O homem que parou Pelé

Nildon adiou o milésimo gol do Rei do Futebol na Fonte Nova e teve de lutar contra a falsa fama de vilão

Diego Salgado Do UOL, em São Paulo

A jogada toda teve assinatura do Rei. Visão de jogo, posicionamento, arranque, drible e conclusão. Conjunto perfeito para aquele que seria um dos gols mais importantes do futebol brasileiro, o milésimo de seu maior jogador. O goleiro já tinha ficado para trás há alguns passos, Pelé estava cara a cara com o gol. O lance, porém, teve um desfecho improvável.

Com a mesma rapidez de Pelé, moldada sobretudo pela raça, o zagueiro Nildon adiou a festa do milésimo. Com o pé esquerdo, desviou a bola em cima da linha e, por segundos, fez o camisa 10 santista flertar com o desespero.

O Brasil não precisou esperar tanto para ver Pelé ir às redes pela milésima vez. Dali a apenas três dias, no Maracanã, ele converteu um pênalti na vitória por 2 a 1 sobre o Vasco. A festa interrompida na Fonte Nova, então, deslocou-se para o Rio de Janeiro. O roteiro de heróis e vilões tinha chegado, enfim, a um ponto final.

Até fazer a merecida festa no Maracanã, Pelé teve de encarar adversários que não quiseram entrar para a história pelas portas dos fundos. Um deles era Nildon, conhecido na Bahia como o "zagueiro mais ético" que passou pelo clube, justamente por ter feito seu ofício de forma exemplar. O lance fez o defensor lutar contra a injusta fama de vilão.

O UOL Esporte mergulha na história e reconta passo a passo como o jogador chamado de Birro-Doido parou o Rei do Futebol numa tarde quente de domingo, repleta de expectativa, sonhos e reviravoltas. Pelé morreu aos 82 anos, em 29 de dezembro de 2022, depois de marcar 1283 gols na carreira.

Reprodução

Da Paraíba ao Rio

Até subir ao gramado do Maracanã, Pelé teve de conviver com uma ansiedade incomum na sua trajetória como atleta. Minutos antes da partida contra o Vasco, por exemplo, o craque disse que aceitava até mesmo um gol de mão para acabar com toda a expectativa criada em relação ao gol histórico.

O milésimo começou a tomar forma uma semana antes do duelo no Maracanã. Além do estádio mais famoso do mundo, outros dois conviveram com a esperança de assistir ao gol: o Almeidão, em João Pessoa, e a Fonte Nova, em Salvador.

O Santos viajou ao Nordeste para disputar dois jogos válidos pela Taça Roberto Gomes Pedrosa, além de um amistoso. Pelé somava 996 gols na carreira até então. No dia 12 de novembro, quarta-feira, a equipe santista bateu o Santa Cruz por 4 a 0, com dois gols do camisa 10.

No jogo seguinte, sexta, o Santos mediu forças com o Botafogo-PB, um jogo não-oficial. Pelé fechou o placar do triunfo por 3 a 0, de pênalti, aos 13 minutos do segundo tempo. Com o milésimo iminente, vestiu luvas e passou a atuar no gol nos últimos minutos, diante de uma lesão suspeita do goleiro titular - o arqueiro repentinamente caiu no chão, enquanto o reserva tinha sumido do banco. Nem mesmo Pelé queria o milésimo num amistoso.

A Fonte Nova, assim, apresentou-se. O estádio baiano receberia o jogo Bahia x Santos num domingo ensolarado. E Pelé jogaria para valer. O gol histórico parecia questão de tempo.

A festa estava pronta

Osório Villas-Boas, presidente do Bahia, já tinha proibido o goleiro Jurandir de dar entrevistas antes mesmo de o Santos desembarcar em Salvador. Não era segredo para ninguém o desejo do cartola: vitória do time baiano, com gol de Pelé. O cenário parecia ideal. E, assim, a festa começou a ser montada.

Árbitro do jogo, Arnaldo Cezar Coelho recebeu instruções diferentes do habitual. Ele teria de chegar a Salvador na manhã do sábado, porque à tarde haveria o ensaio da festa do milésimo. "Fui escalado na quinta-feira e tive de chegar antes. Cheguei, almocei e corri para a Fonte Nova", relembra.

No gramado, havia crianças com balões. No Dique do Tororó, manancial no entorno da arena, era preparado um trio elétrico com a presença de Wilson Simonal. Se marcasse o milésimo, Pelé até subiria no caminhão, que daria uma volta olímpica.

Arnaldo observou a movimentação e só abriu a boca para vetar uma ideia da organização. "Eles queriam parar o jogo por uma hora. Eu falei '30 minutos' e pensei: 'esse gol tem que sair aqui'", contou.

Conhecido por entrevistas polêmicas, Osório acreditava que o milésimo gol na Fonte Nova ajudaria o Bahia e o próprio futebol baiano, pois a repercussão seria mundial. O presidente da Federação Baiana de Futebol pensava da mesma forma e até mandou fazer uma placa de ouro parabenizando Pelé pelo gol.

Havia até um pouco de mística. O dirigente lembrava que o primeiro gol de Pelé fora marcado em cima do goleiro Zaluar, que defendia o Corinthians de Santo André, mas defendera o Bahia antes de jogar no futebol paulista.

"Ele era muito midiático, falava que gostaria de ganhar o jogo, mas que seria bom se Pelé marcasse para o Bahia aparecer. Ele dizia que o Bahia ficaria na história", disse o jornalista Antônio Matos, que trabalhava na Tribuna da Bahia à época e assistiu ao jogo do campo.

Aqui não, meu Rei

Se o oba-oba tomava conta da organização do jogo e até dos dirigentes, a ordem no elenco do Bahia era simples. O time do técnico paraguaio Freitas Solich entraria em campo para ganhar e evitar o milésimo. O goleiro Jurandir e o zagueiro Nildon seguiram à risca a determinação. Eles fariam de tudo para parar o Rei.

Jurandir foi um dos destaques do jogo, ao ponto de as manchetes cravarem no dia seguinte: "O goleiro que não quis entrar para a história". Antes mesmo do jogo, ele dissera que era "pago para defender o gol do Bahia". Nildon também. Em campo, fez tudo pelo time, que o tinha acolhido dois anos antes.

Versátil, Nildon atuava nas quatro posições da defesa e, embora não fosse um primor técnico, era querido pela torcida por causa da entrega em campo. Ele caiu nas graças dos torcedores após uma atuação histórica.

"Na final do Estadual de 1967, contra o Galícia, ele jogaria como lateral-direito. No vestiário, o treinador barrou o lateral-esquerdo e o escalou na posição. Ele anulou o principal jogador do Galícia, e o Bahia foi campeão", frisou Nivaldo Carvalho, torcedor que estava na Fonte Nova em 16 de novembro de 1969.

A jogada

A importância do jogo fez o torcedor chegar cedo à Fonte Nova. Os portões foram abertos às 10h e, em pouco tempo, mais de 37 mil pessoas lotaram as arquibancadas. Sob um sol escaldante, os espectadores foram brindados com jatos de água para refrescar.

"A cidade amanheceu diferente. Havia jornalistas, repórteres e fotógrafos de todo o Brasil e do mundo. Tinha muita gente aqui", relembra Nivaldo Carvalho. Ele se recorda ainda de uma atitude do árbitro Arnaldo Cezar Coelho.

Segundo o torcedor, ele autorizou a permanência de pessoas ao redor do campo. Eram torcedores misturados a profissionais de mídia e até Carlos Alberto Torres, suspenso da partida.

Nem foi preciso esperar tanto. Aos 17 minutos, Pelé recebeu de Coutinho na intermediária e devolveu ao companheiro em um toque em profundidade. O camisa 9 do Santos quase deixou a bola escapar, mas serviu Pelé na marca do pênalti. A bola, espirrada, chegou a tocar no braço do volante do Bahia - um pênalti poderia significar o fim da espera pelo gol.

Depois de a bola sobrar na área, o Rei driblou Eliseu com o corpo, passou por Jurandir após um toque de bico na bola e, com o gol escancarado, tocou para fazer o milésimo gol da carreira. O craque só não contava com a leitura irrepreensível de Nildon no lance. O zagueiro foi lépido, e correu paralelo a Pelé, em direção ao gol. Quando o 10 finalizou, Nildon já estava no lugar e na hora certa para salvar o Bahia.

Em tempos pré-VAR, Arnaldo deixou o jogo seguir.

Foi pênalti, Arnaldo?

Vaias e fake news

A Fonte Nova, atônita, reagiu ao lance. Os torcedores do Bahia, maioria no estádio, aplaudiram Nildon. Outros espectadores, que aguardavam o milésimo gol, vaiaram o zagueiro. A reprovação, de acordo com pessoas ouvidas pelo UOL Esporte, foi completamente abafada.

A narrativa com as vaias ganhou força a partir de 2004, com o lançamento do filme "Pelé Eterno". Nele, um áudio é criado no momento em que Nildon salva o gol. Os gritos de torcedores, incluindo palavrões, foram incorporados à cena.

"Eles fizeram uma mixagem vagabunda, criaram um coro que não existiu. Já foi desmentido por jogadores e por todos os todos os torcedores", ressaltou Álvaro Brandão, torcedor que também estava na Fonte Nova.

"A vibração foi grande, foi muita palma mesmo, apesar de todos acharem que o Pelé fosse fazer o milésimo. O Bahia era mais importante. A vaia é lenda urbana. Nós ficamos felizes. Foi alguma coisa que alguém criou e foi propagando. Repetiu e virou verdade", disse Nivaldo.

O jornalista Antonio Matos, que trabalhava na partida naquela tarde, tem a mesma percepção: "Não aconteceu isso, não. Eu assisti ao jogo do campo."

No filme, o próprio Pelé aparece para contar a história do gol perdido. O Rei frisa que as vaias aconteceram. Mas, em entrevista concedida logo após a partida, ainda no vestiário da Fonte Nova, o craque santista não menciona o ocorrido.

"Você acha que o jornalista ia entrevistar o Pelé e não perguntar nada sobre vaias? Ele perguntou sobre várias coisas, sobre estrelas na camisa, bola na trave, mas nada sobre vaia", disse Álvaro.

Havia torcedores de outros times. Teve vaia, mas era de outros times. Quem era Bahia de coração não vaiou. Meu pai era zagueiro e não podia deixar a bola entrar

Alberto Velloso, filho de Nildon

Era um clima de Copa de 1950. Nildon viu a festa sendo preparada e frustou tudo isso. Tentaram recriar um Barbosa. Nildon foi o zagueiro mais ético do Bahia

Zezão Castro, repórter que fez a última entrevista com Nildon

O resignado

Nildon morreu em outubro de 2008, aos 65 anos, depois de sofrer uma parada cardíaca na Ilha de Itaparica, onde vivia ao lado de um dos filhos. Depois de se aposentar, ainda cedo, aos 29 anos, ele virou corretor de imóveis em Salvador e gerente de um supermercado.

Separado da esposa, foi morar na ilha, onde trabalhou numa fábrica de água mineral. Durante esse tempo, Nildon colheu os frutos da atitude tomada no lance contra Pelé. O reconhecimento fez o ex-zagueiro sempre se recordar do lance.

Alberto Velloso, filho de Nildon, conta que, após 2004, ele chegou a admitir que estragou a festa preparada para Pelé, mas que teria a mesma atitude. "Meu filho, o esporte não pode abrir exceção, eu tive de fazer minha parte", disse.

Zezão Castro, repórter responsável pela última entrevista de Nildon, conta que o ex-zagueiro não se mostrava amargurado com a situação, tampouco ressentimento. Se voltasse à Fonte Nova para enfrentar Pelé, faria a mesma coisa.

Depois do lançamento do filme, Alberto, que é diretor teatral, cogitou processar os produtores do filme de Pelé. Nildon, porém, interveio e pediu que o caso fosse esquecido para não ser um "oportunista". Ele recebeu um cachê pelo uso da imagem, mas não sabia que o áudio do xingamento seria incluído no roteiro.

"Nildon não se aborrecia com isso, ele era tranquilo. Ele era bem-humorado, não ficava deprimido. Mas foi uma mentira forjada, e a torcida do Bahia jamais faria isso. É apostar muito no cinema", disse o jornalista Paulo Leandro, que assistiu ao jogo no estádio.

Bola na trave e homenagem

O jogo Bahia x Santos terminou empatado por 1 a 1, com gols marcados nos minutos finais do segundo tempo. Pelé, porém, ajudou a criar o tento santista na Fonte Nova, o do empate.

O Rei acertou o travessão no lance, e Jair empurrou para as redes em seguida. A participação de Pelé chegou a criar uma confusão: uma agência de notícias informou que o camisa 10 tinha marcado o gol e alcançado o milésimo.

A jogada ainda serviu para Pelé desmentir a falta de vontade de marcar o gol histórico na Bahia. Em entrevista concedida antes do jogo contra o Vasco, o craque disse que gostaria de ter encerrado a história do milésimo na Fonte Nova. "Eu não fiz na Bahia porque não deixaram, os baianos jogaram muito bem. Inclusive o gol do Santos saiu depois de uma bola chutada por mim na trave. É difícil a gente calcular e chutar na trave", disse.

Sem o gol histórico em Salvador, Pelé ao menos recebeu uma homenagem. O autor do gol do Bahia, Baiaco, que abriu o placar na Fonte Nova, dedicou o lance ao craque santista.

"O gol que o Pelé não fez, quem fez fui eu. Eu fiz um gol de cabeça, fiz uma homenagem para ele", disse o ex-atacante, que também refuta a história das vaias: "Pelé estava doido para fazer o gol. O Nildon salvou. Eu não ouvi vaia, não. Ele estava fazendo o trabalho dele."

Reprodução

O milésimo, enfim

Mítico, o Maracanã "herdou" o milésimo gol depois da atitude de Nildon. A festa interrompida em Salvador, assim, aconteceu no gramado do estádio mais famoso do mundo.

E por pouco a espera não se estendeu. Pelé só marcou o milésimo depois de 78 minutos, já na reta final do segundo tempo, quando o placar apontava 1 a 1.

O lance ainda foi polêmico. Pelé recebeu um lançamento em profundidade de Clodoaldo, escapou do zagueiro Renê e acabou tocado por Fernando, outro defensor vascaíno. Sem hesitar, o árbitro Manoel Amaro de Lima.

Assim como Bahia, o Vasco não queria entrar para a história pelas portas dos fundos. O goleiro argentino Andrada jogou a bola no chão, enquanto Fidélis bradou, e Fernando reclamou.

Depois de muita reclamação, Pelé partiu para a cobrança. Frio, enfim, marcou o milésimo. Andrada, desolado, socou o chão várias vezes. O jogo parou, e o Rei do Futebol fez a festa no Maracanã.

+ Especiais

UOL

Pelé morreu: 'Pelé é (imortal) mesmo. Mas o Edson vai morrer qualquer dia'

Ler mais
Divulgação/Santos FC

As histórias da infância de Pelé, que quase se afogou por não saber nadar

Ler mais
UOL

Quando entrevistei Pelé: sorrisos, palavrões e um mito de 'carne e osso'

Ler mais
Topo