'Você guarda e uma hora explode': atletas admitem que precisam de ajuda

Treino, viagem, competição, luta pelo pódio. Às vezes, medalhas. Outras, fracasso. Mais treino, mais viagens, mais competições. Essa é a rotina de um atleta profissional. Com pressão para um bom desempenho, não sobra tempo para cuidar de uma parte preciosa do corpo: a mente.

"Uma cabeça que não está em equilíbrio de pensamentos e emoções pode ser uma adversária muito grande para os atletas que já têm uma boa preparação física, tática e técnica", diz o psicólogo esportivo João Cozac, que passou por clubes como Goiás, Cruzeiro, Palmeiras e Ituano.

A jogadora de basquete Clarissa dos Santos sentiu na pele um quadro de depressão que a afastou das quadras por dois anos. "No basquete feminino, você joga duas temporadas em um ano, para fazer renda, e não tem tempo para pensar. Você não dá importância para as coisas. Entra relacionamento, termina, você nem chora, não dá tempo de ficar chorando. Tenho problemas em casa, mas tenho jogo amanhã. Isso ajuda para um acúmulo de emoções mal resolvidas", disse em entrevista ao UOL.

Clarissa conta que não foi um caso específico que a fez desenvolver depressão, mas sim, um acúmulo de problemas, frutos do ambiente hostil que existe no basquete feminino. "É sistêmico! O basquete brasileiro hoje é briga de quem quer mandar mais e quem conquista mais território. Vale para clubes, dirigentes e comissões técnicas", explica.

"O meu quadro depressivo, meu afastamento do basquete, não teve um motivo. Foi uma soma de coisas que me deixaram de saco cheio", conta.

É preciso pensar que no esporte de alto rendimento há desafios físicos e técnicos para chegar ao êxito, mas há também, além deles, os desafios psicoemocionais, João Cozac

Alberto Filgueiras, psicólogo do esporte e professor da Universidade Central de Queensland, na Austrália, explica que esse comportamento de Clarissa é comum. "Os aspectos sociais extra quadra, como família, amigos, ambiente de treinamento e comissão técnica, por exemplo, podem afetar o atleta e causar uma mudança no comportamento e como ele enxerga o esporte, fazendo com que se afaste", explica.

Filgueiras conhece atletas que desistiram de suas modalidades por conta do ambiente tóxico. Clarisse voltou para às quadras, mas isso não acontece com todos. "Entender o que estava acontecendo levou um tempo, tive que dar um reset. Só na metade do ano passado, após quase dois anos parada, eu decidi tentar voltar. Não seria pelos outros, seria por mim", diz.

Acredito em mim?

Pan 2023: Stephanie Balduccini foi prata nos 100m nado livre
Pan 2023: Stephanie Balduccini foi prata nos 100m nado livre Imagem: Satiro Sodré / CBDA
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O desafio da nadadora Stephanie Balduccini foi também mental, mas um pouco diferente: em busca de melhora, um dia ela precisou trocar de técnico. Longe do profissional com quem sempre trabalhou, começou a duvidar da sua habilidade de performar nas piscinas.

"Quando voltei das Olimpíadas de 2021 e fui amadurecendo, os meus resultados durante os treinos começaram a estabilizar. É natural. Só que calhou com um comunicado marcante do meu técnico na época, o Wladmilson Veiga. No fim do primeiro semestre de 2022, ele me avisou que estava de mudança para o Canadá", disse em entrevista ao UOL Esporte.

Isso foi o suficiente para que a semente da insegurança fosse plantada na mente de Stephanie. "As demandas psicológicas mais comuns no meio do esporte, em geral, têm a ver com a questão da confiança ou da falta dela nas competições", diz Cozac.

"Fiquei perdida. Foram 11 anos nadando no Clube Paineiras, eu cresci lá. Passei a ter dificuldade em me adaptar com outros técnicos, porque acreditava que meu sucesso estava diretamente ligado ao Wlad. Pensava que sem ele, não continuaria a ser quem eu era. Como eu não conseguia melhorar tão rápido como antes, comecei a ligar o fato da partida dele aos meus resultados. Na verdade, hoje eu entendo que isso ia acontecer, ele indo embora ou não", explica a nadadora.

Segundo o especialista é possível encontrar diversos tipos de medo nos atletas. "Da derrota, do fracasso e até da vitória, que é uma questão que está crescendo muito nos consultórios", diz Cozac. Stephanie diz que está melhor, apesar de não estar 100%.

Consigo ter uma percepção real do meu desempenho e amadurecimento. Neste período, eu fui para três Mundiais - Budapeste, Fukuoka e Melbourne - e peguei semifinal em todos. Poxa, é muito bom, né? Mas não enxergava isso, Stephanie Balduccini

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Remédio controlado para atleta

Keno Marley durante o Mundial de Boxe em Belgrado
Keno Marley durante o Mundial de Boxe em Belgrado Imagem: Srdjan Stevanovic/Getty Images

O pugilista Keno Marley perdeu seu irmão, Jeremias, assassinado. Eles eram muito próximos, começaram no boxe juntos e se falavam com frequência - tinham até um ritual de envio de mensagem antes das lutas.

"O meu irmão era a pessoa mais próxima que tinha em minha vida, contava tudo para ele", disse Keno para o UOL Esporte. Ter que cuidar da burocracia, reconhecer o corpo e ajudar a sua mãe nesse momento de perda, deixou Marley com um quadro de estresse pós-traumático.

"Estava fazendo tudo no automático, como se fosse uma situação normal, mas não era. Na verdade, foi uma tentativa de fazer as coisas voltarem ao que era antes. Eu perdi a noção do tempo, questionei a minha vida, não sabia mais o que fazia sentido", diz. Para se tratar, ele precisou tomar remédio.

Em algumas competições, ele só pode assistir, por conta da medicação. "Não era seguro levar pancadas nessa situação, mas segui treinando com a seleção. Quando não conseguia acordar, o pessoal me ajudava. Nossa, lembro muito do Herbert Conceição, o Abner, o Bolinha me forçando a sair da cama para tomar café da manhã, estava sem forças", conta.

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"É importante dizer que a medicação é necessária quando o atleta tem, de fato, sua vida afetada. Algo que mude sua vida cotidiana, como não conseguir sair de casa, por exemplo", diz Filgueiras. Era o caso de Keno.

Às vezes, quando eu vou para casa depois do treino, eu falo: 'E agora, o que eu faço?'. Acontece muito isso, porque eu sinto falta do meu irmão. Eu saio na rua andando sem rumo, sem saber o que fazer, Keno Marley

O cuidado psicológico foi fundamental para a sua recuperação."Há muitos psicólogos com os Comitês Olímpicos. Talvez essa seja a Olimpíada com o maior número desses profissionais com os atletas. Tirando o futebol, sinto que estamos evoluindo bastante no sentido de valorizar e incluir a psicologia do esporte ao lado das outras modalidades e categorias", diz Cozac.

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