Obsessão de técnico fez Diogo Soares, caçula da ginástica, virar olímpico
Não é exagero dizer que Daniel Biscalchin é um obcecado pela ginástica artística. Ex-atleta, professor, treinador, árbitro internacional e dono de uma modesta academia da modalidade, ele também é o responsável por identificar e lapidar o talento de Diogo Soares, a principal revelação brasileira no ciclo olímpico. Na madrugada de sábado (24), Diogo entrou na Ariake Gymnastics Centre para disputar a qualificatória dos Jogos Olímpicos de Tóquio, e conseguir a vaga na final do individual geral. Daniel estava do outro lado do mundo, em Piracicaba, no interior paulista, torcendo pelo pupilo.
A separação é momentânea, uma vez que Daniel não foi convocado para integrar a seleção em Tóquio, mas a parceria entre técnico e atleta já dura 15 anos. No Japão, Diogo, ao falar de si mesmo, utiliza o plural. Diz "nós", "a gente". E, ao explicar o motivo, o garoto de 19 anos se emociona:
"É bem gratificante saber que todo um trabalho fez com que nós chegássemos aqui. O Daniel infelizmente não pôde vir mas eu carrego o espírito dele comigo. Por isso que eu gosto de utilizar a palavra 'nós', a palavra 'a gente', porque eu sinto que estou com ele e eu sei que se precisar de alguma coisa, vou pegar o telefone, vou ligar para ele, e ele vai me ajudar...". Diogo segura as lágrimas, interrompe a entrevista por alguns segundos, na zona mista da arena olímpica, após o treino de pódio de quarta-feira (21). Ele tinha acabado de pisar, pela primeira vez, no palco dos Jogos. Depois da pausa, retoma. "É bem gratificante, de verdade."
Quando o técnico Daniel tinha seus 7 anos, viu uma competição de saltos ornamentais na TV. Ele se interessou pelo esporte que não era praticado na sua cidade natal. Anos depois, na escola, viu um colega dar um mortal na hora do recreio. Perguntou o que era aquilo, e descobriu: era ginástica.
Com 11 anos, Daniel conheceu a ginástica artística e não parou mais. Começou a treinar e defendeu Piracicaba nos Jogos Regionais, Jogos Abertos do Interior, Estaduais. Mas, muitas vezes, ia para uma competição e perdia, apesar de ser um bom atleta. "Eu achava que os árbitros me roubavam porque eu era do interior", lembra.
Até que ele entendeu o motivo. Um árbitro o chamou de canto numa competição e falou: "Você é um bom ginasta, tem um bom solo, mas sua série é montada toda errada." O treinador não conhecia o código de pontuação da ginástica. Mandava os atletas executarem movimentos que não faziam sentido. A saída para Daniel foi fazer um curso de arbitragem, entender as exigências nas séries, como os elementos deveriam ser executados, e montar suas próprias séries. "Começou como obrigação, mas sigo na arbitragem até hoje", lembra ele, que é árbitro internacional e fez parte do quadro convocado para os Jogos Olímpicos do Rio, em 2016.
Atleta, árbitro e estudante de Educação Física, Daniel também queria ter uma academia. Graduou-se em 2002 e, no ano seguinte, abriu a Pira Olímpica, com aparelhos usados, com a intenção de ensinar ginástica. "Nunca pensei no alto rendimento", ressalta. Passou um ano dependendo de dinheiro do pai, até que montou um projeto de formação de base, que foi aprovado pela Prefeitura. Com a verba municipal, começou a fazer peneiras, para selecionar crianças que teriam iniciação na modalidade.
Um dia, apareceu Drielle. "Eu já tinha feito os testes daquela primeira turma, e selecionado 10 meninas e 10 meninos, o meu limite. E aí apareceu o Dorival, o pai, com a Drielle, que tinha 8 anos. Expliquei que os testes já tinham sido feitos, na semana anterior. Mas aquela menininha, fortinha, fez uma cara de dó... e eu decidi fazer o teste. Ela foi muito bem."
Drielle começou a treinar na academia. Em casa, exibia para a família as coisas que aprendia no treino. E seu irmão Diogo, com 3, 4 anos, começou a imitá-la. A menina contou para o professor Daniel que o irmãozinho mais novo repetia o que ela fazia. E ele, claro, não acreditou. "Eram coisas difíceis para uma criança da idade dele. Mas sim, ele fazia. Aos 4 anos, ele era descoordenado, mas era forte e muito corajoso." Foi aí que Diogo, que hoje está em Tóquio, começou a ser ginasta. Primeiro, aprendendo a fazer umas cambalhotas. Depois, com seis anos, já fazia mortal. "Ele ia puxando, e eu fui soltando, vendo do que ele era capaz."
Com sete anos, Diogo já estava na equipe de treinamento e disputando campeonatos. "Ele acompanhava os mais velhos, queria imitar e não queria perder. A vontade dele era muito grande de fazer tudo rápido", lembra Daniel. Naquela idade, estava no mesmo grupo que garotos de 10, 12, 14 anos. Treinava quatro horas todos os dias.
Ganhar tudo virou rotina para Diogo nas categorias de base da ginástica, que recebeu o conhecimento de toda uma vida dedicada à ginástica de seu técnico. E o menino, que nasceu em 2002, também foi privilegiado pela mudança no calendário internacional, que ganhou mais competições de alto nível para jovens atletas. Em 2018, ele disputou a terceira edição dos Jogos Olímpicos da Juventude, em Buenos Aires, e ganhou duas medalhas: prata na barra fixa e bronze no individual geral. No ano seguinte, participou da primeira edição do Mundial Junior, na Hungria - foi vice-campeão das argolas.
Em março de 2020, Diogo disputou sua primeira competição como adulto, a American Cup. E aí veio a covid-19. Durante os meses seguintes, com as restrições de funcionamento impostas pela pandemia, a Pira Olímpica fechou para seus alunos. Apenas Diogo — que, atualmente, é o único atleta de alto rendimento treinado por Daniel — continuou a usar o local.
Os equipamentos estão longe de ser top de linha - alguns foram enviados pela Confederação Brasileira de Ginástica para Piracicaba após a aparição de Diogo nas Olimpíadas da Juventude. Mas o solo, por exemplo, está em situação deplorável. Daniel pretendia mandar reformá-lo, mas acumula prejuízo por causa do fechamento do espaço. Falta dinheiro. A Pira Olímpica é a sua única fonte de renda, e ele ainda não tem acesso a recursos das entidades esportivas por treinar um finalista olímpico.
Diante das dificuldades, por que Diogo não se transferiu para equipes maiores, mais bem estruturadas? "Porque em time que está ganhando não se mexe", disse o atleta, quando questionado se Piracicaba (e a modesta Academia Pira Olímpica) não ficaria pequena para ele. "É difícil dizer, agora, o que vai acontecer. Mas pode ter certeza que, com o Daniel, eu vou ficar. Ele é dono da metade de tudo o que conquistamos juntos, sem ele eu não estaria aqui. É uma dupla que não tem como separar, sabe?".
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