Capacete no boxe só para mulheres: 'Não faz sentido', avaliam técnicos
No boxe olímpico, uma diferença no uniforme dos atletas é notável durante as disputas masculinas e femininas desde as Olimpíadas de 2016. Enquanto eles lutam sem o capacete, o equipamento é obrigatório para elas.
Exigido desde os Jogos de Los Angeles, há 40 anos, o uso do capacete por atletas masculinos de elite foi proibido em campeonatos organizados pela IBA (Associação Internacional de Boxe) em 2013 e a mesma norma foi adotada pelo COI (Comitê Olímpico Nacional) já na edição olímpica seguinte à proibição.
A regra foi estipulada pela IBA (chamada Aiba até 2021), a partir de um estudo encomendado pela própria associação. Nele, concluiu-se que o capacete não apenas falha em prevenir lesões cerebrais, como pode gerar ainda mais concussões nos boxeadores.
Técnicos brasileiros contestam regra
Desde que mudou, a regra é contestada por técnicos e atletas, que não entendem o motivo de a norma valer apenas para os homens, enquanto atletas mulheres e de base devem seguir com o equipamento em competições da IBA e das Olimpíadas.
Acredito que a decisão de tirar o capacete do masculino foi equivocada. Segundo os argumentos [da IBA], sem capacete o esporte seria mais seguro porque os atletas tomariam mais cuidado com os choques de cabeça, que é o que causaria mais lesões. Mas, ao longo dos anos, o que a gente viu foi o contrário. Os choques e a abertura de supercílios nos atletas foram muito maiores sem o uso do capacete. Além disso, se a regra não vale para o feminino e as categorias de base, então essa decisão não faz sentido algum. Suelen Souza, treinadora da seleção brasileira de boxe, eleita a melhor técnica do Campeonato Brasileiro de Boxe em 2019 e 2020
Para Breno Macedo, mestre em história social do boxe pela USP (Universidade de São Paulo) e treinador nas academias paulistas MM Boxe e Boxe Autônomo, o que está por trás da norma da IBA é uma "vontade de popularizar mais o boxe olímpico, para deixá-lo mais comercial e próximo do boxe profissional".
O técnico assistente da seleção olímpica brasileira, Adailton Gonçalves, concorda. Segundo ele, além de a dispensa do capacete "aproximar o boxe olímpico do profissional", deixa a luta "mais bonita para a TV".
"A gente sabe que, no fim das contas, o boxe sem capacete é mais atrativo para o público. É mais fácil você identificar os atletas vendo o rosto deles e, além disso, assistir à luta passa a ser mais 'interessante' quando o risco para o lutador é maior", explica Suelen Souza.
Sobre a função de proteção do capacete, contestada pela IBA, o técnico Macedo afirma: "Realmente, existe uma teoria no boxe de que o capacete não protege de danos cerebrais porque a cabeça vai chacoalhar do mesmo jeito, independente do equipamento ou não". E completa: "Outra lógica é que o capacete aumenta o volume da cabeça, então, um golpe que, sem o capacete, passaria resvalando, com a proteção, pegaria".
Mas sabemos que o capacete protege principalmente de cortes superficiais, e isso conta. Hoje em dia, muitos atletas estão de cara 'aberta' e é difícil achar um boxeador de elite que não tenha um ponto na cara. O corte na cabeça que o Abner [Teixeira] sofreu [na disputa olímpica contra o equatoriano Gerlon Congo], por exemplo, se ele estivesse com capacete, não cortava. Breno Macedo, mestre em história social do boxe pela USP
Avaliação médica
Médica da CCBoxe (Confederação Brasileira de Boxe) e do Comitê Paralímpico Brasileiro, Cassiana Hermann Pisanelli explica que o capacete é usado no boxe para evitar ferimentos corto-contuso [cortes ocasionados por contusão].
Ela afirma que, mesmo com o equipamento, "se o atleta toma um golpe muito forte, a cabeça pode fazer um movimento rotacional que pode gerar uma concussão [lesão cerebral] e o capacete poderia ser até algo compressivo [para o crânio]".
"Uma das lesões na cabeça que deixam a gente mais preocupado é justamente a concussão, que é aquele movimento muito rápido do cérebro dentro da caixa craniana, de aceleração e desaceleração, que pode acarretar em algumas sintomatologias, desde náusea, perda da noção do espaço e desequilíbrio, até processos mais graves de lesão, como perda de memória a curto ou longo prazo", explica a médica esportiva.
Ainda assim, Pisanelli defende o uso do equipamento pelos atletas e diz também que a função do capacete é prevenir cortes, principalmente de supercílio, que são muito comuns depois de choques de cabeça com cabeça ou cotovelo, por exemplo.
Eu nunca fiz nenhuma sutura [ponto cirúrgico] em meninas [da confederação], as únicas que precisei fazer foram no masculino. A Bia Ferreira, por exemplo, foi para o profissional e, em uma das lutas, já teve um ferimento no supercílio que, se ela tivesse com o capacete, provavelmente, não teria. Cassiana Hermann Pisanelli, médica da CCBoxe e do Comitê Paralímpico Brasileiro
Desclassificação por sangramento
Pisanelli lembra ainda que, no boxe olímpico, "não pode haver sangue", ou seja, se o atleta tem um corte e, no intervalo, não consegue estancar e fazer parar de alguma maneira o sangramento, ele é desclassificado por causa da lesão que sofreu.
"Eu, como médica, tenho o viés da proteção. Por isso, para mim, é válido [o uso do capacete], para preservar a saúde dos atletas, sempre", conclui.
Competições internacionais terão mulheres sem capacetes
Em março deste ano, a IBA publicou uma nova regra que dispensou o uso de capacetes também para atletas mulheres da categoria de elite, sem divulgar os motivos da decisão. Com isso, as exigências relacionadas ao equipamento para as disputas masculinas e femininas se igualam em competições organizadas pela associação. A norma, ao menos por enquanto, não vale para os Jogos Olímpicos.
Procurada com questionamentos sobre o estudo e a proibição inicial do uso do capacete apenas para competições masculinas de elite, a IBA não retornou à reportagem.
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