A batalha jurídica para dar nome a cavalo brasileiro nas Olimpíadas
Miss Blue, Miss Blue Saint Blue Farm e Miss Blue Mystic Rose. A égua brasileira que se prepara para os Jogos Olímpicos não sabe, mas existe uma batalha jurídica para definir qual nome ela terá nas Olimpíadas. A da certidão de nascimento, a escolhida pela proprietária, ou uma versão livre de marcas comerciais, tal qual são os Jogos.
Convocada em conjunto com Yuri Mansur, Miss Blue é um animal da raça Brasileiro de Hipismo (BH) nascida em um haras brasileiro, o Rosa Mystica, e vendida com 1 ano e 8 meses para Thalita Olsen de Almeida, até hoje sua proprietária.
Como é comum, Miss Blue ganhou, ao nascer, o sobrenome do haras que a criou: 'Miss Blue Mystic Rose', assim em inglês. É esse nome que aparece nos seus dois passaportes brasileiros, da raça (no caso, emitido pela ABCCH) e da confederação de hipismo.
A diferença é que, ao chegar à maioridade, um humano pode escolher mudar seu sobrenome, até seu nome. Um cavalo, não. Ao menos, não pelas leis brasileiras. Mas, se for registrado em outro país, aí pode ter um "nome esportivo", reconhecido pela Federação Internacional de Hipismo (FEI). Foi o que aconteceu com a égua, registrada como "Miss Blue Saint Blue Farm" perante à federação real da Holanda em junho do ano passado.
"A Thalita comprou três animais meus em um leilão e me pediu para criar a Miss Blue até os três anos, quando poderia ser domada. Quando ela foi para o Yuri, já com oito anos, possivelmente por orientação dele mesmo, ela transferiu o animal para a Holanda, tanto que no site da FEI mudaram o nome primeiro para QH Miss Blue Saint Blue Farm", conta Nilson Leite, criador da agora égua olímpica e dono do Haras Rosa Mystica.
'QH', no caso, é a sigla de Quality Horses, empresa de Mansur, cavaleiro olímpico que fez carreira como importador de cavalos para o Brasil e chegou a ter sua prisão preventiva decretada por sonegar impostos e lavar dinheiro com o negócio de compra de animais no exterior para a venda deles no país. Ele se livrou de pena após fazer delação premiada.
Miss Blue fez o caminho contrário. Saiu daqui para ser registrada na Holanda com novos nomes. O atual leva o sobrenome "Saint Blue Farm", haras montado em 2023 pelo marido de Thalita, Guilherme de Almeida, campeão mundial de vela na classe Star.
Foi com esse nome que a égua ganhou em 2023 um GP em Aachen (Alemanha), considerado a meca do hipismo. Jozias Leite, fundador do Rosa Mystica, foi convidado por Thalita para subir ao pódio junto dela, que dois meses depois descobriu que estava sendo processada civil e criminalmente pelo haras da família Leite.
"Eu comprei esse animal com um ano e oito meses, ele é meu há quase uma década, desde 2015. Investi R$ 3 milhões para ele chegar onde ele chegou. Fui eu quem apostou R$ 300 mil para levá-lo à Europa. Podia dar certo, poderia não dar, e deu, sob meu risco. Eu considerava o Nilson meu amigo, era cliente dele, até que bate um oficial de Justiça na minha porta. Eu não vou perdoar isso nunca", critica a proprietária.
Ela diz que decidiu mudar o nome de Miss Blue depois que a égua ganhou um GP em Miami (EUA), uma pessoa citou que ela tinha potencial de ir às Olimpíadas, mas considerou que Nilson, a quem o animal era ligado, era uma pessoa de conflito.
"Eu liguei para ele e disse que iria mudar o nome da égua, e expliquei os motivos. Ele poderia ter dito que ficaria chateado, me pedir para não fazer isso, mas não falou nada. Disse que entendia, que queria o melhor para o animal", relata Thalita. A mudança de nome coincide com a criação do haras.
O processo
O Rosa Mystica foi à Justiça alegando que a Convenção de Estocolmo, de 1974, que até hoje dita as regras mundiais sobre propriedade industrial, abrange também a chamada indústria agrícola, incluindo animais. Por isso, deve abranger o nome de um cavalo, seja no Brasil, na Holanda (onde está registrado) ou na Suíça (sede da Federação Internacional de Hipismo), todos países signatários.
Em outras palavras: um nome comercial dado no Brasil não pode ser alterado na Holanda.
Em junho, o haras conseguiu uma liminar favorável na Justiça de Salto de Pirapora (SP), exigindo que a FEI devolvesse o nome original de Miss Blue. A medida não foi cumprida pela FEI, que disse não poder alterar unilateralmente o nome de um animal.
A decisão caiu dias depois, em segunda instância, após a defesa de Thalita, feita por um dos mais renomados escritórios do país, demonstrou que o contrato de venda não exigia a manutenção do nome. Argumentou também que a mudança de "nome esportivo" é permitida pela FEI. "É como o Gabriel Barbosa usando Gabigol. O nome não deixa de ser Gabriel Barbosa, mas vai Gabigol ou Gabi na camisa", Thalita diz.
Ela ainda alegou, no processo, que a fazenda Saint Blue Farm, tratada na defesa dela como um haras, não é uma empresa, só uma casa de campo onde são criados cavalos. Por isso, não haveria crime de propriedade intelectual.
Inocentada em primeira instância, ela agora diz que vai denunciar o criador por denunciação caluniosa e o acusa de nunca ter aceitado que cometeu um erro ao vender Miss Blue, a joia da coroa, imaginando que seu grande tesouro fosse a mãe dela, Magnolia. Por via das dúvidas, nasceu na terça (16) Miss Blue II, da mesma mãe e mesmo pai.
Briga continua
Enquanto a decisão final não sai, Nilson Leite pressiona o Comitê Olímpico do Brasil (COB) a alterar o nome de inscrição da égua nos Jogos Olímpicos. Alega que as regras da competição, criadas pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) e pela FEI, determinam que "o primeiro nome registrado de um cavalo inscrito no passaporte será o nome original sob o qual foi originalmente registrado pela sua federação nacional, devendo este nome permanecer permanentemente no passaporte".
A notificação extrajudicial, por enquanto, não fez efeito. Na lista de competidores inscritos para os Jogos, Miss Blue aparece como Miss Blue Saint Blue Farm, com um risco sobre os três últimos nomes. Isso porque o COI não permite marcas no nome dos animais. Na lista de largada, no resultado final e em todos os outros documentos a égua será só "Miss Blue".
Se a inscrição fosse como "Miss Blue Mystic Rose", seu nome de batismo, o "Mystic Rose" seria mantido no nome exibido pelo COI, já que não é uma propriedade comercial, ainda que seja uma referência ao Haras Rosa Mystica.
Pelo mesmo motivo, os nomes de outros dois animais também aparecem riscados na lista da FEI. Inscrito como Chevaux Primavera Império Egípcio, a égua BH montada por Stephan Barcha, conjunto ouro no Pan, será só "Primavera", deixando de lado seu nome de nascença: Primavera Montana — ela foi criada pelo Haras Montana, de Campo Largo, que já encerrou a produção de animais.
"Isso só reforça como mudar o nome de um animal é comum. Dos quatro animais da equipe de saltos nas Olimpíadas, três têm outros nomes. Major Tom, que o Rodrigo Pessoa monta, já está no terceiro nome. É comum isso", alega Thalita, credenciada aos Jogos como proprietária de um cavalo olímpico.
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