Há exatos dez anos, o vôlei brasileiro teve um dos episódios mais tristes de sua história. Num jogo da Superliga televisionado, o meio-de-rede Michael, do Vôlei Futuro, foi intensamente hostilizado pela torcida rival do Cruzeiro com gritos claramente homofóbicos.
Pouco tempo depois, entrevistei Bernardinho, então técnico da seleção masculina, sobre o tema. "O Michael quando estava na seleção juvenil foi xingado pela torcida no Brasil", contou ele, que na época também treinava o time feminino da Unilever. "Tenho jogadoras de seleção que já saíram de quadra chateadas porque tinha gente gritando 'sapatão' e eu sabia que elas eram homossexuais", completou.
É por isso que hoje, ao ver o campeão olímpico Douglas Souza transitando de forma desenvolta entre seus colegas de equipe, exibindo de forma autêntica seu jeito que não atende aos padrões rígidos da masculinidade hegemônica e sendo celebrado por mais de um milhão de pessoas nas redes sociais, meu coração se enche de alegria.
"Antes eu não tinha maturidade para colocar a minha cara na internet e aparecer um comentário negativo e eu tinha medo de como poderia me afetar. Hoje liguei o foda-se, desculpe a palavra. Quer falar mal de mim? Tudo bem. Infelizmente nós da comunidade LGBT estamos acostumados com isso", disse ele em entrevista a "O Globo".
A forma desinibida com que Douglas interage com seus colegas de seleção - inclusive com "Jorges" (Maurício Borges), que virou um coadjuvante divertido de suas inserções nos Stories do Instagram - demonstram na prática como o ambiente olímpico está mais receptivo para atender à diversidade de identidades de gênero e de orientações sexuais.
Não à toa vemos atletas que participaram de outras edições também mais à vontade para expressarem seus afetos e sua verdadeira personalidade com mais naturalidade.
A estrela Marta, que nas outras quatro Olimpíadas de que participou sempre tentou se portar de forma discreta em relação à sua orientação sexual, desta vez, logo na estreia, fez uma homenagem explícita a sua noiva. Ao marcar um dos gols da goleada do Brasil contra a China por 5 x 0 na estreia em Tóquio, desenhou com os braços um T em referência a Toni Deion Pressley, que também é sua companheira de clube.
No hóquei sobre a grama, a capitã do time da Alemanha, Nike Lorensz, também já anunciou que usará uma braçadeira com as cores do arco-íris.
Os números também atestam que o ambiente olímpico está mais aberto à diversidade. De acordo com levantamento feito pelo site Outsports, há mais atletas auto-declarados LGBTQIA+ em Tóquio do que em todos os eventos olímpicos anteriores somados.
É importante ressaltar que são "auto-declarados" porque sempre houve atletas de diversas identidades de gêneros e orientações sexuais presentes na história das Olimpíadas, mas devido ao estigma brutal imposto a todos os dissidentes do sistema sexo-gênero, é lícito supor que todas, todos e todes tentaram suprimir suas características para se adequar às normas de masculinidade e feminilidade vigentes de cada época.
Mas o orgulho LGBTQIA+, esse de não querer se esconder, de ter a coragem de se mostrar ao mundo em toda sua integridade, é um fenômeno muito recente na história olímpica. Mesmo assim, houve um crescimento exponencial nas últimas três edições. Ainda segundo o Outsports, em Londres-2012, somente 23 atletas declaravam publicamente fazer parte da comunidade arco-íris. Na Rio-2016, esse número chegou a 56. E agora, em Tóquio, temos a expressiva marca de 163 atletas muito orgulhosos, orgulhosas e orgulhoses de suas identidades.
"Primeira pessoa abertamente trans a competir numa Olimpíada. Eu não sei como me sentir", disse Quinn, atleta não-binárie do Canadá, após fazer história ao entrar em campo no empate contra o Japão na estreia de sua equipe em Tóquio. "Eu fico triste pois sei que existiram muitos atletas olímpicos antes de mim que não puderam viver a sua verdade por causa do mundo. Eu fico otimista por mudanças, mudanças nas leis, nas regras, nas estruturas, nas mentalidades", completou elu em mensagem no Instagram.
Ao se assumir há um ano como atleta não-binárie, Quinn já mexeu em estruturas tectônicas do esporte que pareciam imóveis e obrigou narradores em todo o mundo a darem uma olhada na melhor forma de respeitar seus pronomes (them/they, em inglês e elu/em português).
Indiretamente, elu foi responsável pela primeira transmissão esportiva na TV brasileira narrada com o uso de pronomes neutros. O trecho de vídeo em que Quinn, que foi designade como mulher ao nascer, é substituíde por uma jogadora foi compartilhado à exaustão nas redes.
Provocou muita curiosidade, mas também houve mostras claras de hostilidade à sua presença. Muitos se perguntaram porque Quinn, ao se declarar não-binárie, não deixou de competir entre mulheres, mas talvez a pergunta a ser feita seja outra. Talvez o problema seja justamente como as Olimpíadas foram constituídas historicamente em cima de uma estrutura binária de gênero que é disciplinadora e excludente e sempre deixou à margem todas, todes e todos que não atendessem a um padrão rígido biológico e comportamental sobre o que é ser homem e ser mulher.
Padrão este, diga-se, estabelecido quase sempre por homens, cis, heterossexuais e brancos, que desde o início dos Jogos Olímpicos, há longos 125 anos, são os que compõem as instâncias máximas de poder não só do Comitê Olímpico Internacional, como das federações esportivas, dos Comitês Olímpicos Nacionais e da mídia que faz a cobertura do evento.
Celebramos é claro toda essa diversidade de novos corpos e expressões que vamos ver nas arenas de Tóquio, mas sem esquecer de outros corpos igualmente válidos que estão fora deste evento pelas hostilidades que enfrentaram ao longo de suas trajetórias seja no campo de disputa, seja nas redes, nas arquibancadas ou até mesmo nos vestiários.
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