Por preconceito, lutadora argelina recebeu apoio. Judoca brasileira não
O ano é 2024 e uma atleta de boxe italiana decide desistir da luta contra a argelina Imane Khelif após 46 segundos, alvo de acusações de que seria um homem, sem nenhuma comprovação.
O ano era 1996 e Edinanci Silva foi destruída por imprensa e sociedade quando descobriu-se que ela era uma pessoa interssexo.
Entre 1995 e 1996, minha vida foi o cão. Não podia sair na rua porque ficavam me atacando. Não fisicamente, mas com palavras. Em Guarulhos, quando as pessoas me reconheciam, diziam: 'Isso aí é um homem', usavam palavras chulas para me atacar" Edinanci, em entrevista ao UOL.
Nos quase 30 anos que separam os dois fatos, o mundo viveu sete edições dos Jogos Olímpicos e nada parece ter mudado.
Ou melhor, uma coisa mudou: se na década de 90 Edinanci sofreu em todas as frentes, dos órgãos oficiais, passando pelo público até a imprensa, em 2024 ao menos existe algum apoio para Imane.
O COI, que, com Edinanci, exigiu um teste de feminilidade cruel e invasivo, agora defendeu a argelina contra o que chamou de decisões unilaterais da IBA , a Federação Internacional de Boxe. A presença da atleta nos Jogos foi uma ação direta contra a entidade do boxe, que a eliminou de um campeonato mundial. E o presidente do COI, Thomas Bach, disse em entrevista que não iria tolerar comportamentos como o da italiana Angela Carini e que questionamentos sobre o gênero da atleta era inaceitável.
"Temos duas lutadoras que são mulheres, nasceram mulheres, foram criadas como mulheres, têm passaporte feminino e competem, há muitos anos, como mulheres", disse. Ele também se referiu à atleta tailandesa Lin Yu-ting, outra que teve seu gênero questionado. Bach reforçou que não se tratam de casos de pessoas interssexos, como é o de Edinanci.
Khelif e Yu-ting chegaram às finais em sua categoria. A argelina luta pelo ouro até 66kg hoje (9) contra a chinesa Liu Yang, às 17h51 (horário de Brasília). Yu-ting, na categoria até 57kg, luta no sábado, às 16h30, contra a polonesa Julia Szeremeta.
"Estou muito orgulhosa do povo da Argélia e do mundo árabe. Fiz o meu máximo por eles e todos eles vieram aqui me ajudar. Estou na final e estou muito feliz como árabe e com todo o povo. Cheguei à final com muito esforço", disse após vencer na semifinal.
Abalo psicológico
Em entrevista à BBC da Arábia, o tio de Khelif disse que ela não se importa com os boatos a seu respeito. Segundo ele, a infância de muita luta deu a ela a força mental necessária para passar por cima disso.
Ela cresceu em uma vila rural que raramente permitia que as meninas saíssem de casa. Foi vendo-a jogando futebol na rua que um técnico a convidou para lutar boxe em uma academia a 10 quilômetros de sua aldeia.
Sua mãe vendia sucata para que ela pudesse pagar a passagem de ônibus para ir aos treinos. E como ia sozinha, os rumores começaram já naquela época, com vizinhos questionando a liberdade que ela, como menina, recebia da família. Seu pai chegou a pedir que ela não lutasse mais boxe. Para não desistir, ela se mudou para a casa dos tios, que ficava mais perto do local de treino.
Nesse momento olímpico, Imane foi aconselhada pela família a se manter longe das redes sociais. ""Ela está sempre tentando superar esse bullying, e há pessoas ao seu redor que a apoiam. Khelif não acredita em perder e não se importa com esses boatos", disse seu tio.
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Edinanci não teve a mesma sorte. Estava sozinha em São Paulo, deixando a família no interior da Paraíba. Chegou a ficar três dias só bebendo água em uma viagem de ônibus para uma competição no sul do país. Sem apoio e a base de ataques.
Por isso, ela pensou em tirar a própria vida. "Pensei em suicídio, mesmo. O hater pelas redes sociais machuca essa geração. Mas o hater pessoal é mais duro. Machuca, você não tem ideia", diz. Ela chegou a ligar para mãe e disse que desistiria de sua carreira.
Foi na força do ódio, como ela diz, que venceu. Mas foi custoso. "Virava o capeta, de tanto ódio, de tanta raiva. Só que isso faz muito mal. Você acaba se tornando uma pessoa que você não é, uma pessoa revoltada, que não confia em ninguém", conta.
Começo da polêmica
A discussão a respeito do gênero das atletas começou porque as duas atletas reprovaram no teste de elegibilidade de gênero do Campeonato Mundial de Boxe de 2023, mas foram liberadas para participar das Olimpíadas.
Esses testes são feitos em atletas que vão participar de uma competição de um único gênero - boxe feminino, neste caso. As alegações eram que elas tinham níveis de testosterona altos no sangue. Contudo, elas já tinham participado —e perdido lutas— outras vezes no Mundial, sem problema algum.
O presidente da Associação Internacional do Boxe chegou a afirmar que Imane Khelif era uma pessoa interssexo, mas até hoje não mostrou nenhuma prova.
As atletas são intersexo?
A diretora da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia, Karen de Marca, diz que é difícil falar do caso, pois não há informações sobre a saúde da argelina. Mas uma das suposições da profissional é que ela tenha Síndrome de Insensibilidade aos Andrógenos (AIS).
"Essa pessoa tem sexo cromossômico XY por conta de uma mutação genética, mas acaba desenvolvendo características femininas. E, ao nascer, por ter uma genitália feminina, é identificada como mulher", diz Marca. "Essa síndrome tem diversas variações. A pessoa pode nascer com características masculinas e ser infertil, ter uma genitália com características femininas, pode responder ou não a testosterona, tendo mais pelo e sendo mais alto, por exemplo", diz Marca.
Segundo a médica, muitas pessoas descobrem que têm a condição apenas na adolescência ou na vida adulta, quando não conseguem menstruar ou engravidar. "É muito difícil dar a notícia para uma mulher de que ela não tem útero", diz. E reforça que a pessoa é, sim, uma mulher. "Ela cresceu e se desenvolveu assim", diz
O ortopedista Roberto Ranzini, especialista em medicina esportiva, reforça que o sigilo médico é primordial na relação com o paciente. Por isso, se o atleta estiver apto e dentro do que as competições exigem, ele não tem que avisar se a pessoa é interssexo ou não.
"Existe um segredo entre os dados dos pacientes que o médico não pode divulgar a não ser nos casos de moléstias infecto-contagiosas de comunicação compulsória", explica Ranzini. Contudo, se notar diferenças hormonais, é necessário uma investigação, pelo bem da saúde do atleta.
"O médico do esporte deve sempre se ater aos critérios de normalidade dos níveis de qualquer hormônio, e se houver um aumento dos níveis normais deve ser feita uma investigação para se encontrar as causas ou se aqueles níveis são normais para aquele atleta", diz.
Há vantagem?
Nesse ponto, os médicos discordam. Ranzini acredita que altos níveis de testosterona podem, sim, aumentar as vantagens competitivas de uma atleta mulher. "Respondendo de forma genérica, sim. A testosterona confere uma qualidade muscular superior, entre outras características, e pode ser uma vantagem dependendo da modalidade esportiva", diz.
Para Marca, depende muito. E ela dá exemplos práticos: um jogador de basquete com a mão maior do que a média não é questionado pelas suas habilidades. Um nadador que consegue segurar mais o ar no pulmão não é questionado por ninguém se pode ou não competir.
"Aparentemente ela tem características mais masculinas. É uma mulher alta e musculosa. Mas não podemos julgar pelo o que estamos vendo. Ela não pode ser banida por ter a testosterona aumentada e nem por ser uma mulher XY. Na prática, a gente não sabe a sensibilidade que ela tem - e se tem - ao hormônio", explica.
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