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Por que a Bahia se destaca tanto com campeões de boxe?

Bia Ferreira se classificou para a final da categoria até 60kg do boxe nas Olimpíadas de Tóquio-2020 - Miriam Jeske/COB
Bia Ferreira se classificou para a final da categoria até 60kg do boxe nas Olimpíadas de Tóquio-2020 Imagem: Miriam Jeske/COB

Roberto Salim

colaboração para o UOL, em São Paulo

06/08/2021 04h00

Na década de 70, foi realizada em São Paulo, uma convenção do Conselho Mundial de Boxe, e o presidente da entidade fez uma previsão que chocou os jornalistas presentes à entrevista dada em um grande hotel da capital. O mexicano José Sulaimán garantiu, com todas as letras, que o Brasil seria o país do futuro no pugilismo.

"E afirmo isso porque os campeões do boxe vêm da fome." Será?

Levando essa discussão para o pugilismo da Bahia, a questão pode passar por uma infância difícil e crianças carentes. Mas a justificativa pode ser outra, que não a fome em si: a genética, por exemplo.

''Aqui na Bahia 82% da população é negra, e hoje os estudos sobre genética e esporte estão muito adiantados. Até o período de amamentação influencia", afirma o professor Sérgio Silva, aposentado pela Universidade Católica de Salvador. ''A genética está sendo muito estudada e, paralelamente aos resultados desses estudos, é que se desenvolvem treinamentos em todas as modalidades", diz o professor, que é especializado em natação e foi o técnico do medalhista olímpico Edvaldo Valério.

Outra explicação é o número de academias na Bahia.

"Registradas aqui na federação são 70", afirma Joílson Santana, vice-coordenador técnico e administrador da Federação de Boxe do Estado da Bahia. "Mas posso garantir que, espalhadas pelo Estado, dando iniciação ao boxe, o número chega a quase mil."

"Aqui na Bahia tem boxe em toda esquina. O ex-lutador abre um pequeno lugar de treinos na laje de sua própria casa e começa um trabalho com crianças geralmente de favela, crianças que não têm dinheiro para praticar um esporte das áreas nobres, que custa dinheiro", assegura Joílson Santana, que lutou na Olimpíada de Seul-88, como peso galo. "O boxe é uma chance de transformação de vida para o jovem do Norte e do Nordeste, Estados onde há poucos investimentos para a juventude".

Por isso, quem passa pelo Dique do Tororó, pertinho da Fonte Nova, pode observar jovens treinando boxe, improvisando toda a movimentação dos ringues. Pode-se dizer mesmo que o boxe faz parte da paisagem de Salvador.

No caso de Bia Ferreira, essa paixão baiana é herdada do pai, o lutador Sergipe. Pode-se dizer que ela cresceu no ringue, construindo um cartel impressionante, que a leva a ocupar o primeiro lugar no ranking de sua categoria, até 60kg. Não é à toa que é favorita para a conquista do ouro em Tóquio. Nesta quinta-feira (5), a baiana de 28 anos venceu por decisão unânime a finlandesa Mira Potkonen e garantiu uma vaga na final, marcada para 8 de agosto, às 2h da manhã (horário de Brasiília), contra a irlandesa Kellie Harrington.

É o mesmo caso de dedicação ao esporte demonstrado por Adriana Araújo, bronze nos Jogos Olímpicos de Londres. Ela começou no pugilismo depois de jogar futebol, em uma época em que foi permitido às mulheres calçar luvas e subir aos tablados.

Adriana Araújo recebe medalha de bronze na Olimpíada de Londres - Scott Heavey/Getty Images - Scott Heavey/Getty Images
Adriana Araújo recebe medalha de bronze na Olimpíada de Londres
Imagem: Scott Heavey/Getty Images

Neste início, houve lutadoras de técnica impressionante, como a peso-mosca Érica, obviamente baiana, que também defendeu o Brasil em competições internacionais e se casou com o medalhista de ouro Robson Conceição. O pedido de casamento aconteceu em 2011, durante os Jogos Pan-americanos de Guadalajara.

Pode-se dizer que daí em diante o boxe baiano virou esporte de muitos casais, entrando até para academias onde antes a modalidade era só recomendada para os homens.

Mas o boxe de competição, aquele que vai desembocar no alto rendimento, sempre foi para quem buscou no ringue uma melhora de vida.

"O Hebert Conceição mesmo chegou à federação trazido pelo treinador Davi, sem dinheiro para disputar um campeonato de cadetes", relembra Joilson Santana. "E eu perguntei a ele: 'você tem coragem?' Ele pensou para responder. Eu repeti: 'você tem coragem? Se tem coragem, a Federação paga o transporte para a luta', que era fora de Salvador. E dali em diante o Davi encaminhou o Hebert para o Marquinhos Moreira, que iniciou os seus treinos na Champion", recorda Joílson. "E é assim: aqui na Bahia existe uma academia, um pequeno projeto em cada esquina".

Axé, música e capoeira

Pode parecer exagerado, mas para o técnico Washington Silva, um dos pugilistas históricos do boxe olímpico brasileiro, outros vários aspectos da vida da juventude baiana podem explicar ainda melhor a questão.

"Eu acredito que essa predisposição para boxe tenha início na cultura baiana. A música, a comida, o axé da Bahia levam o baiano a se sentir mais alegre em qualquer modalidade", afirma Washington, que em sua época de pugilista da categoria 81kg, fez 303 lutas, com apenas 23 derrotas.

"Disputei duas Olimpíadas, dois Pan-americanos, três mundiais e dois sul-americanos", orgulha-se Washington, que é hoje treinador de boxe do Corinthians.

"É preciso lembrar também que todo jovem baiano traz a flexibilidade do jogo da capoeira. Todo pugilista fez capoeira e traz a esquiva naturalmente para dentro de um ringue. Isso ajuda e muito. É um gingado natural."

Washington não esquece que é grande a porcentagem de jovens carentes que buscam o esporte. "O jovem entra no esporte com vontade de buscar um cobertor para ele, entende? Não se trata exatamente de passar fome, mas sim de mudar de patamar. Levar uma vida melhor. Então o jovem lutador traz brilho nos olhos. O boxe é uma ferramenta para mudar a vida. Ter uma vida melhor."

Importância dos treinadores

Adriana Araújo e o técnico Luiz Dórea - Arquivo pessoal/Instagram @adriana_araujoboxe - Arquivo pessoal/Instagram @adriana_araujoboxe
Adriana Araújo e o técnico Luiz Dórea
Imagem: Arquivo pessoal/Instagram @adriana_araujoboxe

"Outro detalhe", prossegue Washington, "é que a Bahia tem treinadores muito bons. Na seleção, mesmo lá em Tóquio, um dos treinadores é o Mone, que é baiano. E em toda a Bahia tem gente como o Luís Cláudio, que é irmão do Popó, tem o Bel, tem o Reinaldo, o Raulindo, o Gilvan. Tem academia por toda a Bahia, de Camaçari a Cruz das Almas."

Washington é nascido em uma cidade que também fez história no boxe nacional: Cruz das Almas, a 150 km de Salvador.

"Coincidência ou não, já tivemos três lutadores em Olimpíadas: o Clayton Conceição, o Sertão e eu. E o Geladeira, que não foi por pouco."

A essa turma se junta outro grupo baiano que passou pela Academia Champion, de Luiz Carlos Dórea. O técnico lutou como meio-médio-ligeiro e, ao encerrar a carreira, transformou o quintal da escola de sua família em uma academia, no bairro da Cidade Nova, em Salvador.

"Aqui trabalhamos em família, tivemos mais de 8.000 jovens praticando boxe e desenvolvemos um treinamento que vem dando resultados muito bons", afirma Dórea, aposentado como policial.

Anos atrás, ele encaminhou para sua academia muito jovem infrator, que prendia na violenta Simões Filho, na região metropolitana de Salvador. "Muitos foram reintegrados à sociedade através do esporte", diz.

Bronca de Dórea

Hebert Conceição é um dos representantes do Brasil no boxe da Tóquio-2020 - Buda Mendes/Getty Images - Buda Mendes/Getty Images
Brasileiro Hebert Sousa Conceição garante vaga na disputa do ouro olímpico no boxe
Imagem: Buda Mendes/Getty Images

Pela Academia Champion passaram vários atletas olímpicos, como Alessandro Mattos, Badola, Robenilson, Adriana Araujo, Robson Conceição, Chocolate e agora Hebert Conceição, que se classificou para a final olímpica no peso médio masculino (até 75kg) ao derrotar, também nesta quinta-feira, o russo Gleb Bakshi, atual campeão mundial, por decisão dividida nas semifinais. A decisão, contra o ucraniano Oleksandr Khyzniak, está marcada para a madrugada de sábado às 2h45 (horário de Brasília).

"Quando ele me ligou domingo dizendo que tinha ganhado bronze, eu briguei com ele", fala o técnico Dórea. "Falei que a missão não tinha acabado ainda e que ele ia lutar pelo ouro. E isso agora vai acontecer."

Hebert pode repetir o ouro de Robson Conceição nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Robson agora está com Dórea nos Estados Unidos, iniciando a preparação para a disputa do título dos super-penas contra o campeão mundial, o mexicano Canelo Alvarez, em setembro, em Tucson no Arizona.

"A Bahia é tradição e muito treino, muito método desenvolvido em trabalho árduo."

Na Academia Champion, agora reformada, por necessidade de espaço, o ringue tinha uma medida reduzida. Então, era tradicional ver um lutador de Dórea buscando o combate o tempo todo.

"Não tinha como fugir, ele era condicionado a isso", relembra o treinador.

Outra parte do treinamento que chamava a atenção, nos tempos de Popó, era que, nos 20 segundos finais do round, Dórea incentivava a soltura de golpes, para surpreender os adversários na luta. "Eram quase 20 golpes em sequência".

E esse condicionamento, esse treino, acaba fazendo a diferença tanto no boxe profissional, como no amador.

Conceição vai disputar título mundial

Robson Conceição recebe a medalha de ouro da categoria até 60kg - Peter Cziborra/Reuters - Peter Cziborra/Reuters
Robson Conceição conquistou a medalha de ouro nas Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016
Imagem: Peter Cziborra/Reuters

Dórea acha que Robson tem chances de se tornar campeão mundial, apesar do cartel impressionante de Canelo Alvarez.

"Nos Jogos Pan-americanos de Guadalajara, o Robson ganhou do Canelo. É uma luta difícil, mas não impossível."

O mesmo ele acha da final de Hebert Conceição em Tóquio. Se os dois vencerem, a Academia Champion terá conquistado não só um título mundial, mas também sua terceira medalha de ouro.

"Esse é o boxe baiano", bate no peito Washington Silva. "Um esporte que já tinha títulos máximos em todas as competições: o ouro olímpico, com Robson; o ouro Pan-americano, com Pedro Lima; o ouro do mundial com Everton Lopes; os títulos mundiais profissionais, com Popó e Sertão. Falta agora apenas confirmar um título mundial profissional na versão do Conselho Mundial de Boxe."

A mesma entidade que foi comandada durante anos por José Sulaimán, o dirigente que garantiu que boxe e fome caminham lado a lado em um ringue.