'Altos e baixos': quem são as brasileiras refugiadas que miravam Olimpíadas
Monique Araújo, 32, e Aline Facciolla, de 25, são atletas desde a infância. Nascidas no Rio, elas se descobriram no levantamento de peso, mas a carreira profissional das duas foi suspensa por um tempo depois que saíram do Brasil. Namoradas, elas contam que passaram por situação de homofobia e hoje têm status de refugiadas nos Estados Unidos.
Elas integram o time de refugiados da Federação Internacional de Levantamento de Peso —e sonhavam em participar das Olimpíadas de Paris na Equipe de Refugiados, o que não aconteceu.
'Passamos por uma agressão'
Elas preferem não entrar em detalhes sobre a violência que as levou a buscar refúgio por questões de segurança. Voltar ao país para ver parentes e amigos está fora de cogitação. Nos EUA, para ser considerado refugiado, uma pessoa deve demonstrar que "sofreu perseguição no passado ou tem um medo fundado de perseguição por causa de sua raça, religião ou nacionalidade, ou pertença a um determinado grupo social ou de opinião política."
Hoje a gente tem uma vida tranquila, mas foi bem difícil. Primeiro, por ter de sair do nosso país por algo que aconteceu por nossa orientação sexual. A gente passou por uma agressão no Brasil. Eu estava na minha melhor forma, melhor fase da carreira, e a gente teve de abrir mão para buscar segurança.
Monique
Segundo elas, houve uma tentativa de levar a denúncia às autoridades, mas sem sucesso. "Em toda a minha vida no Brasil, nunca tinha passado por essas situações. Já passei, sim, por homofobia, mas daquele jeito... Foi demais."
'Me apaixonei pelo esporte'
Monique virou levantadora de peso aos 19, depois de anos se dedicando ao futebol e a outras modalidades do atletismo. Ela recebeu o convite que mudou sua vida ao fazer um teste de lançamento de dardo, disco e peso na Marinha. Ganhou campeonatos sul-americano e brasileiro e se apaixonou pela competição.
Já para Aline, a relação com o esporte começou com apenas 9 anos, mas demorou mais tempo para que ela fosse convencida a se dedicar à modalidade. "Fazia parte de um projeto na Marinha que apoia crianças de comunidade. Depois do colégio, fazia atividades esportivas e, em 2011, o treinador me viu."
Comecei a treinar, mas tinha decidido que não queria fazer isso de jeito nenhum. Meu corpo todo doía e eu falei: 'Nossa, não tem graça nenhuma ficar levantando peso, vou ficar igual a um menino'. E meu treinador insistindo. Eu inventava um monte de mentiras, falava que não tinha como pagar a passagem, mas ele me dava o dinheiro todo da semana.
Aline
Tudo mudou quando Aline foi para a primeira competição internacional, o Campeonato Mundial no Uzbequistão. Ali, ela se apaixonou pela ideia de ser uma atleta profissional. "Nesse campeonato, fiquei em 32º lugar. Quatro anos depois, ganhei. Comecei não gostando muito e depois me apaixonei."
Antes de ir embora do Brasil, Monique e Aline estavam em fases bem diferentes da carreira. A veterana tinha conseguido o 2° lugar no Pan-americano de Levantamento de Peso, em Miami, e o 11.° lugar no Mundial, em Houston.
Já a mais jovem, ainda em categoria juvenil, foi suspensa por quatro anos em 2016 após testar positivo para um esteroide anabolizante, a boldenona. Ela recorreu da decisão, alegando que tomava apenas remédios prescritos por um nutricionista e por médicos, além de uma vitamina B12 comprada pelo técnico.
A Corte Arbitral do Esporte, no entanto, recusou o apelo de Aline em junho de 2017. Seis meses depois do julgamento do recurso, ela deixou o Brasil ao lado de Monique.
'Não conseguia pisar no ginásio'
Depois da viagem às pressas, o casal acreditava que seguiria a carreira, mas os primeiros meses se mostraram difíceis. Sem falar inglês e com contas a pagar, as duas viraram "faz-tudo": trabalharam com construção, atividades domésticas, deram aulas de direção, foram babás e bartenders.
Tivemos de deixar de lado o esporte que fazíamos todos os dias para começar a nos dedicar a trabalhos que nunca fizemos na vida. Não foi fácil.
Aline
Aline diz que o sentimento de frustração era constante —e que tinha medo de nunca mais voltar ao esporte. "Passavam semanas, meses e a gente não conseguia pisar no ginásio. Foi ficando aquele sentimento: será que é o fim?"
Tive de parar de mexer no Instagram porque não conseguia olhar para as pessoas nas minhas redes sociais levantando peso. Cheguei a entrar praticamente em depressão. Sabia que era complicado porque foi uma decisão que tomei para um bem maior, a gente tinha de fazer isso, não tinha opção.
Aline
Para Monique, a reação da família à mudança também foi um desafio, já que, no início, ela não falou aos pais por que decidiu sair do Brasil. "Minha mãe não sabia, não entendia o motivo. Ela soube o que aconteceu faz um ano e meio porque, até então, brigava comigo, dizendo que eu tinha de voltar, que tinha largado tudo no país, que tinha uma carreira de sucesso. Eu dizia para ela: 'Mãe, você vai entender um dia'".
Aline diz que recorreu à ajuda psicológica e que, paralelamente, construiu com a esposa uma empresa de limpeza e organização. "A gente pensou: 'Se formos voltar para o esporte precisando que o patrão libere para treinar, não vamos conseguir. Mas, se a gente tiver nossa própria empresa, é diferente.'"
Quando você tem um asilo, não pode mais voltar ao Brasil, mas a gente queria voltar a ser atleta, só não sabia como.
Aline
'Aconteceu com o time de refugiados'
Foi assistindo a um filme da Netflix que Aline e Monique encontraram uma alternativa para retornar ao esporte. "Estávamos vendo 'As Nadadoras' na casa de uma amiga e ela disse: 'Essa menina está na mesma situação que vocês e conseguiu voltar a competir'. Ficamos nos questionando sobre isso."
O filme é baseado na história real das irmãs sírias Yusra e Sara Mardini. Em 2015, após presenciarem um atentado durante um treinamento de natação, elas deixaram o país. Ao cruzar o mar Egeu, o bote em que estavam começou a afundar e elas tiveram de terminar a viagem nadando —e carregando nas costas os demais migrantes que as acompanhavam.
A história das Mardini inspirou o Comitê Olímpico Internacional a criar a Equipe de Refugiados, nas Olimpíadas do Rio 2016. "A gente não tinha conhecimento nenhum de como era isso, como fazer parte do time, quais os critérios. Mas foi por esse filme que começamos a investigar mais", conta Aline.
A IWF (Federação Internacional de Levantamento de Peso) começou a acolher atletas em situação de refúgio no ano passado. Aline e Monique estavam na lista das mulheres que inaugurariam o time. "Já estávamos nos preparando para competir por algum time, que não sabíamos qual seria. E isso foi realizado com os refugiados", diz Monique.
Para o casal, uma das características da equipe é o acolhimento. "Me sentia protegida. Eles entendem seu lado, o que você passou", diz Aline.
A primeira competição foi em setembro do ano passado, em Riad, na Arábia Saudita. "Fiquei muito feliz no final, cheguei a me emocionar porque eu não acreditei que estava ali competindo", lembra Monique.
Depois de tantos anos sem uma competição internacional, ficamos deslumbradas.
Aline
Aline e Monique contam que tinham muita expectativa de participar das Olimpíadas de Paris. "A gente estava basicamente dentro", diz Aline. "Fizemos uma preparação, mas quando foram escolher os atletas, nossos nomes não estavam lá (na lista de convocados)."
A notícia de que não iriam a Paris veio como um golpe. "A gente não conseguiu entender muito, não tivemos uma explicação ou justificativa, quais foram os critérios. Até hoje não sabemos por que."
Eu gostaria de saber também [por que não fomos selecionadas para as Olimpíadas], mas a gente está firme e forte, vivendo um dia de cada vez.
Aline
Em nota, a IWF afirmou que o grupo de refugiados foi criado primeiramente para participar de eventos da federação, como o Campeonato Mundial e treinamentos. "Durante todo o processo, ficou claro aos atletas que a integração na Equipe de Refugiados da IWF não se destinava a uma eventual participação nos Jogos Olímpicos", diz a federação.
O projeto [da equipe de refugiados do IWF] foi renovado para este ano e incluiu dois atletas que já faziam parte do programa de bolsas do COI [Comitê Olímpico Internacional]. "Esses dois levantadores tinham necessariamente a prioridade para a inclusão na Equipe Olímpica de Refugiados do COI e, para grande satisfação da IWF, foram de fato selecionados para os Jogos de Paris 2024", completa o comunicado. A federação diz que o restante dos atletas deve permanecer no projeto, participando das atividades de treino e campeonato.
Mesmo fora das Olimpíadas, Aline e Monique pretendem se manter na ativa para uma próxima oportunidade. "Nossa vida de atleta é repleta de altos e baixos, mas estamos fazendo nosso melhor. Treinamos para competições desse nível, de Campeonato Mundial, Olimpíadas. Não queremos treinar por treinar e sim para conseguir resultados que a gente sabe que é capaz", diz Aline.
O retorno à seleção brasileira, por sua vez, não é uma alternativa. "Não temos vontade de voltar ao Brasil. Estamos muito felizes com o suporte que o time de refugiados dá para a gente, então, o Brasil está fora de cogitação. Nosso objetivo é ficar no time o máximo que pudermos, até que a gente seja americana, de fato, e possa talvez representar os Estados Unidos."
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.