Atleta criou laço e inspirou marchinha de casal amigo de Silvio Santos
Recordista mundial no atletismo e, por que não, também uma herdeira do Carnaval. Beth Gomes, que integra a delegação brasileira nas Paralimpíadas de Paris, mal sabia que ganharia uma segunda família em meio ao tratamento de esclerose múltipla e formaria um íntimo laço com Manoel Ferreira e Ruth Amaral.
A dupla tem mais de 200 composições, algumas do quilate de "A pipa do vovô não sobe mais", e "Transplante Corinthiano", que ganharam o Brasil na voz de Silvio Santos. A própria Beth, inclusive, foi inspiração para uma delas, que foi feita antes dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos do Rio. A canção, porém, não chegou a ser divulgada de forma oficial — a letra está abaixo.
Ele fez essa música, quase como um hino para os Jogos, mas não houve tempo hábil de ser colocada [no ar]. Ficou apenas na memória de todos que puderam ouvir Beth Gomes
Em Paris, Beth, que é a atual recordista mundial do lançamento de disco, busca a segunda medalha paralímpica na carreira, após o ouro em Tóquio 2020 no lançamento de disco na classe F53.
Como começou a relação
Beth Gomes é filha biológica do casal João e Marcelina. Praticante de vôlei na juventude — e tricampeã regional —, se tornou guarda municipal em Santos, cidade natal dela. Ao tentar fazer um salto simples, caiu. Aquilo ligou um sinal de alerta, e ela recebeu o diagnóstico de esclerose múltipla, doença autoimune que atinge o cérebro, os nervos ópticos e a medula espinhal.
Quando a doença se manifestou, pensei: 'a minha vida acabou, o que que eu vou fazer?'. Tentei até tirar a minha vida, mas sempre digo que Deus está presente em nossas vidas, e as coisas foram caminhando Beth Gomes
A esclerose múltipla tem os considerados "surtos", que é o aparecimento de sinais e sintomas neurológicos que duram mais de 24 horas. Em 1998, Beth teve um desses surtos, que afetou a visão e o movimento dos membros superiores, e buscou ajuda em meio à situação que se agravava rapidamente.
"A médica com a qual eu me atendia não estava, e as coisas estavam piorando. Um farmacêutico conhecido indicou ligar para a Rosana, e eu digo que, ali, os anjos já estavam fazendo com que as nossas famílias se unissem."
Rosana é neurologista e filha de Manoel e Ruth. A partir daquele momento, a atleta ganhou mais que uma médica, mas também uma irmã. À época, Beth praticava basquete em cadeira de rodas e temeu também ter de se afastar dos esportes.
"Eu já estava desesperada. Era bem de noite quando consegui falar com ela, e ela pediu que eu tomasse alguns medicamentos. No dia seguinte, fui ao hospital e nos conhecemos. Ela conseguiu reverter aquele quadro. Começamos as nossas conversas, e a amizade foi só crescendo. Ela falou: 'Beth, foi Deus que colocou você em nossas vidas'. Os pais dela também foram me visitar no hospital."
Aos poucos, as famílias criaram elos fortes e se tornaram uma. Dona Marcelina faleceu em 1990, quando Beth tinha 25 anos, e não chegou a ver a trajetória da filha como atleta. Seu João morreu em 2010.
"A Ruth e o Manoel já estavam no nosso círculo de amizade, da família, e falaram: 'seus pais estão, agora, em um plano espiritual e nós vamos ficar aqui na Terra como seus pais. Você é nossa filha'. Eles me amavam tanto quanto eu os amava. Eu sempre tive um amor muito, muito grande e tudo isso começou através também da minha irmã de coração."
Manoel morreu em junho de 2016, às vésperas das Paralimpíadas do Rio, aos 86 anos. Ruth, por sua vez, em 2021, dias antes de Beth alcançar o topo do pódio em Tóquio — ela soube quando já estava no Japão. "Soube uma semana antes, já estava lá, e foi um baque grande. Pude trazer a tão sonhada medalha de ouro em homenagem a eles."
Quando eu falo que os meus pais do coração são os compositores dessas marchinhas famosas, o pessoal fica 'meio assim': 'Jura? Que legal'. E aí pedem para eu cantar e tudo. São músicas que marcaram o Brasil. E é bom que, como sou uma das mais velhas da delegação, apresento essas marchinhas aos mais novos Beth
Atletismo para 'ajudar' Santos
Beth começou no esporte paralímpico meio por acaso. Ela começou pelo basquete em cadeira de rodas, após conhecer um casal no Conselho Municipal da Pessoa com Deficiência quando foi tirar uma carteirinha para utilizar nos ônibus. Na modalidade, chegou a defender o Brasil nos Jogos Paralímpicos de Pequim.
Em 2006, para ajudar a pontuação de Santos nos Jogos Paralímpicos do Estado de São Paulo, começou a trajetória no atletismo.
"Eu fazia provas de cadeira de rodas. Um dia, um ex-treinador perguntou se eu não podia participar dos lançamentos e arremessos no atletismo para trazer mais pontos para a cidade. Eu topei e comecei a treinar. Fiquei no atletismo e basquete até 2010", contou.
Em 2010, após uma conversa com um coordenador do comitê, optou por focar no atletismo, e em 2011, em Guadalajara, participou do Parapanamericano. Desde então, foram algumas conquistas, sendo uma das mais recentes o ouro no lançamento de disco e prata no arremesso de peso no Mundial de Kobe, neste ano.
Paris 2024
Beth está prestar a competir na sua terceira Paralimpíada, a segunda no atletismo — em 2008, atuou no basquete em cadeira de rodas. Em 2016, uma reclassificação funcional impediu a classificação para os Jogos. "Uma classificadora internacional da Austrália me colocou em uma classe acima da minha e me tira esse sonho. O Comitê Paralímpico ainda correu atrás, mas não pude mudar de classe por dois anos."
A frustração ficou para trás logo no ciclo seguinte, e com topo do pódio. Ela foi ouro em Tóquio, Paralimpíadas em que foi a mais velha da delegação brasileira, com 56 anos. Agora, em Paris, escreve mais um capítulo dessa históra.
Chegar em Paris, aos 59 anos, é uma das maiores realizações da minha vida. Quando eu era jogadora de vôlei, sonhava em estar nas Olimpíadas. Foi interrompido pela esclerose múltipla, mas Deus quis que eu chegasse à terceira Paralimpíadas. Estou focada para fazer um excelente campeonato, melhorar as minhas marcas e buscar uma medalha. E se for de ouro, vou ficar ainda mais feliz Beth Gomes
Veja a letra da música
"Tá chegando a hora
A festa vai começar
Os astros do esporte, no Brasil, vão desfilar
Tá chegando a hora
A festa vai começar
Os astros do esporte, no Brasil, vão desfilar
Com fé e emoção
Vamos erguer nossa taça
Vamos mostrar nossa raça
Aguenta coração
É o mundo inteiro
Vivendo a mesma emoção
Torcendo por sua bandeira
Orgulho de sua nação"
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.