Tatuada, de moicano e 'sem peitão': porta-bandeira do Brasil desafia padrão
Do UOL, em Paris
26/07/2024 04h00
Em tempos de tanto ódio nas mídias sociais, a jogadora de rúgbi Raquel Kochhann, que foi surpreendida ao ser escolhida como a porta-bandeira do Brasil na cerimônia de abertura das Olimpíadas de Paris, conta que leu três ou quatro comentários negativos nos mais de centenas que recebeu desde a notícia, e comemora ter quase dobrado o número de seguidores mesmo antes de um momento que ela ainda tem dificuldades para descrever.
"Sabe quando você fica travada? Precisei de um bom tempo para entender que realmente estava acontecendo. Que não era um sonho", contou Raquel ao UOL sobre o momento em que foi surpreendida pelo COB com a escolha para ser a porta-bandeira.
'Represento estar bem consigo mesma'
De fato, é uma escolha especial em vários aspectos. Raquel é do rúgbi, esporte que ainda é desconhecido de muitos brasileiros. Venceu uma batalha contra um câncer no osso esterno descoberto em 2022, e voltou a atuar no esporte de alto rendimento. E tem um estilo todo próprio, com o cabelo moicano, o braço tatuado, e a opção de não colocar próteses nos seios.
"Eu acho que eu levo isso que cada pessoa tem a sua representatividade e a gente precisa se sentir bem com a gente mesmo. Cada pessoa precisa estar como se sente bem e como se vê bem. E eu represento isso, porque foi uma escolha minha, eu poderia também colocar um silicone e ter um peitão, eu poderia ter, mas não é querer fugir do padrão, é fazer algo que eu me sinta bem comigo mesma, eu olho para o espelho e falo, 'caraca, eu estou muito feliz, eu estou me sentindo muito bem' e acho que é essa mensagem que eu deixo para todas as mulheres brasileiras.
De uma cirurgia no joelho a um câncer
A jogadora de rúgbi estava fazendo uma entrevista contando sobre sua trajetória até os Jogos quando recebeu a notícia de que seria a porta-bandeira. Notícia, inclusive, que teve de esconder até mesmo das companheiras de equipe antes do anúncio, na última terça-feira.
Antes mesmo das Olimpíadas de Tóquio, em 2021, ela tinha descoberto um nódulo no seio, na época benigno. Depois da competição, ela foi fazer uma cirurgia de ligamento cruzado no joelho e os exames mostraram que havia células cancerígenas no nódulo e as mamas precisariam ser retiradas.
Com mais exames, Raquel descobriu algo ainda mais grave: câncer no osso. E iniciou um tratamento de meses até ser liberada para voltar a treinar em março de 2023. Mas não era um treino como uma jogadora, que é conhecida por ser uma guerreira em campo e que adora um tackle (como se fosse a dividida do futebol, mas atacando com as mãos e o ombro a linha da cintura da adversária).
"O meu treino de condicionamento era 3 minutos na esteira caminhando a 3 km/h. Eu falei para o preparador físico da seleção, 'tu tá de sacanagem com a minha cara.' E ele me falava para respeitar meu corpo, respeitar o processo. Mesmo achando que isso era um absurdo, eu respeitei 100% tudo."
Afinal, a meta de voltar a jogar em alto nível e ir para outra Olimpíadas foi central para que Raquel conseguisse se recuperar. Mas também toda a disciplina que aprendeu com o rúgbi.
"Uma das coisas que era horrível de todo o tratamento, era fazer bochecho com bicarbonato após todas as refeições. Tem um gosto horrível, é muito ruim. Várias vezes eu olhava para aquele copo e falava 'e se eu só não fizer uma vez?'. Aí vinha na minha cabeça que isso poderia ser a diferença entre talvez não ter ferida na boca ou ficar talvez uma semana sem comer. Por mais que às vezes eu não queria, sabia da importância que isso faria no final de tudo.
Raquel Kochhann quer levar o rúgbi para a cerimônia de abertura
A catarinense da pequena Saudades ainda não recebeu as instruções do COB do que pode fazer, e ouviu algumas dicas de Sandra Pires, que carregou a bandeira brasileira na abertura dos Jogos de Sydney, em um encontro que aconteceu por coincidência logo após a entrevista com o UOL. "É uma emoção indescritível, é como se você tivesse ganhado uma medalha", disse a primeira mulher a levar o ouro, na dupla com Jackie Silva no vôlei de praia em Atlanta-96.
Mas Raquel já está fazendo seus planos e quer usar o momento para promover seu esporte. Algo como simular uma jogada ou qualquer brecha que o protocolo permita. "Quero falar sobre o esporte também, aproveitar esse momento muito importante para o rúgbi, que pode ser talvez o começo de uma virada para o esporte. Ele é um esporte que merece mais conhecimento, não só pelo desempenho esportivo dentro de campo, mas principalmente pelos valores que carrega. O respeito, a integridade, a lealdade, a irmandade são muito vividos no nosso dia a dia."
Falando em rúgbi, a estreia da seleção feminina será neste domingo (28), contra a França, às 12h (horário de Brasília). "A França, com certeza, é um desafio enorme porque, além de toda a tradição que elas têm de rúgbi, de cultura, a gente está jogando na casa delas e elas são um time extremamente físico. O nosso time tem como característica ser menor em estrutura, mas a gente está mais perto do chão, então a gente é mais rápida e mais ágil, o que é a nossa vantagem."
Mas e os tackles pós-câncer no osso da região do peito? "Para mim não faz diferença nenhuma. Pode vir menina do tamanho que for."