Forjado para vencer

Morre Maguila: Lutador passou fome, morou em caminhão abandonado e virou o maior do boxe brasileiro

Ana Flávia Oliveira Do UOL, em São Paulo Acervo/AE

José Adilson Rodrigues dos Santos, o Maguila morreu nesta quinta-feira (24), aos 66 anos. Ele tinha 22 anos no dia 21 de março de 1981 quando subiu ao ringue para a final da Forja dos Campeões, a mais tradicional competição amadora do boxe brasileiro. Há 40 anos, o torneio que já tinha lançado ao estrelato Eder Jofre e Miguel Oliveira (e depois faria o mesmo pra Acelino Popó Freitas) dava ao melhor peso pesado da história do esporte no Brasil seu primeiro título.

Naquele torneio de 1981, Maguila atropelou cinco adversários. Dois anos —e apenas quatro lutas profissionais— depois, ele seria campeão brasileiro. Os títulos Sul-Americano, das Américas e Mundial (em 1995, pela Federação Mundial de Boxe, que não estava entre as principais entidades da época) vieram depois. Passos naturais para um atleta, mas surpreendentes para o migrante nordestino que começou a vida em São Paulo como ajudante de pedreiro e segurança de casa noturna.

Há poucos registros da participação de Maguila naquele torneio. O nome do adversário na final não aparece nem mesmo no informativo da sua academia, chamada BCN e que funcionava no centro de São Paulo, ao comemorar o tetracampeonato na classificação geral da Forja, com 29 pontos —18 à frente do segundo colocado.

"Na Forja de Campeões de 81, ele [Maguila] ganhou todas as lutas. Ele teve cinco lutas e ganhou todas antes do limite de rounds", lembra o jornalista Newton Campos, de 95 anos, presidente da Federação Paulista de Pugilismo e o responsável pela organização do torneio.

Acervo/AE
ACERVO/GAZETA PRESS
Maguila em 1981: segundo seu biógrafo, essa é uma das raras fotos daquele ano

Três meses comendo só pão com banana

Maguila se interessou pelo boxe ainda em Aracaju (SE), assistindo a lutas de Eder Jofre e Muhammad Ali. Mas quando veio para São Paulo, aos 14 anos, para trabalhar como ajudante de pedreiro, o esporte era uma realidade distante. Ao documentário Maguila, de Galileu Garcia, produzido em 1985 e lançado em 1987, o lutador contou que passou fome na capital paulista.

Nunca pensei que ia ter essa saúde que eu tenho hoje porque eu fiquei amarelo, pálido. Foram três meses [comendo] pão com banana. E minha morada era um caminhão abandonado aqui no Butantã [zona oeste de São Paulo], desses que carrega entulho. Quando o dono descobriu que eu dormia lá, tirou o caminhão e eu fiquei [dormindo encostado] no poste."

O boxe só entrou na sua vida aos 19 anos. Quem conta a história é o boxeador profissional Raphael Zumbano, de 40 anos, neto de Ralph Zumbano [1925-2001], técnico de Maguila na academia BCN.

"Uma vez, alguns alunos do meu avô foram na boate que ele trabalhava. Um deles falou para o Maguila: 'Você tem todo o biotipo, você podia lutar boxe. Ele falou: 'pô, é meu sonho, queria lutar, mas não conheço ninguém. Fui em algumas academias, mas não deu certo'. O aluno do meu avô falou: 'Vai na academia do Ralph Zumbano. Ele com certeza ele vai te acolher'. E foi o que aconteceu."

Meu avô sempre contava que, quando conheceu Maguila, ele anunciou: 'Hoje apareceu um negrão na academia, um biotipo bom. Com certeza vai reinar aqui na América do Sul, vai ser campeão sul-americano. Com certeza'. E perguntaram para ele: 'E mais que isso?'. 'Ele pode até tentar título mundial, mas ai é outro trabalho'. Foi o que aconteceu. Além de aluno, ele virou um filho para o meu avô."

Raphael Zumbano, boxeador profissional e neto de Ralph Zumbano

Adriana Elias/Folha Imagem

De vez em quando, eu ia fazer uma reforma. A dona da casa via minha situação. Ela dizia: 'Você não trouxe marmita?'. Eu dizia: 'Eu esqueci'. Nem marmita eu tinha na época. Era pão com banana, pra que a marmita? Eu tinha 1,84, quando eu tinha essa idade, 15 anos. Eu pesava 70 quilos. Era um palito. Se olhasse pra minha barriga, via a espinha do outro lado."

Maguila, em depoimento no documentário Maguila.

Divulgação

"Parecia que Maguila era capaz de derrubar um prédio"

Maguila começou a treinar boxe em 1979, mas só disputou a primeira luta amadora dois anos depois, na Forja dos Campeões. O motivo: o técnico Ralph Zumbano, que também é tio de Éder Jofre, preferiu estender o período de preparação do atleta porque sabia que tinha "algo raro nas mãos: um legítimo peso pesado" —a frase é do jornalista Fernando Tucori, que está escrevendo o livro "Maguila", sobre a vida do campeão —ele ainda estuda propostas para a publicação.

"Ele instruiu o Maguila a causar impacto na Forja. Foi a mesma coisa que o treinador Cus D'Amato, outro sábio, mandou o Mike Tyson fazer nas lutas amadoras. O povo quer ver peso pesado nocauteando. E foi isso que o Maguila fez. Por isso, o Newton Campos diz que as lutas que o Maguila não ganhou por KO, ganhou por WO', diz o jornalista. O KO é a sigla em inglês para nocaute. Já o WO, de desistência.

Tucori conta ainda que o impacto que Maguila causou na Forja também foi resultado do trabalho de outro profissional, o auxiliar técnico João dos Santos, mais conhecido como Tóbis. "Esse cara era veterano do ringue e era mestre em fazer jogo mental. Ele chamava o Maguila para fazer manopla antes de subir no ringue e usava umas luvas meio murchas, que faziam um barulho de trovão cada vez que o Maguila batia nelas. Isso deixava os adversários apavorados porque parecia que o Maguila era capaz de derrubar um prédio."

Gabriel Cabral/Folhapress

No primeiro campeonato do Maguila, ele ganhou de cinco adversários. A gente tem uma dúvida se foi WO ou nocaute. Teve mais lutas programadas. Mas o problema é que nem todos apareciam. Agora os que apareceram foram derrotados. Ele já era famoso pelo forte poder de pancada que ele tinha. Então ele era muito respeitado e nem todos tinham entusiasmo de enfrentar ele porque ele costumava resolver a luta logo nos primeiros assaltos."

Newton Campos, jornalista e organizador da Forja dos Campeões.

Acervo/AE Acervo/AE

Maguila é campeão brasileiro em 1983 ao bater Waldemar Paulino no Ginásio do Ibirapuera, em São Paulo. Ele ficou com o título até 1995.

Arquivo pessoal/Chiquinho de Jesus

"Se me desse uma porrada, arrancava o pescoço"

"Eu já era profissional quando eu fiz luva com ele [Maguila] na BCN. Ele estava começando. O soco dele, é claro, é muito forte. Mas no boxe tem esse respeito. Ele da categoria super-pesado, acho que ele estava com 90 kg. Eu, com 70 kg. É super diferente. Mas nós chegamos a fazer uns dois, três rounds de treinos, mas bem leve, sem dar golpes fortes. Se ele desse uma porrada em mim com força, ele iria arrancar meu pescoço", conta Chiquinho de Jesus, representante do Brasil nas Olimpíadas de 1976 e 1980.

Arquivo pessoal

"Não tinha problema, era praticamente só fugindo"

"As categorias pesadas têm que fazer treinamentos de luva com os mais leves para melhorar a agilidade. Na época eu tinha mais experiência do que ele, então para mim não tinha problema nenhum, era praticamente só fugindo. Ele particularmente gostava de fazer comigo, ele mesmo falava: 'Eu gosto de fazer luva com Mata Cobra porque o Mata Cobra pega duro'. Eu tinha a fama de bater pesado", conta o ex-boxeador Francisco Almeida (Chico Mata Cobra), que disputou a Forja dos Campeões em 1978.

Reprodução/Fansshare

Apelido revelado na Forja

Adilson nem sempre foi Maguila. Nas boates em que fazia bico de segurança, era chamado de Godzilla. Em uma delas, porém, passaram a chamá-lo de Maguila, em uma alusão racista ao gorila Maguila, da Hanna-Barbera. "Ralph Zumbano [técnico de Maguila na época] não gostava do apelido. Achava racista — o que de fato é. Ele dizia que 'maguila é um macaco grande, e o Adilson é um homem'. O Maguila também não gostava muito. No começo, achou engraçado, mas depois ele descobriu que maguila era um macaco e mudou de ideia", conta Tucori.

"Acontece que, quando ele chegou na Forja, o apelido já tinha vazado. Na hora que ele foi anunciado pela primeira vez, o mestre de cerimônias, Newton Campos, o chamou pelo nome e acrescentou que era um lutador promissor, com um apelido engraçado: 'Maguila'. Ele ficou super bravo", prossegue o biógrafo.

O ex-pugilista Chiquinho de Jesus, medalhista de bronze nos Jogos Pan-Americanos de 1979 e representante do Brasil nas Olimpíadas de 1976, em Montreal, e de 1980, em Moscou, revela outro apelido de Maguila. "Quando ele começou a frequentar o meio do boxe, ele falava que era o João-de-Barro. É passarinho que a mulher fica dentro de casa e não sai para trabalhar. Ele não deixava a mulher trabalhar. Ele nem pensava na Irani [Pinheiro] ainda. Isso foi com a primeira esposa", conta Chiquinho ao se referir a Fátima, com quem o lutador teve dois filhos.

U. Dettmar/Folhapress

Maguila pensou em parar de lutar

Maguila ficou apenas dois anos no boxe amador. Em 1981, ganhou todas as lutas e torneios que disputou, segundo Tucori. No ano seguinte, duas derrotas o fizeram repensar sua trajetória.

"A primeira foi no sul-americano amador, que ele lutou fora da categoria de peso e teve problemas para se manter no limite. Naquele torneio, Maguila lutou como pesado e, por causa dos problemas de corte de peso, chegou na final muito debilitado e perdeu fácil", conta. "Depois disso, escalaram ele para lutar contra o italiano Francesco Damiani. Era para ser uma luta de exibição, mas não foi. O cara era da seleção olímpica italiana e vinha arrasando todo mundo. Botaram o Maguila para lutar com ele e ele levou uma surra terrível. Foi uma irresponsabilidade que podia ter acabado com a carreira dele".

Após essas duas derrotas, sem ganhar dinheiro no boxe amador e com dois filhos pequenos, Maguila cogitou abandonar o esporte. Quem salvou a carreira foi o empresário Kaled Curi. "Foi depois dessa luta (contra o italiano) —talvez até por causa dela— que o Maguila quase largou o boxe. Em 1982. E teria largado não fosse o Kaled. Ele foi lá e falou: 'Chega de lutar de graça. Você vai ser profissional'. Ele registrou o Maguila, na carteira de trabalho mesmo, e passou a pagar uma grana mensal para ele treinar e lutar como profissional", relata Tucori.

Gabriel Cabral/Folhapress Gabriel Cabral/Folhapress

O que é a Forja

Tradicional Torneio de boxe amador de São Paulo, a Forja nasceu em 1941 sob o pomposo nome de "Campeonato Popular de Boxe Amador da Gazeta Esportiva", lembrando o jornal que patrocinava o campeonato.

A primeira edição, que ocorreu no ringue da Polícia Especial, na Santa Ifigênia, no centro de São Paulo, teve como campeão dos pesos penas Kaled Curi, que seria empresário do Maguila na carreira profissional. Outros que participaram daquela edição foram Erasmo e Higino Zumbano, irmãos mais velhos de Ralph, que ensinou Maguila a lutar boxe. Após o título mundial de Eder Jofre, que venceu o torneio amador em 1953, Newton Campos, que, ainda hoje, aos 95 anos, é responsável pela sua organização, sugeriu a mudança no nome.

Foi em 1960, quando o Eder Jofre ganhou o título mundial lá nos EUA e passou a ser considerado o maior lutador brasileiro de todos os tempos. Eu sugeri porque todos os grandes lutadores começavam no campeonato da Gazeta Esportiva. Era justo que tivesse um título mais pomposo. Campeonato Popular de Boxe Amador da Gazeta Esportiva era um título comum. Então, porque todos [os campeões] nasceram lá, eu inventei Forja de Campeões."

Por conta da pandemia de covid-19, o torneio não foi realizado em 2021 pela primeira vez na história.

A Forja fazia jus ao nome. Em um período da história do boxe brasileiro, era São Paulo que falava mais alto, que tinha o maior número de campeões. Os paulistas dominavam e quem conseguisse ganhar de um paulista estava fazendo uma grande coisa."

Francisco Almeida, Chico Mata Cobra, ex-pugilista, que participou da Forja em 1978

A Forja dos Campeões é um torneio para iniciante, para caras que estão sendo trabalhados para chegar lá. Fui campeão em 1964, tinha 280 atletas inscritos naquele ano. Era um vestibular, todo mundo tinha que passar pela Forja. É um grande celeiro."

Miguel de Oliveira, campeão mundial de boxe e ex-técnico de Maguila

Fernando Santos/Folhapress Fernando Santos/Folhapress

Vida pós-Forja

Maguila foi campeão brasileiro profissional ao vencer Valdemar Paulino de Oliveira em 1983. Sagrou-se campeão Sul-Americano em 1984, das Américas em 1986 e mundial por uma organização menor (a Federação Mundial de Boxe) em 1995, em uma disputa contra o britânico Johnny Nelson. A mão pesada sempre foi característica forte do campeão, que colecionou um cartel de 85 lutas, com 77 vitórias —61 por nocaute (a foto acima é de um deles, sobre o alemão George Butzbach).

Foi derrotado apenas sete vezes. A primeira, pelo argentino Daniel Falconi em pleno Parque São Jorge, em março de 1985. Poucos meses depois, em novembro, novo revés —dessa vez para o holandês Andre van den Oetelaar. O brasileiro deu o troco nos dois no ano seguinte.

Uma das derrotas mais duras foi contra Evander Holyfield em julho de 1989. Em um embate que ainda está na memória de muitos brasileiros, Maguila ganhou o primeiro round, mas foi nocateado no segundo. Um ano depois, Maguila voltou a "beijar a lona", dessa vez pelas mãos de George Foreman.

Forjado para ser campeão, Maguila se aposentou em 2000. Há anos travou a mais dura batalha da vida: contra a encefalopatia traumática crônica, uma doença neurológica sem cura que afeta a memória, a cognição e altera o comportamento. Nesta sexta-feira, morreu aos 66 anos.

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