Sem as pernas, brasileiro impressiona ícones do skate e vira sensação
A frase é conhecida por quem domina a arte de deslizar sobre rodinhas. Falando de outra maneira, o universo do skate se mostra democrático e não abre espaço para discriminação, mas para domar a prática é preciso muito esforço e talento. A vida do curitibano Felipe Nunes mostra o que isso quer dizer.
Antes de costurar as lembranças do passado e projetar o futuro, é preciso começar pelo presente: aos 18 anos, Felipe faz sua estreia no Tampa AM, o mais tradicional e cobiçado torneio de skate amador do planeta, disputado anualmente na Flórida (EUA). Vencendo múltiplas barreiras para estar ali (e o nervosismo natural), ele domina os obstáculos da pista, desenha linhas fluidas e deixa todo mundo espantado com seu arsenal de truques. Em resumo, conquista o respeito geral.
Dos 280 competidores presentes na mais recente edição do evento, no fim de 2017, Felipe é o único sem as duas pernas – nem por isso é colocado em uma categoria à parte. O desempenho lhe rende o 14º lugar, junto do prêmio extra de US$ 1 mil (R$ 3,2 mil) oferecido por um dos patrocinadores por ter sido o atleta mais esforçado.
Ele relembra cada segundo da aventura do quarto de sua casa, em Sítio Cercado, bairro do extremo sul de Curitiba (PR), onde nasceu. “A ficha só caiu quando entrei na pista”, recorda. “Senti a pressão, mas senti também que todo o skate brasileiro estava comigo naquele momento me empurrando”, diz.
As manobras bem executadas e o seu estilo destemido são resultado dos treinos diários na pista de Parigot de Souza. A menos de 10 minutos de onde mora, o local é seu segundo lar, em um trajeto que Felipe costuma percorrer... de skate.
O esporte foi a sua redenção após um início de infância trágico. Aos 6 anos, ele escapou da escola com amigos e topou uma aposta traiçoeira. Ao lado de um trilho de trem, Felipe esticou a mão enquanto um vagão passava. Esta é a última lembrança que carrega. O curitibano despertou com a cena de seus amigos gritando e correndo para pedir ajuda. “Tentei levantar e não consegui. Logo vi o que havia acontecido e bateu um desespero”, conta.
Um caseiro da região chamou o resgate antes de ele desmaiar de novo. O garoto só acordou no hospital, já com médicos e família ao redor.
“Tenho admiração e respeito por ele”, fala Og de Souza, 41 anos, skatista pernambucano e precursor do paraskate nacional. “Depois de tantos anos de esforço pessoal, fico feliz em ver que a história segue firme com caras como Felipe, o meu preferido pelo tanto de manobras que é capaz de mandar”, completa.
Outro “mestre” que ganha carinho recíproco é Ítalo Romano. Conterrâneo de Felipe, o curitibano sofreu acidente semelhante quando criança e, durante adolescência e começo da vida adulta, trilhou um caminho vencedor no skate. Em 2012, ele participou do Mega Rampa, um dos desafios mais arriscados do esporte.
“Aprendi a dar flip [manobra clássica do skate] por causa dele [Ítalo]”, conta Felipe. “Assisti a um vídeo e saquei o jeitinho que ele dava com as mãos, e aí comecei a tentar no colchão da cama mesmo”, se diverte Felipe, que conheceu Ítalo por meio de uma amiga em comum. Desde então, os dois já dividiram sessões na pista.
Recentemente, Felipe também chamou a atenção de ícones do skate como Tony Hawk, 49 anos, norte-americano multicampeão no vertical e que carrega o status de lenda. Ele compartilhou um vídeo do curitibano e deu voz a uma campanha criada por skatistas brasileiros com objetivo de levar Felipe ao Tampa AM. No fim das contas, Hawk viabilizou o projeto ao bancar as passagens para os Estados Unidos.
Esta revolução ganhou força quando Felipe entrou no radar do skatista profissional paulista Rodrigo Leal, o Maizena, durante um evento em Brusque (SC) em 2016. Ao lado de Renan Castagnaro, com quem produz o canal de YouTube “Vida de um Skatista”, a dupla encabeçou plano para levar Felipe a seu primeiro tour internacional. A empreitada ganhou apoio de Raul Motta, também skatista e youtuber, responsável pelo canal “Um Flip na Vida”.
Do sonho à realidade, no entanto, a tentativa de juntar quase R$ 40 mil para as despesas da viagem não vingou. Por outro lado, a energia movimentada gerou frutos. Ao fim, Maizena e Renan partiram para a aproximação direta com Tony Hawk, acionaram outros contatos e bancaram parte da jornada. Já nas vésperas do torneio em Tampa, tudo enfim se alinhou. Era hora de deixar Felipe voar.
“O mundo inteiro viu o rolê dele e aplaudiu sem parar”, relata Maizena, 34 anos, skatista desde 1999. “Ninguém estava batendo palma por que o Felipe não tinha perna, mas sim por que ele tinha ‘quebrado’ de verdade na pista”, completa.
“Sempre andei por amor”, diz Felipe. “Comecei por isso e segui adiante, cada dia querendo mais”, completa, com nítida timidez para entrevistas.
A acolhida geral levou Felipe a se lançar em competições locais. Nos últimos anos, ele tem acumulado notável evolução. Ainda assim, segue na luta pelo sonho de se tornar profissional. Dentro dos códigos da modalidade, o salto deve ser feito por uma marca do meio – uma espécie de apadrinhamento, lançando de vez um skatista na cena nacional e até mundial.
“A experiência em Tampa também foi ótima para o Felipe cair na real de que viver do skate não é nada fácil”, observa Maizena. “É ilusão achar que as marcas vão vir atrás de você de repente, tem de se esforçar muito, manter o nível, não dá para ser um cantor de uma música só”, diz.
Nesta busca por novos saltos – entre rampas, bordas e corrimãos – aos poucos Felipe vai se soltando. “O skate é muito importante para mim, me fez conhecer pessoas novas, trouxe muito aprendizado e mudou totalmente meu jeito de pensar e a forma como olho e cuido de mim mesmo”, relata. “Tive uma visão de onde posso chegar, e vi que consigo ir muito mais longe”, completa.
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