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OPINIÃO

Entre criança e mulher, Rebeca Andrade salta sobre a adolescência

Rebeca Andrade: maturidade surpreendente nas entrevistas pós-competição - Ricardo Bufolin/CBG
Rebeca Andrade: maturidade surpreendente nas entrevistas pós-competição Imagem: Ricardo Bufolin/CBG

Denise Mirás

Colaboração para o UOL, em São Paulo

02/08/2021 08h46

"Incrível como a Rebeca mistura criancice e maturidade." Foi o que me veio à cabeça quando a ginasta encerrou sua participação nas Olimpíadas de Tóquio-2020 com o quinto lugar no solo, uma prata na individual geral e o tão sonhado ouro da nação feminina da Confederação Brasileira de Ginástica, meio como "resposta" à masculina, que se tinha em outro patamar. Mas, da criancice à maturidade em uma garota de 22 anos - e três cirurgias sérias no mesmo joelho direito -, houve um salto sobre a adolescência? Como se ligam os dois extremos, de criança a mulher? Ou não se ligam?

E me lembrei de conversas com a Katia Rubio, psicóloga do esporte. Até o aparecimento de Nadia Comaneci, a ginástica (chamada de olímpica, à época) apresentava mulheres. Houve a virada para a miniaturização das atletas (as romenas, nos anos 1980, eram chamadas de ginastas-bonsai), que se tornam uma espécie de fetiche.

(Não à toa emergiu um iceberg de podridão do meio desse esporte nos Estados Unidos em 2018, com um médico em sua ponta: o médico Larry Nassar condenado para cumprir no mínimo 40 anos de prisão por pornografia infantil. Por molestar mais de 300 garotas, das quais cerca de 140 prestaram depoimento falando dos abusos - inclusive Simone Biles.)

Depois, já em 1997, a Federação Internacional de Ginástica (FIG) colocou uma idade mínima (16 anos) para as apresentações internacionais, instituindo que a ginástica ganharia um ar mais artístico - e sensual. Nestas Olimpíadas de Tóquio-2020, de tantas surpresas e temas importantes levantados a serem debatidos, as ginastas alemãs ganharam espaço ao deixar os collants cavados, estilo maiô, para contrariar muitas das expectativas com a apresentação em collants longos, tipo macaquinhos, cobrindo traseiros e pernas.

Atletas como Rebeca mostram a maturidade que décadas atrás as ginastas que viviam em uma bolha ainda mais fechada que desta pandemia não tinham. Eram crianças, simplesmente, mesmo chegando à maturidade física e etária. Com o tempo e a evolução do esporte, as atletas passaram a ser bem mais longevas e hoje chegam fácil aos 30 anos competindo no alto nível.

Oksana Chusovotina participou das competições olímpicas em Tóquio pela última vez, aos 46 anos. As outras atletas correram para fazer fotos com ela, mostrando sua admiração. Também ficou evidente, com as palavras da madura Rebeca, como hoje se tem uma visão mais geral da importância do trabalho de técnicos e todos os profissionais da equipe multidisciplinar, e das que a antecederam no desenvolvimento da ginástica brasileira. E ainda a consciência de que as outras competidoras treinam tanto e sofrem tanto com lesões quanto ela. Daí dividir sua felicidade com o reconhecimento pela felicidade das outras, dando pulinhos, sabendo do quanto a dureza dos treinos é a mesma, aqui ou em outros lugares.

Criança em corpo de mulher: é a imagem que a ginástica insiste em manter. E contra a qual as alemãs se rebelaram. Biles, à sua maneira, também se rebelou, ao tomar iniciativa pessoal - raridade no meio da ginástica.

Hoje, as redes sociais dão voz a todas. Possibilitam troca de ideias sem proibições, os técnicos se mostram mais humanizados - como o coreógrafo Rhony Ferreira falou de Chico, o técnico de Rebeca - do que antecessores europeus, principalmente, que funcionavam mais como pais carrancudos e disciplinadores ou generais da banda. Volta e meia me vêm a história de Nádia Comaneci - e gostaria muito de perguntar a ela se foi "fato ou fake" - que, ao se rebelar contra o ditador romeno Ceacescu, teve as unhas arrancadas a alicate.

Outro ponto interessante: só conseguimos ver Rebeca Andrade ao natural pelas entrevistas à beira do tablado - como de vários outros atletas, de vários outros esportes. E vêm palavras naturalmente, sem interferência de dirigentes, por exemplo, ou outros filtros.

Só continuo com a dúvida na cabeça: cadê a adolescência de Rebeca? Fará falta em seu futuro? E, do nada novamente, lembro do título (não do conteúdo) do primeiro livro de sucesso do escritor tcheco Milan Kundera: "A Insustentável leveza do ser".

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL