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Girafa de pelúcia, 25 pontos na mão, medo, raiva: como Isaquias foi ao ouro

Isaquias Queiroz comemora o título olímpico nos Jogos de Tóquio - Maxim Shemetov/Reuters
Isaquias Queiroz comemora o título olímpico nos Jogos de Tóquio Imagem: Maxim Shemetov/Reuters

Demétrio Vecchioli

Do UOL, em Tóquio

07/08/2021 12h00

Ao chegar à área onde jornalistas brasileiros esperavam para ouvi-lo, Isaquias Queiroz carregava no peito uma medalha de ouro, segurada também pela mão direita. Na mão esquerda, levava a mascote dos Jogos entregue aos atletas no pódio, junto como uma girafa azul de pelúcia. Era uma lembrança do filho Sebastian, que ele costuma levar para as competições, mas que desta vez quase não veio a Tóquio.

"Eu tinha esquecido quando vim para o Japão", contou o canoísta. "A Jaqueline Godoi (responsável do COB pela canoagem) pegou e trouxe para mim. No dia 30 chegou aqui. Não deixaram subir no pódio, mas estou carregando comigo para lá e para cá porque representa muito ele", contou o medalhista.

O caminho até a medalha de ouro teve o talismã do filho que Isaquias batizou com o nome do campeão olímpico de 2016, Sebastian Brendel, e muito mais. Teve também um corte na mão que exigiu 25 pontos, a perda do treinador que o formou, a torcida de rivais, o impulso dado pelos fãs brasileiros que o acolheram depois do quarto lugar no C2, o medo de não ganhar uma prova que todos sabiam que era dele. E raiva, muita raiva.

07.08.2021- Jogos Olímpicos Tóquio 2020 - Isaquias Queiroz  do Brasil conquista o ouro na categoria C1 1000m da canoagem velocidade em Sea Forest Waterway. Foto: Miriam Jeske/COB - Miriam Jeske/COB - Miriam Jeske/COB
Imagem: Miriam Jeske/COB

25 pontos

Isaquias Queiroz e o COB mantiveram a sete chaves um segredo que poderia ter sido decisivo para o resultado em Tóquio. O brasileiro fez toda a reta final de preparação com 25 pontos na mão direita, a mão que controla o remo, depois de cair segurando um copo que cortou do pulso à palma da mão do baiano.

"Três semanas antes das Olimpíada eu cortei a mão e peguei mais de 25 pontos, justo na mão que faz a tração do remo. Treinando com ponto, com medo de estourar... Caí com um copo na mão. Mas pensei: treinei cinco anos e não vai ser um corte que vai me atrapalhar."

Ana Marcela Cunha. Jogos Olimpicos, Tokyo 2020. 04 de agosto de 2021, Toquio, Japao. Foto: Satiro Sodré/SSPress/CBDA - Satiro Sodré/SSPress/CBDA - Satiro Sodré/SSPress/CBDA
Imagem: Satiro Sodré/SSPress/CBDA

Medalha da sorte

A medalha conquistada hoje não foi o primeiro contato de Isaquias com o ouro em Tóquio. Antes, ele havia encontrado Ana Marcela Cunha, campeã da maratona aquática, e pedido para segurar um pouco a medalha dourada conquistada por ela. Não custava tentar pegar um pouquinho de sorte, né?

"Eu cheguei no elevador e vi a Ana Marcela e pedi para ver a medalha dela. Eu assisti a prova dela, fiquei muito emocionado, e fiquei muito feliz de poder tocar na medalha dela. Falei: 'Deixa eu tocar que eu quero que dê sorte'. E eu queria poder ganhar essa medalha. Quando vi ela ganhando pensei: tenho que ir para cima para ganhar a minha. E quando o Ítalo falou: 'Fala amém que a medalha vem', até mandei mensagem para minha esposa para ela falar amém..."

Perda de Jesús

No meio do caminho entre a Rio-2016 e Tóquio-2020, Isaquias Queiroz perdeu o treinador que o transformou em um medalhista olímpico, em um campeão mundial, o espanhol Jesús Morlan. Contratado especificamente para trabalhar com Isaquias, o treinador morreu em novembro de 2018, em decorrência de um câncer. A medalha de ouro conquistada hoje foi uma homenagem ao espanhol.

"Tem um vídeo na internet em que o Jesús fala assim: 'Siga remando, siga remando, não te dei permissão para parar'. Se eu tivesse parado, eu teria parado ali mesmo, não estaria aqui. Um grito faz a diferença. O atleta acaba ganhando o reconhecimento sozinho, mas sem eles não conseguiria. Ele sempre falava para soltar a fera."

Isaquias Queiroz no pódio após o ouro nas Olimpíadas de Tóquio-2020 - Miriam Jeske/COB - Miriam Jeske/COB
Imagem: Miriam Jeske/COB

Rivais com ele

Isaquias Queiroz é dono de um coração bom. E isso não é algo claro somente para a torcida brasileira, mas também para a comunidade da canoagem. E isso ficou claro durante o dia de hoje no canal Florest Sea, em Tóquio, quando os atletas espanhóis e húngaros torciam por ele. Enquanto Isaquias dava entrevista, o checo Fuksa, um de seus maiores rivais, parou para abraçá-lo e dizer que ele é o melhor do mundo.

Favoritismo confirmado

Jesús Morlan ensinou que um dos segredos da vitória é saber vencer na hora certa. Isaquias compete pouco, em uma ou duas Copas do Mundo por ano, além de Pan, Mundial e Olimpíada, e é trabalhado para chegar voando nos eventos mais importantes. Mesmo assim, esse ano ele sobrou em uma etapa de Copa do Mundo na Hungria, assim como havia sido em 2019, quando ganhou o ouro no Mundial. Os rivais sabiam que o brasileiro chegaria muito bem em Tóquio.

"O chinês sabia que a única chance dele era se mandarem, mas eu não deixei ninguém se mandar. Andei junto para resolver no final. Oitocentos metros passou rápido, mas os 100 metros finais, meu amigo, nossa, que sofrimento. O reconhecimento dos adversários é gostoso, mas eles sabiam que eu viria para a medalha. Sabiam que tinha que vir forte", comentou Isaquias, que acredita que o alemão Sebastian Brendel, ouro na Rio-2016, não chegou nem à final porque deu o máximo no C2 sabendo que no C1 não teria chances de ouro.

Estratégia na prova

Jogo é jogado, e canoagem é remada. Isaquias era amplo favorito, mas precisava mostrar isso durante o percurso de mil metros entre a largada e a chegada. Nos primeiros 250 metros, chegou a ficar atrás do chinês que terminou com a prata, mas logo se concentrou, tomou a frente, e já na metade da prova tinha o ouro garantido. Segundo seu treinador, Lauro de Souza, nos 500 metros finais Isaquias só controlou o resultado.

"Como ninguém apertou muito, ele veio confortável. Ele tinha mais para dar e ainda tirou um pouco do ritmo no final. Quando passa os 500m já sabia que ele ia ganhar. A sequência de remada era de conforto dele ali, se ninguém incomodou, não ia tirar mais", disse Lauro, conhecido como Pinda.

02.ago.2021 - Jacky Godmann e Isaquias Queiroz disputam prova de remo - Yara Nardi/Reuters - Yara Nardi/Reuters
Imagem: Yara Nardi/Reuters

Apoio da torcida

O baiano lamentou muito não ter ganhado ao menos o bronze no C2 1.000m, na terça (3), ao lado do novato Jacky Godmann. Saiu da água arrasado e chorou muito, porque deixaria de atingir a sonhada 10ª medalha da carreira de Morlán. Mas, um dia depois, ele já estava recomposto, orgulhoso do quarto lugar. E não é discurso da boca para fora dizer que o apoio da torcida foi fundamental nesse processo.

"Chorei, fiquei triste após a prova, mas quando cheguei na Vila fiquei feliz com o quarto lugar. Sem falar nas mensagens que recebi nas redes sociais. Às vezes são chatas, mas no meu caso foi fundamental. Muitos elogios e apoio. Não teve uma crítica".

Muita raiva

Isaquias somatizou toda a frustração por não ter conquistado a medalha no C2, que seria a quarta da sua carreira e permitiria a ele chegar a cinco ao fim dos Jogos de Tóquio, em motivação para a prova de hoje, que ele disse ter sido a melhor de sua carreira.

"Estava com uma raiva de ganhar... Desde que entrei no C1, fui em busca do ouro. Não deixei me abalar. Treinei cinco anos, não podia jogar tudo fora. Eu tinha medo de terminar aqui sem medalha. Porque o esporte acontece tudo num instante, pode acontecer. Eu não queria isso na minha carreira, queria o ouro".