Corpo de Atleta: Esporte exclui corpos gordos. Eles resistem para estar ali
Na próxima segunda-feira (28), o UOL Esporte lança o primeiro capítulo da série "Corpo de Atleta", criada em parceria com o fotógrafo JR Duran. Em cinco reportagens especiais, contamos a história de cinco atletas que são campeões, também, por causa das valências de seus corpos. E não são corpos magros como você deve idealizar no atleta perfeito. São corpos gordos e fortes de atletas perfeitos.
A inspiração da série vem justamente dessa visão idealizada que a sociedade tenta impor. Para existir no esporte, o corpo gordo precisa resistir. Não é apenas disposição e desejo de praticar uma modalidade ou talento e vontade de desenvolver a própria capacidade. O corpo gordo precisa enfrentar o preconceito e a patologização, os olhares tortos, a falta de estrutura, o inexistente acesso à saúde e a questões básicas.
Não tem roupa para os corpos gordos se exercitarem. Na hora de um jogo coletivo, atletas transformam os pequenos coletes em tops —isso quando não levam na bolsa a própria roupa. É o caso de Ellen Valias, jogadora de basquete, ativista gorda e fundadora da página "Atleta de Peso". Ela sempre carrega uma regata na mochila porque sabe que o uniforme de qualquer clube em que for treinar não vai servir.
Hoje, ela e Vanessa Joda, criadora do movimento "Yoga Para Todes", fazem faculdade de educação física para entenderem como começa a exclusão do corpo gordo no esporte. O lugar em que começa é justamente o que mais deveria acolhê-lo, nas aulas de Educação Física da escola. Vanessa ressalta o que qualquer criança gorda já sentiu: a primeira gordofobia que uma pessoa sofre vem da própria família; a segunda, dos colegas de escola. E, assim, o ciclo de violência permeia o viver dessa pessoa até a morte.
Ellen e Vanessa participaram do Entrevistão UOL Esporte desta sexta-feira (25). A conversa trouxe reflexões essenciais para quem pratica e aprecia o esporte, mas também para quem sequer se importa.
"Coloca a gorda no gol"
Ellen é atleta desde a infância e relembra a violência da exclusão que vivia. "Em toda aula de educação física, eu ouvia: 'Coloca a gorda no gol para ter menos espaço'. Ou então: 'Ah, é futebol? Então você é a bola. Ninguém escolhe a criança gorda. Então, ela cresce e se torna um adulto que acredita não gostar de atividade física. Por isso, a gente precisa dizer para as crianças gordas que o corpo delas é capaz, e que o esporte é um direito", afirma Ellen.
"O ambiente esportivo é totalmente gordofóbico. A sociedade só aceita um corpo gordo fazendo atividade física se for para ele emagrecer. Não é cabível no estigma social que uma pessoa gorda se exercite por prazer, por saúde e lazer. Eu joguei e jogo basquete, e sei que não cheguei a me profissionalizar porque não tinha espaço para mim. A gordofobia me afetou, afetou meu desempenho", conta a atleta.
Vanessa, praticante de ioga, reitera que a pessoa gorda carrega um estigma de ser preguiçosa, de não ser capaz de fazer as coisas. "E essa visão começa dentro da faculdade de Educação Física, que considera o corpo gordo doente apenas por ele existir. Isso não é verdade. Enquanto a gente se basear no IMC (Índice de Massa Corporal), um índice criado em 1832, para definir o que é ou não saudável, a gente não vai acabar com o preconceito e a exclusão de pessoas gordas, principalmente do ambiente esportivo".
O IMC é um índice que classifica se pessoas estão ou não dentro de um padrão de peso aceito. Para a análise, utiliza-se peso e altura. Não se leva em conta se a pessoa é supermusculosa ou se quase não tem massa magra. O IMC de muitos atletas do fisiculturismo, por exemplo, indica obesidade. Entretanto, como esteticamente estão dentro de um padrão, não se leva o número em conta. Agora, quando é uma pessoa gorda, o IMC importa e indica doença.
É explícita a hipocrisia de quem justifica a gordofobia por preocupação com a saúde. Se a sociedade fosse minimamente preocupada com as pessoas gordas, brigaria, junto a ativistas, para que o acesso à saúde chegasse a elas; para que elas não precisassem ir até uma clínica veterinária ou a um zoológico quando tivessem de fazer uma ressonância magnética —pelo simples fato de não haver, nos laboratórios, aparelhos em que elas caibam.
Se fosse saúde o problema, médicos não recomendariam cirurgias bariátricas a pessoas gordas cujos exames estivessem perfeitos: sem diabetes, sem colesterol alto, com pressão regular e hormônios em dia. Mas isso acontece, e muito. Aconteceu com Ellen, que se submeteu a uma cirurgia bariátrica em 2013. "Quando levei meus exames para o médico, ele disse: 'Nossa, parecem exames de uma pessoa magra. Por isso, vamos te emagrecer'. Entende que nunca foi sobre saúde?"
Passar por uma cirurgia que corta fora parte do seu estômago é algo muito grandioso, segundo Vanessa. Mas, ainda assim, as pessoas querem fazer. "Elas não temem a morte porque a gordofobia nos mata todos os dias. Eu te garanto: é muito mais fácil ceder à pressão da sociedade e tentar ser magra —o que não é nada fácil— do que se aceitar gorda e resistir como pessoa gorda".
A gordofobia machuca tanto que faz com que pessoas lutem contra a própria existência para existir, em vez de simplesmente existirem."
Vanessa Joda, do movimento "Yoga Para Todes"
"O esporte não acolhe o corpo gordo"
Depois da cirurgia, Ellen deu à luz seu terceiro filho, e seu corpo voltou ao normal. O corpo normal é aquele que o nosso biotipo quer que ele seja; aquele que nos carrega e nos nutre e que, no caso dos atletas campeões, os dá medalhas. Outra medalha importante é a da resistência.
"O tempo todo, recebemos a mensagem de que não somos bem-vindas na atividade física, a começar pelas roupas. A Ellen, mesmo, conta que usava dois tops, duas camisetas, uma calça legging debaixo do shorts por medo de que rasgasse. Eu faço o mesmo na ioga. Não tem roupa pra gente", diz Vanessa.
Ellen confirma, diz que sempre se viu sozinha dentro do esporte, e que, nele, perdeu sua identidade: "Eu era 'a gorda do basquete', 'a gorda do futebol americano'. Não tinha nome, era 'a gorda'. Minha trajetória sempre foi sozinha, não tinha um corpo igual ao meu no ambiente esportivo que eu frequentava. Eu tinha que escutar tanta coisa só para estar ali, só para me exercitar, que era uma resistência diária", conta.
É por tudo isso que Ellen e Vanessa dedicam, atualmente, seus dias ao esporte e à militância. Elas querem mostrar a pessoas com corpos diversos que elas podem praticar ioga, jogar basquete e viverem como bem quiserem. A militância vem em forma de crítica, manifesto e conscientização: corpos gordos tudo podem e de tudo são capazes.
É direito da pessoa gorda praticar esporte. Você não tem que questionar, não tem que dar parabéns. Normalizem um corpo gordo fazendo atividade física, normalizem corpos gordos existindo."
Ellen Valias, jogadora de basquete, ativista gorda e fundadora da página "Atleta de Peso"
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