Sangue, suor e lágrimas: como foi o dia histórico da ginástica

A ginástica artística do Brasil sempre sonhou com o dia em que chegaria a uma medalha olímpica. Mas acreditava que isso só seria possível no "dia perfeito", em que tudo desse certo para o time brasileiro. Mas o pódio veio em uma jornada cheia de percalsos.

A começar pelo calor em Paris. Fazia 37 graus Celsius, sensação de 40, enquanto Jade, Rebeca, Flávia, Julia e Lorrane se dirigiam, em um ônibus urbano reservado pela organização, da Vila Olímpica à Arena Bercy.

"Estava muito calor, e a gente só pensava em um ventinho", conta Rebeca. Era o mesmo ônibus de todas as adversárias, e o papo, claro, foi o sol de rachar. "Conversamos falando sobre o calor, depois a gente coloca o fone, entra no nosso mundinho."

O mundinho do Brasil quase caiu, porém, quando Flavia Saraiva caiu do barrote na aquecimento das assimétricas. Como o Brasil estava na mesma subdivisão da China, que usa uma regulagem muito diferente no aparelho, o técnico Xico e Jade Barbosa, que não iria se apresentar nele, estavam preocupados com os ajustes. Foi quando Flávia caiu.

"Quando eu vi eu estava no chão, só vi que eu estava inteira, achei até que tinha perdido os dentes", contou a ginasta, rindo. Na hora, porém, o negócio foi sério, e a primeira preocupação dela foi rolar para o lado, para Rebeca poder começar a aquecer o quanto antes.

Jade ficou sem saber o que fazer. "Fiquei olhando para ela e pensando: ajudo ela ou vou aquecer, porque se ela não entrar eu que sou a reserva?". Mas Flávia tratou de resolver a questão. "Não, não, estou bem."

Flavinha estava sangrando e teria poucos minutos para voltar ao tablado e competir. Pela ordem de apresentações, ela seria a quarta. Retornou um minuto antes de ser chamada, com um curativo feito pela médica Lara Ramalho, que não estava entre os três escolhidos para fazer parte da comissão técnica durante a prova.

"Sangrou basntate, e o que a gente precisava fazer era estancar o sangramento. O que a gente fez foi limpar bem o curativo, estancar o sangramento, com uma cola de pele, e deu certo. O que a gente foi fazendo ao longo da competição foi vendo com relação a sintomas", contou a médica.

A comissão técnica sabia o que fazer. Lara trocou de credencial de acesso à área de competição com o fisioterapeuta da equipe e passou a ficar cuidando de Flávia, que se apresentou nas paralelas sem aquecer, e acertou.

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Ao longo da prova, enxergando pouco, com o olho esquerdo inchado, ainda trocou três vezes de curativo, porque o corte não foi estancado completamente. "Como foi na região da sombrancelha, as vezes fica um pouco de sangue, e não fecha", explicou Lara.

Mesmo com a dificuldade, Flávia seguiu competindo. No solo, sem estar 100%, adaptou a série. "Eu falei para ela: muda do esticado para o carpado e capricha na parte artística, para levantar o ginásio", conta Xico. Sem conseguir dar seu melhor tecnicamente, Flavinha apostou no carisma.

Mas pequenos erros de todas as ginastas, e uma queda de Julia Soares na trave, deixaram o Brasil em sexto para a última apresentação, no salto. Todas sabiam que o aparelho é o forte do país, de onde saem as notas mais altas, mas a sensação era de que não dava.

Quando Jade, que estava aquecendo no ginásio anexo, entrou na prova e fez um salto com imperfeições, a reação da equipe foi de desânimo. A moral só mudou depois de um 15,100 de Rebeca, na última apresentação do Brasil. As meninas pegaram o celular e viram as contas que estavam sendo feitas: se a britância Kinsella tirasse menos de 13,800 na trave, o bronze seria verde-amarelo.

"A gente não consegue ver a outras. A gente não sabe quem passou bem, quem não passou. As vezes você vê uma apresentação de outra equipe que é boa, e acha que foi tudo assim", explica Xico.

Quando o 13,600 de Kinsella saiu, as brasileiras se abraçaram, mas o treinador pediu que elas se controlassem. Sempre pode haver uma revisão, a nota mudar, a conta estar errada. Ele só acreditou, e elas só vibraram, quando o Brasil apareceu em terceiro na classificação final, após a última apresentação, de Biles.

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Aí, foi choro, abraço e muita festa das brasileiras. "Quando acabou a competição, a gente olhou pra cara uma da outra e: "Aconteceu!", contou Jade, que pode ter feito sua última participação em uma Olimpíada como atleta. "A Flávia perguntou: 'E daqui a quatro anos?' Eu vou estar aqui com você de novo", contou Jade, às lágrimas, deixando claro que seguirá próxima a equipe, mas sem saber se como atleta ou em qualquer outra função.

Já Lorrane Oliveira não participou da entrevista coletiva e falou com a imprensa. Ela saiu do ginásio abalada, pensando na irmã, que morreu este ano. Dedicou a medalha a ela.

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