O drama de Valdileia para superar dores e tentar salto em final olímpica

A felicidade pela realização de um sonho combinada com a dor. Valdileia Martins viveu isso duas vezes desde que chegou em Paris, mas vai embora dos Jogos Olímpicos de cabeça erguida e coração quente (além de um pé inchado), podendo se olhar no espelho e dizer: eu sou uma finalista olímpica.

Aos 35 anos, a atleta brasileira descoberta em um assentamento do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) nunca havia se classificado a uma Olimpíada. Assim que chegou a Paris, soube que o pai havia falecido em Querência do Norte (PR). Só não foi embora porque a mãe a convenceu dizendo quanto o pai, Israel Martins, estava orgulhoso da filha.

Poderia também ter desistido depois de sofrer uma entorse no tornozelo, que ao que tudo indica é grave. Mas veio do mesmo jeito à final, e tentou saltar, apesar das dores constantes.

"Eu falei: 'Só vou desistir quando ver que não dá'. Aqueci já sentindo dor, mas quando vou correr não tenho força, na hora de saltar que tenho que colocar força no pé também não tenho confiança para colocar. Tentei vir, fazer meu melhor, mas infelizmente hoje meu melhor é nada", lamentou, com o ar sereno de quem sabe que fez tudo que estava a seu alcance.

Valdileia fez a melhor apresentação da vida no salto em altura nas eliminatórias, igualando o recorde brasileiro de 1,92m. Mas só haviam 12 vagas na final e o número de atletas a fazer o mesmo era maior. Assim, todas foram para o sarrafo a 1,95m. Na segunda tentativa, Valdileia se lesionou gravemente: uma entorse no tornozelo. Saiu da pista de cadeira de rodas.

Incerteza antes da final

Classificada à final, não sabia se poderia competir neste domingo, cerca de 55 horas depois. Com o tempo apertado, passou dois dias fazendo fisioterapia praticamente constante. Só parava para dormir.

"A gente fez bastante gelo, aparelho, laser, bandagem. Intensivo de quase 24h de fisioterapia ontem (sábado), hoje (domingo) também. Só que é uma lesão grave, não tem como recuperar em dois dias. Tomei várias medicações fortes para ver se conseguiria saltar", revelou.

O plano era entrar no estádio olímpico e só aquecer a corrida. O salto em si, só fazer na competição. Importante não era passar o sarrafo na altura de abertura da prova, 1,86m, mas tentar o salto: correr, pular, cair no colchão. Registrar uma tentativa.

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Ela tentou, mas não deu. "Quando fiz a passada, senti. Vi que não teria condições de meter o pé, porque acho que tenho uma lesão grave, preciso ver. Queria saltar por estar numa final olímpica, mas não tinha condições físicas."

Ainda assim, viveu momentos mágicos e saiu de cabeça erguida. "Fiz o que todo atleta gostaria de fazer: ffiz o meu melhor, ir para uma final olímpica. Queria saltar na final? Queria muito, nem que fosse 1,86m. Acredito em propósito e que tem um momento para todas as coisas. Hoje não era meu momento de saltar. A energia de uma final olímpica é única. Mundial não chega perto, Pan não chega perto. Olimpíada é até mágico."

O sentimento é muito distinto daquele que Valdileia sentia na terça-feira, depois de saber por telefone da morte do pai, seu maior incentivador. Disse à família que os Jogos Olímpicos haviam perdido a graça, que não havia mais clima para seguir em Paris, queria voltar para casa.

Mas ficou, para se colocar em um momento mágico. Porque só é finalista olímpica quem se classifica à final olímpica. "Hoje me sinto incrível. Pode falar 'Nossa, você está se achando', mas fui incrível na Olimpíada. Fico olhando meus vídeos, eu saltei, eu voei. Olha meu grito, que top. Nunca imaginava que fosse desse jeito. Imaginava minha vinda a Paris como uma simples vinda. Mas Deus é bom o tempo todo", afirmou.

Entre os 44 atletas que o atletismo brasileiro trouxe a Paris, Valdileia poderia mesmo ser a menos notada. Muito tímida, raramente dá entrevistas, e pouco fala de si, tanto que nem seus treinadores conheciam sua origem em um assentamento do MST.

Diante de jornalistas após a final do salto em altura, porém, se abriu. E fez uma bonita homenagem ao pai.

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"Quando fui no final do ano passar o Natal em casa com meu pai, fiquei quase um mês. Falei para as minhas irmãs que não teríamos ele no Natal do ano que vem, curtam agora ele. Só que eu não imaginava que seria agora, Deus estava me falando. Minhas irmãs não gostavam quando eu falava, mas eu sabia que ele iria partir. Então é aceitar que ele fez o papel de homem, formou pessoas de caráter. A gente nasce, cresce e morre. Todo mundo vai morrer. A gente tem que aceitar essa fase e aproveitar as pessoas em vida, depois que morre só vai ter as lembranças", recordou.

"Chorei ontem à noite. Todas as conquistas a primeira pessoa que sabia era meu pai. Quando saí de Paris não tinha meu pai para poder falar. Mas eu vivi tudo com ele. Sempre mimei ele em relação a tudo que queria. Fico feliz que ele não sofreu e já foi. Agora fica a recordação de uma pessoa do bem, do caráter, que não desiste. Quando você tem uma base que te incentiva a explorar o seu potencial. Ele não me limitava. Ele cumpriu o propósito dele. Agora a gente tem que aceitar que ele foi e viver sem ele", completou.

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