Ingresso vira souvenir, e Tóquio teme onda de mortes após as Olimpíadas
Quando a pira olímpica for acesa no Estádio Nacional de Tóquio na próxima sexta-feira (23), dando início à edição dos Jogos mais controversa da história, ela iluminará uma cidade aflita.
A metrópole mais densamente povoada do mundo tem as ruas vazias a dois dias da abertura. Os estrangeiros não são recebidos com festa nem com abraços, como sempre aconteceu em todas as Olimpíadas. Os taxistas são orientados a levar apenas um passageiro por vez e a evitar conversar com eles.
Os jornalistas estão proibidos de entrevistar presencialmente os habitantes locais. Os hotéis destacaram um funcionário para controlar o entra e sai dos visitantes, que não podem furar a bolha olímpica em seus primeiros dias. E o governo incentivou os moradores a fiscalizar e denunciar os infratores.
Estudantes de escolas públicas de Tóquio ganharam ingressos para as Olimpíadas, mas eles vão virar apenas souvenir, já que não haverá público nas arenas. "O meu filho veio para casa com ingressos que nunca serão usados. Muito triste isso", afirmou a profissional de recursos humanos Nao Koizumi.
Simpáticos, os japoneses sempre tentam ajudar os estrangeiros que os procuram em busca de informações ou de uma garrafa de água. Além da hospitalidade, a tradição impõe um senso de dever diante do compromisso que o país assumiu em 2013 de realizar a 32ª edição das Olimpíadas.
Por isso eles construíram as arenas, reformaram os estádios e fizeram as obras para que os Jogos ocorram com infraestrutura impecável, mesmo que ninguém esteja assistindo presencialmente. E por isso eles seguem trabalhando na execução de um protocolo rígido para minimizar o risco de novos surtos. Mas, internamente, a maioria dos japoneses preferiria que nada disso estivesse acontecendo.
Gente como o cinegrafista Sho Fujii, que vai trabalhar nos Jogos, mas nutre sentimentos ambíguos. "Fiquei muito animado com as Olimpíadas no início, mas agora que eles decidiram fazer sem nenhum público, não há motivos para fazer no Japão. Temos que pagar os bilhões de despesas e não ganhamos benefícios", afirmou ele, em uma entrevista conduzida on-line, como manda o protocolo.
"Eu não me sinto seguro com as Olimpíadas em meio à pandemia. Desde que os envolvidos nos Jogos e os integrantes da mídia chegaram a Tóquio, o número de casos da covid-19 disparou dramaticamente."
O Comitê Olímpico Internacional informa que são 71 os envolvidos na "família olímpica" que contraíram o coronavírus, entre residentes e estrangeiros. Com a chegada de cada vez mais visitantes de 205 países, os japoneses temem que a pandemia fuja do controle, em um país que ainda tentar avançar na vacinação.
Também há um ressentimento em relação a supostos privilégios conferidos aos visitantes olímpicos e que vêm sendo negados sistematicamente aos japoneses, como o direito de beber depois do expediente, que no Japão é considerado sagrado.
"O governo dá um auxílio a bares que não vendem bebida alcoólica, e a população sempre entendeu isso como uma medida importante", conta o engenheiro de software brasileiro Gabriel Ogawa, que trabalha em Tóquio. "Mas uma notícia que repercutiu muito foi a festa de recepção ao Thomas Bach, presidente do COI. Quer dizer, eles podem fazer uma festa para 40 pessoas, e a população normal não pode reunir cinco pessoas num restaurante."
Entre os moradores de Tóquio há também o medo de que os estrangeiros não cumpram os protocolos. "Os japoneses seguem muito a lei", disse Nao Koizumi, em uma conversa pelo Facebook. "Nós usamos máscara, lavamos as mãos e não vamos beber nessa situação em que vivemos. Mas, para ser honesto, não achamos que as pessoas de outros países são como nós."
"Acho ótimo que venham pessoas para girar a economia do Japão, mas o momento não é muito agradável porque vai piorar ainda mais a covid nesse país", afirmou Sumyre Mori. "Isso prejudica diretamente a gente que mora aqui. Não acho uma boa ideia ter Olimpíadas."
Dez mil voluntários desistiram das Olimpíadas
Cerca de 10 mil voluntários desistiram de ajudar nas Olimpíadas, o que representava 12,5% da força de trabalho conforme a NHK, maior emissora de TV do Japão. Os motivos foram a falta de disponibilidade por causa do adiamento e o medo da covid-19.
Naohiro Kasuya, de 40 anos, pensa diferente e seguiu trabalhando, ajudando a colocar flores na decoração do centro de mídia. Afirmou saber da ameaça do coronavírus, mas disse acreditar nas medidas tomadas pela organização para frear o contágio.
Jornalista da agência Kyodo News, Tsutomo Agechi afirma trabalhar com "um medo controlado" de ser infectado, mas confia na vacina que tomou.
A pandemia que já matou 4,1 milhões de pessoas no mundo e 15 mil no Japão mudou planos de grandes e pequenos. O presidente da Panasonic, um dos principais patrocinadores da Tóquio-2020, anunciou que não vai assistir à cerimônia de abertura. Executivos dos três maiores grupos empresariais do Japão também desistiram.
Miguel Kamiunten, coordenador da Universidade Católica de Brasília em Tóquio, residente no Japão há mais de 30 anos, diz que há um distanciamento entre os moradores da cidade e os participantes do megaevento esportivo. "Estou esperançoso e vou assistir aos Jogos. Mas, na verdade, é como se as Olimpíadas não fossem em Tóquio."
*Adriano Wilkson, Beatriz Cesarini, Demétrio Vecchioli, Felipe Pereira e Juliana Sayuri
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