Quedas e suor: rúgbi em cadeira de rodas é tão intenso quanto o tradicional
O rúgbi em cadeira de rodas é um dos 23 esportes das Paralimpíadas 2024, com a primeira disputa em 29 de agosto entre Austrália e Grã-Bretanha. A seleção brasileira, que estreou nos Jogos Paralímpicos do Rio, não se classificou este ano.
Quem assiste a um jogo de rúgbi logo nota o intenso contato físico e agressividade para impedir o ponto do adversário. Na modalidade para pessoas com deficiência é igual: há pancadas fortes e barulhentas entre as cadeiras, que chegam a saltar no chão, e jogadores que caem.
De modo menos intenso, vivenciei a prática no Centro Paralímpico Brasileiro a convite da Coloplast, depois de acompanhar parte do treino da seleção brasileira e receber orientações de José Higino Souza, presidente da ABRC (Associação Brasileira de Rúgbi em Cadeira de Rodas).
Como foi a experiência
Coloquei luvas com uma borracha especial na palma, que além de proteger as mãos ajuda na aderência às rodas e à bola. Em seguida, sentei pela primeira vez em uma cadeira de rodas.
Ela é diferente das tradicionais: as rodas são inclinadas para fora, com aro fechado e há cintos de segurança para que o jogador fique bem firme nela, algo essencial durante as batidas e quedas.
Demorei um pouco para entender a lógica dos movimentos da cadeira, principalmente para fazer uma curva e trocar o sentido que estava indo. Achei difícil num primeiro momento, mas os neurônios se encaixaram após alguns minutos de prática.
Meu cérebro também demorou para processar que eu tinha de colocar a bola sobre as coxas para poder me deslocar em quadra. Acostumada com handebol, meu instinto era ficar com ela em mãos, o que limitava andar com a cadeira. Óbvio que na tentativa de ir para frente usando apenas uma mão na roda, eu só girava e não saía do lugar.
As luvas deixam o movimento firme, mas por duas vezes a aderência foi tanta que minha mão grudou e seguiu o movimento da roda por 180º, fazendo com que ela passasse por cima dos meus dedos indicadores. Doeu, mas as unhas estão intactas.
Jogamos uma divertida e cansativa partida de dez minutos em que, ao contrário do que pensei, suei bastante.
Raio-x do rúgbi em cadeira de rodas
A modalidade recebe influências do basquete, do vôlei e do handebol no que se refere aos recursos usados, como cadeira e bola.
Equipes: são mistas, ou seja, jogam homens e mulheres no mesmo time. Pessoas com três ou quatro membros comprometidos são elegíveis ao esporte. Cada equipe é formada por quatro jogadores em quadra e até oito reservas. As substituições são ilimitadas.
Grau de deficiência: o esporte recebe pessoas com altos níveis de deficiência. Os atletas são divididos em sete classes de pontos, que vão de 0,5 a 3,5, com base na capacidade funcional —assim como ocorre no basquete. Quanto maior o ponto, mais função física a pessoa tem. A somatória das classes de cada equipe não pode ultrapassar oito pontos.
"Os atletas são tetraplégicos ou tetraequivalentes, pessoas com deficiência em três ou quatro membros: há deficiências congênitas, lesões medulares, caso de pólio e paralisia cerebral", diz o presidente da ABRC sobre a seleção brasileira.
Tipos de cadeira
- Cadeira de ataque: é mais arredondada na base frontal para que os jogadores consigam fugir da grade que tem na cadeira de defesa. Ela geralmente fica com quem conduz a bola no jogo e tem pontos de classe mais altos (mais mobilidade).
- Cadeira de defesa: é para quem tem uma deficiência mais severa, com o papel de bloquear o adversário e ajudar o condutor de bola a fazer os pontos. Pelo formato de cada uma, elas travam uma na outra.
O rúgbi em cadeira de rodas começou com o mesmo modelo de cadeira usado no basquete, mas foi adaptado depois com o aro fechado para facilitar a rodagem.
A medida ajuda pessoas que, pela deficiência, não conseguem segurar o aro e usam o dorso da mão para movimentar a cadeira.
Pés, pernas, quadril e tronco ficam bem presos à cadeira, o que dá segurança quando ocorre uma queda. E há quedas! O jogo é tão agressivo quanto o rúgbi no gramado.
Bola
No rúgbi tradicional, a bola é oval. No esporte paralímpico, ela é redonda e mais parecida com a usada no vôlei, porém mais leve.
Ela quica mais e tem maior aderência para que o jogador possa segurá-la melhor, mesmo que não consiga abrir os dedos.
Os jogadores usam um tipo de cola na mão que ajuda a segurar a bola, assim como quem joga handebol. "No Brasil, a gente adaptou e usa cera de depilar", diz José Higino.
Dinâmica do jogo
A disputa ocorre em quadras de 15 metros de largura por 28 metros de comprimento, em quatro períodos de oito minutos cada.
A pessoa com posse de bola deve passar ou quicar a bola pelo menos uma vez a cada dez segundos. Se não fizer isso, é uma violação.
Para marcar ponto, o jogador deve passar da linha do gol adversário com as duas rodas da cadeira e a bola nas mãos ou no colo.
A partir do momento que ganha a posse de bola, a equipe tem 40 segundos para marcar ponto.
Quando uma pessoa cai, o jogo deve ser interrompido e a equipe do atleta entra em quadra para ajudá-lo a se levantar. Pelas regras, a pessoa não pode voltar a jogar por seu próprio esforço.
Esporte que transforma
José Higino nasceu sem deficiência. Aos 17 anos, foi furar uma onda no mar e bateu a cabeça. Fraturou duas vértebras do pescoço, a C6 e a C7, e ficou tetraplégico.
"Sempre gostei de esporte, sempre joguei muito futebol. Depois que me acidentei, em 2002, não achava nada que gostasse de fazer, que me chamasse a atenção", disse. Em 2010, conheceu o rúgbi em cadeiras de rodas em Brasília.
Quando tive contato com os meus pares, com pessoas com deficiências parecidas com a minha, vi que cada um fazia uma coisa que eu não conseguia fazer e descobri formas de fazer. Esse é o poder transformador, não só do esporte, mas da convivência com os pares.
José Higino
A prática lhe rendeu ganho de força, independência e melhorou suas habilidades nas atividades diárias.
Foi a mesma percepção que Lucas Junqueira teve. "Além de ser uma modalidade muito dinâmica, exige força e resistência, características que me ajudam no dia a dia", diz o integrante da seleção brasileira.
Para ele, o esporte ajudou na reabilitação e trouxe autonomia. "Treinando rúgbi, eu consegui ter mais força, mais resistência para fazer uma transferência, por exemplo, para a cama sozinho, consegui voltar a dirigir. O esporte me ajudou a ter uma vida mais independente."
Depois que ficou tetraplégico, aos 21 anos, ele notou que as pessoas tinham um olhar de vitimismo para ele, por vezes infantilizado. "Eu estava com uma deficiência física, mas o Lucas era o mesmo que sempre foi."
Nesse sentido, o rúgbi também rompeu a ideia de fragilidade que se tem de pessoas com deficiência, uma vez que a modalidade é agressiva e com fortes impactos. "A questão dos atletas em quadra, do contato entre as cadeiras quebra muito esse estereótipo."