nova comissão técnica — e estrangeira.

Alline Calandrini, ex-jogadora da seleção feminina e hoje comentarista da modalidade na Band, acha cedo para tirar conclusões definitivas: "Eu vejo com muitos bons olhos o trabalho da Pia, mas vejo algo mais para frente, porque ela assumiu outro trabalho, com só meio ciclo e pandemia no caminho. É uma mulher muito experiente, que vai agregar muito dentro e fora de campo."

Pia teve cinco anos de trabalho como técnica dos Estados Unidos e outros cinco dirigindo a Suécia. O tempo é um fator importante na consolidação do trabalho, como nota a comentarista: "Não concordo com todas as escolhas dela, mas acredito que ela terá um trabalho bem feito a médio e longo prazo e já vimos em alguns jogos uma evolução."

Agora ela [Pia] fará um trabalho 100% autoral, com uma geração que ela vai escolher dentro dessa mudança de ciclo. Estou bem confiante que o trabalho será bem feito e que é o momento da modalidade começar a colher os frutos do que está sendo plantado. Estou esperançosa com o que está por vir após essa Olimpíada."

Alline Calandrini, Ex-jogadora da seleção e comentarista esportiva

Legado das Olimpíadas

Sam Robles/CBF

Fortaleza

A dupla de zaga Érika e Rafaelle (foto) foi bem. O Brasil sofreu três gols (todos da Holanda) em quatro jogos, sendo dois em falhas da goleira Bárbara. A força defensiva do ponto de vista coletivo é um ganho de Tóquio-2020, que mostrou um time com organização tática para neutralizar adversárias inclusive sem bola e força em duelos pessoais rasteiros e pelo alto.

Sam Robles/CBF

Renovação

De 73 atletas convocadas por Pia desde a chegada, 13 estrearam na seleção. Das 22 que foram para as Olimpíadas, nove jamais haviam estado lá. Já entre as nove debutantes, só a goleira reserva Letícia não jogou. A meia Duda foi titular em três jogos, fez boa competição e mostrou que a renovação de nomes já com rodagem é um caminho. Ela joga no São Paulo e tem 26 anos.

Mariana Sá/CBF

Pós-Cristiane

A ausência de Cristiane na lista de convocadas causou polêmica, mas as atacantes que fizeram parte do grupo não decepcionaram. Bia Zaneratto, Ludmila e Debinha balançaram as redes nas Olimpíadas. Nesta transição de gerações era importante que nenhuma passasse em branco e carregasse o peso para o futuro. O Brasil fez nove gols.

Sam Robles/CBF

Competitividade

Fora da lista original de 18 convocadas, Andressa Alves apareceu só entre os quatro nomes da lista B, mas foi uma reserva acionada em três jogos, começou jogando outro e fez dois gols. Isso mostra que o Brasil de Pia não se resume a 11 titulares e pode contar com disputas no novo ciclo. Outras reservas que entraram bem foram Angelina, Julia Bianchi, Poliana e Geyse.

Brasil desde a prata em 2008

  • Copa do Mundo 2011

    Na Alemanha, a seleção foi eliminada nas quartas de final pelos Estados Unidos. Empate em 2 a 2 no tempo normal e derrota por 5 a 3 nos pênaltis. O Japão foi campeão.

    Imagem: Scott Heavey/Getty Images
  • Londres-2012

    Brasil foi eliminado nas quartas de final pelas campeãs mundiais do Japão, derrota por 2 a 0 e sem medalha. Desta vez o título ficou com os Estados Unidos.

    Imagem: Ben Radford/Corbis via Getty Images
  • Copa do Mundo 2015

    No Canadá, a seleção caiu ainda mais cedo, nas oitavas de final. Derrota por 1 a 0 para Austrália na edição vencida pelos Estados Unidos com três gols de Carli Lloyd na final.

    Imagem: Clive Rose - FIFA/FIFA via Getty Images
  • Rio-2016

    Mesmo jogando em casa, o Brasil não conseguiu ir além das semifinais. Foi eliminado pela Suécia nos pênaltis e ainda perdeu a disputa pelo bronze para o Canadá.

    Imagem: Buda Mendes/Getty Images
  • Copa do Mundo 2019

    Na França, a seleção caiu nas quartas de final para as donas da casa, derrota por 2 a 1 com um gol na prorrogação. O título ficou com a seleção dos Estados Unidos.

    Imagem: Vanessa Carvalho/Folhapress
  • Tóquio-2020

    A busca pelo sonhado ouro olímpico continua. Desta vez, a seleção caiu nos pênaltis para o Canadá nas quartas de final e nem sequer disputou medalha.

    Imagem: Mike Ehrmann/Getty Images
Koki Nagahama/Getty Images

O naufrágio do "samba style"?

Apesar de a última eliminação ter sido nos pênaltis e de a campanha ter tido pontos positivos, o desempenho do Brasil não foi suficiente para uma colocação melhor por uma série de razões. Uma das mais destacadas é o fato de Marta não brilhar.

A camisa 10 foi escalada na maioria dos jogos como meia pelo lado esquerdo no esquema tático 4-4-2, mas com obrigação de sustentar as subidas para o ataque da lateral Tamires e marcar as laterais adversárias, uma função que a esgotou em todos os jogos — só não foi substituída na eliminação. O que tinha cara de organização tática na verdade restringiu o talento da melhor jogadora do Brasil, mesmo veterana.

Esse jogo menos instintivo faz parte do plano de Pia. Ela assumiu um time pouco coletivo e dependente de individualidades e transformou em um time muito coletivo, mas com a pendência de ajustes para permitir que os diferenciais técnicos se sobressaiam. A sueca esperava mostrar isso em Tóquio, até apelidou seu plano de jogo de "samba style", mas falhou.

A treinadora também bancou a titularidade da goleira Bárbara, uma decisão questionada por pessoas que acompanham o futebol feminino desde o início do ciclo. Ela falhou em dois gols da Holanda ao longo da campanha. Por fim, chamou atenção o envelhecimento da seleção em Tóquio-2020, com nove jogadoras acima de 30 anos. Em meio aos debates sobre a renovação do elenco e suas decisões, Pia passa a sentir a pressão do cargo.

A cobrança sobre Pia deve ser maior a partir de agora. Ela teve o primeiro grande desafio à frente da seleção num torneio de grande porte e é natural que se pregue que ela tenha mais tempo de trabalho. Se formos comparar, o antecessor comandou a seleção em duas Copas, duas Copas Américas, um Pan-Americano e uma Olimpíada. A tendência é que a cobrança sobre Pia seja mais dura que a enfrentada por Vadão por diversos fatores. Primeiro por ela ser uma técnica mundialmente reconhecida e vitoriosa. Segundo pelo fato de o futebol feminino ter conquistado maior visibilidade nos últimos dois anos. Com isso, há também maior cobrança de um público exigente por resultados."

Juliana Arreguy, Repórter do UOL

A cobrança sempre existe, principalmente quando o resultado não vem e por parte de quem acompanha a modalidade a cada quatro anos. Acho que a grande diferença desta eliminação é a sensação que ficou: de que dava para ir mais longe, de que dava para jogar melhor, e isso acontece justamente pelo trabalho sólido da Pia. Não é justo cobrar resultados tão rápidos de um trabalho que começou, efetivamente, há dois anos. Foram anos de negligência e inclusive proibição, o que atrasou e prejudicou muito a seleção na busca por resultados e títulos. Temos talento para mais e já vimos a seleção jogar melhor sob o comando dela. Mas, para cobrar, é necessário dar os recursos necessários."

Maria Victoria Poli, Repórter do UOL

Thais Magalhães/CBF

Investimentos na base e nas competições: o caminho

Uma série de mudanças agita o futebol feminino nos últimos anos, passadas mais de quatro décadas do período em que o esporte foi proibido por lei no país. A equiparação salarial das seleções de homens e mulheres aprovada em 2020 é um passo, assim como a contratação de profissionais mulheres para cargos de gestão e o fomento aos torneios das categorias de base à elite.

Ano que vem será a estreia da Terceira Divisão profissional dentro de um calendário que já tem há três anos duas competições para jovens, no sub-18 e sub-16. A Copa do Brasil de futebol feminino para adultas também está no radar, prestes a ser oficializada pela CBF, segundo apurou o UOL. Será mais uma plataforma de desenvolvimento da modalidade, como já existe em outros países.

O momento do futebol feminino é de franca evolução e cada vez mais as pessoas estão acreditando na modalidade, seja pela mídia esportiva ou pelos clubes e federações. Seguindo uma realidade global em que o futebol europeu e o dos Estados Unidos têm clubes femininos fortes, o Brasil está aos poucos conseguindo uma maior visibilidade para a modalidade. A obrigatoriedade ainda é vista com resistência por muitos clubes, principalmente os de menor poder financeiro, então o desafio agora é mostrar que o futebol feminino é um artigo viável para o marketing dos clubes e empresas e gera possibilidades de negócio em um futuro próximo."
Cláudio Curra, diretor de futebol feminino do Internacional

A seleção feminina sub-20 (foto) encerrou duas semanas de treinamento nesta semana, enquanto a sub-17 teve 11 dias só para atividades preparatórias com a técnica Simone Jatobá. Entre 2018 e 2019, essas equipes não tinham sequer treinador. O foco agora que isso mudou é o de acostumar as jovens jogadoras a diferentes exigências e estímulos, de modo a preparar uma geração em que o ouro olímpico ou um título de Copa sejam rotina e não obsessão.

Sam Robles/CBF Sam Robles/CBF

O que vem pela frente?

O contrato assinado por Pia em 2019 tinha duração de dois anos prorrogáveis por mais dois. Em janeiro deste ano, antes do vencimento, foi renovado até o meio de 2024, o que garante a manutenção do projeto na Copa do Mundo de 2023, que será realizada na Austrália e na Nova Zelândia, e nas Olimpíadas de Paris, em 2024.

Para conquistar vaga nestes torneios, o próximo objetivo é a Copa América de 2022. O torneio ocorrerá de 8 a 30 de julho, em sede a ser definida. Serão de três a cinco vagas, já que a próxima Copa pela primeira vez terá 32 seleções, então a conquista da vaga não deve representar um desafio tão grande.

Mas Pia sabe que cobranças e decisões serão mais frequentes do que nos primeiros dois anos de trabalho, apesar do caos interno da CBF.

Uma das pendências é a situação de Marta, que deixou no ar a possibilidade de se retirar da seleção brasileira depois da Olimpíada. Internamente essa possibilidade nunca foi levantada: há confiança total de que ela continuará a serviço da equipe e que a mensagem passada ao se emocionar cantando "Não Deixe o Samba Morrer" não é de fim de ciclo, e sim de recomeço.

"Agora é pensar no futuro. Continuar apoiando a modalidade porque o futebol feminino não acaba aqui, continua", disse, depois da eliminação. Paris é logo ali.

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