Notas, juízes e medalhas roubadas: os critérios por trás das polêmicas

No país do futebol, de quatro em quatro anos os Jogos Olímpicos deixam claro que o segundo esporte mais popular do Brasil é reclamar de arbitragem. Surfe, boxe ou ginástica, com ou sem brasileiros, sempre haverá polêmica quando houver intervenção da arbitragem. Vale tanto para as modalidades com notas, como o skate, quanto para aquelas em que juízes avaliam se golpes foram encaixados, como o judô.

Mas quem são esses árbitros todo-poderosos que decidem em alguns segundos se o trabalho de uma vida vale ouro, prata ou nada? Como são escolhidos? Quais são seus critérios? Que tipo de relacionamento eles podem ter com atletas?

O UOL foi em busca de respostas e conversou com especialistas de diferentes modalidades que ajudaram a esclarecer muitas das perguntas que surgiram durante Paris 2024 — inclusive sobre alguns resultados polêmicos envolvendo brasileiros nesta Olimpíada.

Boxe

Como são escolhidos?

Em Paris, o boxe é organizado pela Unidade de Boxe de Paris (PBU, na sigla em inglês). Foi esse órgão provisório, criado por causa de uma briga política entre o COI e a Associação Internacional de Boxe (Aiba), que escolheu os árbitros. E também pelo escândalo de manipulação descoberto após a Rio-2016. Cinco juízes são escalados por luta, depois de um sorteio eletrônico, e dão as notas a cada round. O árbitro no ringue só supervisiona o comportamento dos lutadores.

Comportamento

Juiz de boxe não pode se comunicar com a seleção de seu país de origem durante os eventos. "Quando começa, não pode tirar foto, sair para qualquer lugar. Árbitro sai do local para o carro, usa corredor específico, para separar dos atletas", explicou Edson Mendes, árbitro internacional, que esteve na Rio 2016.

Durante as lutas, "é extremamente proibido o olhar de um árbitro para o outro. Todos os juízes que estão à mesa abaixam a cabeça." Edson também ressalta que juiz brasileiro não trabalha em luta de brasileiro.

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No regulamento de Paris 2024, existe um observatório comportamental dos juízes. Há uma cabine na qual chegam sinal de pelo menos quatro câmeras. As notas atribuídas posteriormente são comparadas com a luta, em si, por essa comissão. Em caso de inconsistência, o juiz é afastado.

No boxe, juízes usam um terminal eletrônico para registrar a pontuação
No boxe, juízes usam um terminal eletrônico para registrar a pontuação Imagem: REUTERS/Peter Cziborra

Critérios de julgamento

Os juízes olham movimentação, estratégia, local de encaixe e força dos golpes, entre (muitos) outros critérios. "O leigo às vezes não consegue perceber que um golpe não pega. Golpe tem de ser limpo, sem bloqueio, passar a guarda, tocar no corpo ou no rosto", disse Edson.

As nota máxima para o vencedor do round é 10. Quem perdeu por pouco, leva 9. Quem perdeu de muito, 8. E quem tomou uma surra, um vareio, 7 — algo raríssimo.

E quando há polêmicas?

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O regulamento do boxe não fala em revisão de decisão após consulta por vídeo. Por isso, o posicionamento dos juízes é crucial nas lutas.

"A visão vai muito da posição, até mesmo o andar do árbitro no ringue. Acaba que um golpe que entra, às vezes o juiz não consegue ver. A posição dos próprios atletas também pode influenciar, se não deixar clara a conectividade dos golpes", disse Larissa Lisboa Froz, diretora de arbitragem da Federação de Boxe do Rio.

Para amenizar discrepâncias é que o boxe adota, em competições como as Olimpíadas, cinco juízes. Aí, as notas dadas por cada árbitro são somadas para definir quem ganhou o round.

"Quando é unânime, não tem discussão. Quando é 4 a 1, o juiz do 1, em 90% das vezes, está errado", explica Edson.

Surfe

Como são escolhidos?

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A Associação Internacional de Surf (ISA, na sigla em inglês) tem um ranking de juízes, definido por 8um algoritmo que compara médias e notas dentro ou fora do critério. Depois, vem uma distribuição por países. Experiência em eventos do circuito mundial é requisito, assim como vivência no local em que o torneio é realizado.

Quais os critérios?

São cinco juízes a cada bateria (e liberado nacionalidades iguais), que avaliam:

Comprometimento e grau de dificuldade.
Manobras inovadoras e progressivas.
Combinação de grandes manobras.
Variedade de manobras.
Velocidade, potência e fluxo.

As notas variam de 0 a 10, incluindo decimais. A cada onda, a maior e a menor das cinco notas são descartadas e o surfista recebe a média das três restantes.

E quando há polêmicas?

"Acontece. Mas temos de levar em consideração a história dos sete títulos [mundiais brasileiros] nos últimos nove [da WSL, a principal divisão do surfe mundial]. Eles foram julgados pelos mesmos juízes. Então por que será que realmente teria mudado agora?" indagou presidente da WSL na América Latina em conversa com o UOL em junho deste ano.

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Em Teahupoo, no surfe, a torre dos juízes é instalada em cima dos corais
Em Teahupoo, no surfe, a torre dos juízes é instalada em cima dos corais Imagem: Manea Fabisch - Pool/Getty Images

Skate

Juiz e competidor do mesmo país: liberado

Como no surfe, não há conflito de interesse presumido quando um dos juízes é da mesma nacionalidade de um competidor. "Estou no esporte há mais de 30 anos e não acho que a nacionalidade pode, por exemplo, impactar na nota. É difícil os árbitros não terem uma certa relação com os atletas, afinal os juízes vêm do esporte. Têm amigos, preferências e estilos", explica Roberto Teixeira "TX" Oliveira, fundador da Escola Brasileira de Skate.

Critérios de julgamento x telespectador

TX aponta que o fã que não conhece o esporte a fundo pode, sim, ficar com a impressão de que há algo errado nos julgamentos, mas ressalta que isso acontece porque nem sempre os critérios são bem explicados a quem está vendo.

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"A novidade é o torcedor do skate. Às vezes, ele não sabe muito bem as regras e acha que o árbitro está roubando. Dá até para dar exemplo: no boom do skate, nos anos 2000, quando tínhamos Bob Burnquist e Sandro Dias competindo, muita gente falava sobre as notas do Bob serem maiores que as do Mineirinho. Bob é um skatista genial que andava com a base trocada. É como se ele fosse destro e escrevesse com a mão esquerda. Por mais que os voos dele não fossem tão altos quanto os do Sandro, tinha essa sutileza, que as pessoas não percebem, mas que impacta na nota."

E quando há polêmicas?

"A grande questão é a margem que o atleta pode deixar para a subjetividade. Se depender de um detalhe de interpretação, não pode reclamar muito. Tem que ganhar com uma margem grande, para que não tenha risco. E no skate, há uma particularidade: não é só um esporte, é uma cultura. Talvez por isso a gente não se incomode tanto".

Rafael Macedo perdeu a disputa do bronze por uma punição por 'motivo indetermindo'
Rafael Macedo perdeu a disputa do bronze por uma punição por 'motivo indetermindo' Imagem: LUIZA MORAES/COB

Judô

No judô, os árbitros precisam ser aprovados em exames da FIJ, a Federação Internacional da modalidade. Além disso, não podem trabalhar em lutas envolvendo competidores de seus países.

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O trabalho é subjetivo, mas nem tanto. Para um ponto ser marcado, é preciso que o lutador toque com as costas (ippon) ou com a lateral do corpo (waza-ari) no tatame. Ele só precisa definir quando isso aconteceu. Além disso, ele também tem de fazer com que a luta aconteça, aplicando shidos (punições) para anti-jogo ou irregularidades. As polêmicas acontecem justamente quando a interpretação não é óbvia.

E quando há polêmicas?

"Algumas regras a gente acha que às vezes são necessárias, ou podiam ser um pouco mais claras. Às vezes, tem algumas coisas que eles deixam muito subjetivo, e isso dá margem, não só para alguma má intenção, mas também para erros", opinou o judoca Rafael Macedo, derrotado em Paris por uma punição que foi registrada pelos juízes como de motivo indeterminado.

"Confesso que, por umas duas noites, toda hora que eu botava a cabeça no travesseiro, eu ficava, 'caraca, o que aconteceu, não estou entendendo' e tal. Depois, conversando com o pessoal, eu fui entendendo. Falaram também um pouco da regra, e eu realmente acho que concordei muito com o que aconteceu", completou.

Ginástica artística

Na ginástica artística, são selecionados 94 juízes de vários países. Por ter seis aparelhos, o masculino conta com 56 juízes. O feminino, com quatro aparelhos, demanda 38.

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Cada aparelho tem dois juízes para avaliar a dificuldade dos exercícios — o que influencia na nota de partida. E mais sete cuidam da execução. Solo, barras e trave ainda contam com mais um juiz que cuida do tempo. Solo e salto sobre a mesa precisam também de juízes de linha.

Não existe restrição em relação à nacionalidade dos árbitros. Até porque eles são espalhados pelos aparelhos.

Rebeca Andrade
Rebeca Andrade Imagem: Reprodução/Globo

O que eles avaliam?

A execução dos movimentos, de acordo com o grau de dificuldade de cada exercício. Além disso, as séries têm requisitos específicos para serem cumpridos e movimentos que geram bonificação. Fazer uma série conservadora nem sempre é um bom negócio, porque a nota de partida pode ficar baixa.

E quando há polêmicas

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As delegações podem questionar formalmente durante as provas as notas recebidas, tanto sobre a execução quanto a respeito do grau de dificuldade atribuído aos exercícios. Não é garantia de sucesso no aumento da nota, como a delegação brasileira experimentou algumas vezes. Mas um exemplo de troca de sucesso após recurso foi o bronze dado a Jordan Chiles no solo. O aumento da nota tirou a medalha da Romênia.

A técnica da seleção Iryna Ilyashenko contou como foi a reação a uma das notas polêmicas da competição, a que tirou Rebeca Andrade do pódio na trave.

"Competição é competição, às vezes você sai satisfeito, às vezes não. Mas acho que, nem a Rebeca, nem a gente, ligou muito com a nota. Ela ficou super feliz porque a série foi boa. Então, deu certo. Ficar dentro do ginásio arbitrando às vezes é um pouco diferente, a visão é um pouco diferente. Então a gente não podia julgar."

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