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Beth se reinventou várias vezes para ser campeã paralímpica aos 56 anos

Demétrio Vecchioli

Do UOL, em São Paulo

31/08/2021 14h00

Nunca é tarde para começar. Nem para recomeçar. As frases podem parecer clichês, mas fazem parte da história de Beth Gomes, atleta que, aos 56 anos, apesar de ser a mais velha integrante da delegação brasileira nas Paralimpíadas de Tóquio, conquistou a primeira medalha de ouro da carreira em um evento desse porte. Ontem (30), ela venceu o lançamento de disco na classe F52, para cadeirantes, com direito a recorde mundial e incríveis quatro arremessos melhores que o da segunda colocada.

"Por eu ter uma patologia progressiva, a esclerose múltipla, todo dia eu me reinvento. Eu vivo hoje, porque o amanhã eu não sei se vou estar aqui ou não. Vivo a cada dia. Cada dia vou buscando essa vontade. É isso que que me faz querer continuar, poder conseguir continuar", disse Beth, ao UOL Esporte, por telefone, depois de receber a medalha de ouro no Estádio Nacional de Tóquio.

Beth era uma guarda municipal da cidade de Santos, onde vive, quando caiu ao tentar pular uma poça d'água e recebeu o diagnóstico de que tinha esclerose múltipla, uma doença autoimune que atinge o cérebro, os nervos ópticos e a medula espinhal, e que afeta o envio de comandos do cérebro ao resto do corpo. De tempos em tempos, a pessoa tem surtos, quando surge um novo sintoma ou há uma piora significativa de um antigo sintoma.

Na prática, isso significa que a pessoa passa a ter maior comprometimento físico motor. A partir de essa queda em 1993, aos 28 anos, Beth passou a andar de muletas. Dez anos depois, chegou a ficar tetraplégica e perder a visão, deficiências que depois regrediram. O surto mais recente aconteceu em 2017, que paralisou parte do lado esquerdo do seu corpo.

Ao invés de aproveitar o momento para se aposentar do esporte, depois de mais de duas décadas competindo em alto rendimento — foi à Paralimpíada de 2008 no basquete em cadeira de rodas e à de 2012 no atletismo —, Beth optou por uma reclassificação no movimento paralímpico. Ela, que competia na classe F54, passou a fazer parte da classe F52.

"Eu acho que não tem idade para praticar esporte, basta estar em perfeitas condições. Seja o esporte que for. O esporte paralímpico nos oferece isso, diferente do convencional. Eu entrei com 30 e poucos anos e sigo competindo. O esporte transforma vidas, o esporte te motiva, te dá toda autonomia. Como minha treinadora diz: vamos até os 70, 80 anos...", diz a lançadora, que não pensa em aposentadoria.

Apoio familiar

Beth tinha 27 anos, estava no auge da carreira profissional como guarda municipal e joga vôlei quando a mãe dela, Marcelina, faleceu. Ela ficou órfã dos "pais biológicos" em 2010, quando estava na Inglaterra jogando o Campeonato Mundial de Basquete em Cadeira de Rodas, evento que marcou sua aposentadoria dessa modalidade.

Mas a atleta acabou adotada, amorosamente, por uma outra família, do casal Manoel Ferreira e Ruth Amaral, que o Brasil inteiro conhece pela obra. Eles são os compositores das marchinhas de carnaval que ficaram famosas pela voz (e pelos programas) de Silvio Santos. "A pipa do vovô não sobe mais" e "Doutor, eu não me engano" são criações deles, que continuaram animando blocos carnavalescos até terem mais de 80 anos.

Os dois chegaram à vida de Ruth por meio da filha deles, Rosana Ferreira, médica especialista em esclerose múltipla, e que cuida da agora campeã paralímpica. "Faz 21 anos que Deus colocou esse anjo na minha vida. É coisa de vidas passadas", diz Ruth, que chama Rosana de irmã e que recebeu a notícia da morte da "mamãe" Ruth quando já estava em Tóquio para disputar a Paralimpíada, no último dia 22.

Mas nem mais esse trauma abalaria a confiança da atleta, que fez uma intensa preparação para se consagrar campeã paralímpica. "Treino todos os dias, em dois períodos, com academia e treinamento técnico no Clube dos Portuários", conta Ruth, que precisou ser "reinventar" na pandemia.

"Montei academia em casa, com minha treinadora dando treino remoto, através de chamada de vídeo. Assim foi toda pandemia, sem parar. Isso que nos deu força para chegar aqui e fazer uma grande competição", diz ela, que a cada resposta dá um jeito de citar a treinadora, Rosiane Farias, com quem trabalha há cerca de uma década. "Eu, sozinha, não faço nada. É 50% eu e 50% minha treinadora".

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do inicialmente informado, a atleta tem 56 anos e não 63 anos. O erro já foi corrigido.