Operação resgate: como afegãs fugiram do Talibã e chegaram às Olimpíadas
Quando Yulduz Hashimi, de 24 anos, cruzou a linha de chegada do ciclismo contrarrelógio, na tarde de sábado (27), em Paris, havia muitas histórias sendo escritas. O tempo de 44min29s deu a ela a 26ª posição entre as 35 participantes.
Mas o tempo, para a ciclista do Afeganistão, era apenas um detalhe. Aos 24 anos, ela tornou-se a primeira representante do país a competir na modalidade em uma Olimpíada.
O feito poderia ser mais um entre tantos de pioneirismo olímpico; só que o caso de Yulduz é diferente. Para estar em Paris, ela desafiou a própria família, o preconceito, as leis e o governo do Talibã, que reassumiu o controle de seu país em agosto de 2021.
Ser uma mulher ciclista no Afeganistão não é apenas uma questão de dificuldade ou de falta de incentivo. É crime. Desde que o grupo radical voltou ao comando, a prática de esportes por mulheres está proibida.
Então, como a ciclista conseguiu chegar a Paris? A resposta nos leva a mais uma história, e ao nome de uma outra mulher apaixonada pelo ciclismo: a italiana Alessandra Cappellotto.
"Volta de Cabul"
Ex-ciclista olímpica, Cappellotto criou em 2017 um movimento chamado Road to Equality (Caminho para a Igualdade, em português), que tem como objetivo dar oportunidades a ciclistas de países em que mulheres não têm acesso a equipamentos ou simplesmente estão impedidas de competir.
Em março de 2021, a italiana organizou uma prova em Cabul, capital do Afeganistão — lá, ela conheceu Yulduz e de sua irmã mais nova, Fariba. O evento estava marcado para 8 de março, uma data emblemática, mas só aconteceu no dia seguinte. O motivo: um atentado do Talibã na semana anterior.
Ali, a ex-ciclista italiana teve um primeiro sinal. Nos meses seguintes, ela manteve o contato com um grupo de ciclistas afegãs, incluindo as irmãs Hashimi. "Eu falava sempre com o presidente da federação de ciclismo, perguntava se havia o risco do Talibã chegar a Cabul e retomar o poder, mas ele dizia que não", conta Cappelloto ao UOL.
Cinco meses depois, a história do Afeganistão, das irmãs Hashimi e de Alessandra Cappelloto mudaria para sempre.
O resgate
As linhas abaixo são um depoimento de Alessandra Cappelloto à reportagem. A italiana lembra em mínimos detalhes o que aconteceu naqueles dias (e noites) de agosto de 2021.
"Na noite do dia 14 para 15 de agosto, o Talibã entrou em Cabul. Naquela manhã, fiquei completamente em pânico. O presidente da federação começou a insistir que precisávamos tirar as meninas de lá, pois suas vidas estavam em perigo, com o Talibã procurando por elas.
Graças a contatos que eu já tinha, comecei a trabalhar com o governo italiano. Mandei mensagens para três ministros: o ministro do Interior, das Relações Exteriores e da Defesa. Foram os 15 dias mais loucos da minha vida. Na Itália, tudo estava fechado, e apenas o ministro Luigi Di Maio, das Relações Exteriores, atendeu o telefone. Ele me deu o número de seu vice, e começamos a trabalhar incansavelmente, mantendo contato com as meninas via WhatsApp.
Os dias foram ficando mais intensos. O primeiro dia começou com quatro ou cinco horas de trabalho, mas logo estávamos trabalhando 10, 15, 20 e até 24 horas seguidas. Coletávamos nomes e dados, pedindo às meninas seus números de passaportes e identidades. Elas precisavam ir ao aeroporto de Cabul, que estava lotado de gente.
Nos últimos dias, estivemos em contato direto com os militares na barreira ao lado do aeroporto. A relação era tão próxima que tínhamos os celulares dos soldados italianos. Trabalhamos 24 horas por dia, e os militares nos ajudaram muito: eles conseguiram identificá-las e colocá-las dentro do aeroporto.
Por fim, conseguimos tirar 16 pessoas do Afeganistão, incluindo ciclistas e alguns membros de suas famílias. Elas chegaram à Itália no dia 27 de agosto. Foi uma experiência louca e exaustiva, mas ver as meninas em segurança fez tudo valer a pena".
Recomeço e inspiração
Na chegada à Itália, o grupo teve de recomeçar a vida. As ciclistas receberam equipamentos e foram direcionadas a equipes locais. Yulduz e Fariba puderam, finalmente, voltar a competir — em três anos, saíram de uma fila no exterior do aeroporto de Cabul sitiado para a linha de partida de uma prova olímpica.
Em 2023, as irmãs participaram do Campeonato Mundial de ciclismo de estrada, em Glasgow. Foi a estreia de ambas em competições de primeiro nível. Em Paris, Yulduz já competiu no contrarrelógio e também estará na prova de estrada, ao lado da irmã, Fariba. A caçula foi a porta-bandeira do Afeganistão na cerimônia de abertura.
A história das afegãs é uma inspiração para mulheres de outros países em que simplesmente praticar o esporte já é uma vitória. Nos últimos meses, ciclistas iranianas também procuraram Alessandra Cappelloto em busca de ajuda.
Mas o exemplo vai além: quem nunca teve de enfrentar as leis do próprio país para competir também se emociona com a história das afegãs.
"Eu tenho um enorme respeito por essas pessoas. Elas já ganharam a corrida delas, que é uma corrida pela vida. Acho que elas merecem muito estar aqui, porque os Jogos Olímpicos servem para reunir as pessoas. Quero muito poder conversar com elas, porque elas realmente são uma inspiração para muita gente", disse ao UOL a ciclista italiana Elisa Longo Borghini, oitava colocada no contrarrelógio.
ONU reconhece opressão de gênero
Numa investigação concluída pela relatoria da ONU no final de junho, foi determinado que o grupo no poder promove crimes contra a humanidade ao implementar um "sistema institucionalizado de opressão de gênero".
Segundo o informe, o Talibã criou um "sistema de discriminação, segregação, desrespeito à dignidade humana e exclusão generalizado, metódico e imposto por meio de decretos, políticas e execução, sancionando graves privações de direitos fundamentais".
A "arquitetura de opressão" foi construída por meio de 52 decretos que intensificaram as restrições às mulheres e meninas afegãs. Milhares foram excluídas do sistema educacional e são as que enfrentam os maiores riscos de casamento forçado e servidão por dívida. "Dia após dia, o Afeganistão estava sendo privado de suas futuras engenheiras, jornalistas, advogadas, biólogas, políticas e poetisas", alertou o documento.
A investigação também concluiu que as "restrições sistemáticas ao direito das mulheres ao trabalho e à liberdade de locomoção haviam lhes tirado a autonomia financeira, forçando-as a depender de parentes do sexo masculino". "As famílias mergulharam ainda mais na pobreza, com mais relatos de depressão e suicídio entre mulheres e meninas", disse.
Richard Bennett, Relator Especial sobre a situação dos direitos humanos no Afeganistão, pediu num encontro no Conselho de Direitos Humanos da ONU em junho que a comunidade internacional evite a normalização ou legitimação das autoridades afegãs até que a situação das mulheres seja modificada. Para ele, existe um "apartheid de gênero" hoje no país.
Nasir Ahmad Andisha, Representante Permanente do Afeganistão junto ao Escritório das Nações Unidas em Genebra, também denunciou a situação e indicou que, sob o domínio do Talibã, o país enfrenta "uma das mais sérias crises institucionalizadas de direitos humanos do mundo".
O exame sobre o país ainda trouxe a voz de mulheres. Laila, uma jovem do interior do Afeganistão, disse que não pôde continuar seus estudos depois de ter sido banida das universidades. Benafsha Yaqoobi, ativista dos direitos das mulheres, confirmou que um sistema de "apartheid de gênero" vem se desenvolvendo.
"A institucionalização do Talibã de seu sistema de opressão de mulheres e meninas e os danos que ele continua a enraizar devem chocar a consciência da humanidade", disse Bennett. "Esse ataque contra as mulheres não está apenas em andamento, está se intensificando", completou.
O relator ainda sugeriu que o mundo use "todas as ferramentas" para desafiar e desmantelar o sistema institucionalizado de opressão de gênero do Talibã e para responsabilizar os culpados. Para ele, isso deve incluir até mesmo uma ação no Tribunal Penal Internacional, em Haia.
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