"Sou só mais uma"

A história de Nicole Rose, a primeira mulher trans a jogar futebol profissional no Brasil

Amara Moira e Roberto Oliveira Colaboração para o UOL, em São Paulo e Aracaju Arquivo pessoal

No dia 23 de outubro, Nicole Rose estreou no Campeonato Mineiro Feminino marcando dois gols pelo Nacional de Visconde do Rio Branco. Foi um marco: com 38 anos, Nicole se tornou a primeira mulher trans no futebol profissional brasileiro.

Pessoalmente, foi a retomada de um sonho abandonado há quase duas décadas: jogar futebol. Quando era adolescente, ainda antes da transição de gênero, Nicole até atuou no Campeonato Mineiro A2 pelo União Luziense, mas abandonou os gramados.

"Eu estava correndo atrás do sonho da minha vida, mas ele ia custar muito caro pra minha saúde mental, pro meu corpo, não sei se aguentaria uma carreira de futebol assim. Consegui ter consciência que o melhor a fazer era eu me assumir, mesmo que custasse o meu sonho de jogar futebol. E obviamente custou muito mais do que isso."

Com 17 anos, eu já sabia quem eu era, só que meu sonho era jogar profissionalmente. Eu sabia que era um ou outro."

Ao UOL, Nicole contou suas dores e vitórias para voltar ao esporte.

Arquivo pessoal

"Moramos juntas no alojamento e o convívio é excelente. Sou só mais uma. Não sou especial, não sou melhor, não sou pior, não sou diferente. Isso para mim foi muito importante -- ser só mais uma."

Nicole Rose

"Parece óbvio, né? Todo mundo anda na rua e é só mais um. Mas quando a gente anda na rua, não é assim. Então, aqui eu sou só mais uma e isso para mim é muito legal. São 19 atletas. Tem a Nicole, assim como tem a Yohanna e a Juassara."

Nicole Rose

"Precisava me assumir mulher"

Por volta dos 21 anos, quando Nicole se assumiu uma mulher trans, sua vida virou do avesso. Ela viu as portas do futebol se fecharem e precisou sair da casa dos pais — realidade de grande parte das jovens trans do Brasil.

"Quando resolvi me assumir, convoquei uma reunião com meu pai e minha mãe e fui explicar pra eles quem eu era. Eles não entenderam, acharam que eu era um homem gay", conta.

Seus pais colocaram uma condição para ela ficar em casa: não fazer a transição de gênero. Questionaram como seria sofrido e doloroso, se preocupavam até mesmo com sua integridade física, mas Nicole não podia se negar.

"Se eu fosse um homem gay, talvez eu conseguisse levar mais um tempo até me assumir de fato, mas eu precisava me assumir como uma mulher e aí tive que sair. Era uma escolha, mas não era, né?"

Dois meses depois, os pais de Nicole a procuraram para voltar para casa. Sua decisão estava tomada. "Daí eu que não quis voltar, porque queria viver minha vida. Mas a minha relação com meus pais, hoje, é muito melhor do que antes de eu me assumir. Antes de eles nem saberem quem eu era", diz ela.

"Fiquei 11 ou 12 anos sem nem chutar uma bola"

O conflito no cadastro na CBF

Após sair de casa, Nicole perambulou por muitos trabalhos, passou a se sustentar dando aulas de tênis e chegou a ter mais de 140 alunos num clube. Ela se sentia acolhida no novo esporte, mas o sonho de criança continuava vivo. E, após 17 anos longe dos gramados, Nicole decidiu arriscar.

Em janeiro, tentou voltar a jogar pelo Transformação, time de Belo Horizonte. Embora amador, o campeonato estava ligado à Federação Mineira e precisava de registro junto à entidade.

"Meu time tentou me registrar e deu um conflito. Na hora que eles bateram meu CPF, apareceu meu cadastro profissional de 17 anos atrás", explica.

A Federação Mineira orientou Nicole a procurar a CBF e se dispôs a intermediar a situação. A atacante contratou uma advogada, juntou exames hormonais desde 2019 condizentes com os critérios do Comitê Olímpico Internacional (COI) e enviou a documentação à entidade, que ainda não regulamentou a prática esportiva de atletas trans.

No processo, a atacante contou com ajuda da ONG Canarinhos, que atua contra o racismo e a homofobia no futebol. Em maio, Nicole conseguiu atualizar seu cadastro na CBF, com nome retificado e publicado no Boletim Informativo Diário (BID) da entidade.

"A Canarinhos me abraçou nesse momento, formulou outro documento e enviou direto pro presidente do setor jurídico da CBF. Eles conseguiram esse canal direto. Demorou cerca de um mês, mas a CBF respondeu. A ajuda de todo mundo fez com que a CBF alterasse o meu cadastro antigo, com nome retificado e tudo. Atualizou meus documentos e mandou uma nota para a Federação Mineira falando que eu estava liberada para jogar. Eu só precisava arrumar um clube."

Nicole Rose

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

O acolhimento no Nacional

Nicole ganhou a primeira batalha, mas precisava encontrar um clube profissional que comprasse a briga. Com ajuda dos contatos no mundo da bola, ela chegou ao Nacional.

"Antes de vir, deixei claro pra eles: 'Dentro de campo, vou dar meu sangue pro time conseguir tudo o que ele quer, mas fora de campo eu preciso que vocês me ajudem, porque sozinha vai ser complicado pra mim'."

Em Visconde do Rio Branco, município de pouco mais de 43 mil habitantes do interior de Minas, Nicole encontrou um novo lar. Foi acolhida pelas colegas de vestiário e pela direção do Nacional — clube tradicional que se profissionalizou recentemente para disputar competições no futebol feminino.

Ela temia a reação dos times adversários e da parcela conservadora da sociedade, ao ver uma mulher trans disputando o Campeonato Mineiro.

"A gente teve uma reunião com o presidente e a diretoria. Nessa reunião, um dos diretores pediu pra eu levantar, me chamou perto dele e me deu um abraço, falando que esse abraço representava toda diretoria. Pra mostrar até pro grupo, que já me apoia muito, mas pra mostrar pro grupo que a diretoria está com a gente, está comigo e não larga."

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"Sinto muitas dores"

Já sonhando com a volta aos gramados, Nicole voltou a tomar medicamentos para bloqueio da testosterona em 2019. Quatro anos antes, o COI estabelecera um limite hormonal dentro do qual atletas transgênero deveriam permanecer para disputar competições.

Em 2021, porém, o Comitê liberou as federações esportivas para estipularem seus próprios critérios — sob a orientação de que nenhum desportista deve ser excluído de competições por suposta vantagem de gênero.

Nicole conta que o bloqueio de testosterona afeta seu corpo. Além da perda de capacidade muscular, a atacante relatou fortes dores nas articulações.

"Faz muita diferença, eu canso muito mais rápido do que antes, dá 25 minutos e já estou morrendo. E não consigo correr tão rápido quanto antes, cheguei a correr 100m em 12 segundos, para quem joga futebol é muito rápido. Hoje, dá uns 15 segundos, é muita diferença", conta ela.

"Uma das piores coisas é a dor nas articulações. Conversei com a Tiffany outro dia e ela me disse que não sabe como está jogando até hoje, de tanta dor. A gente perde massa muscular e isso deve conflitar com as articulações, porque realmente dói tudo, dói demais, a dor é tanta que você fica pensando: 'Como vou jogar amanhã'?. Você vai, aquece, joga; quando acaba, vira aquele bagaço. As outras meninas também sentem dor, mas é nítido que é diferente. Além da explosão, da velocidade, da baixa no cardio, sinto muitas dores no corpo."

Nicole Rose

Divulgação

A amizade com Tifanny

Em seu reencontro com o futebol, Nicole se aproximou de Tifanny, primeira mulher trans no vôlei feminino profissional brasileiro.

A atacante ficou amiga da ponteira do Osasco, conversa regularmente com ela e usa a história de Tifanny como argumento para desmistificar preconceitos.

"A Tifanny deve estar jogando há uns cinco anos. Falaram que ela ia acabar com as meninas, que ia quebrar todos os recordes, mas ela nunca foi a melhor jogadora, nunca foi campeã, não é recordista de praticamente nada, ela é só mais uma. Ela é muito boa, claro que ela é muito boa, mas ela é mais uma das boas jogadoras, ela não é a destruidora de tudo porque ela é trans. Vão falar o que agora?", provoca Nicole.

"Ela está jogando e vai continuar do jeito dela, é um ótimo exemplo. Agora comigo vai aparecer um monte de especialista, mas a gente tem o exemplo da Tifanny, que é uma ótima jogadora, mas não é a mais alta, não é a que bate mais forte. Ela é muito boa, mas é um esporte coletivo também."

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O reencontro com o futebol

Nicole não se afastou apenas da carreira quando se assumiu uma mulher trans, também deixou as arquibancadas. Ela sentia medo.

"Desde que me assumi e saí de casa, nunca mais voltei para um estádio para torcer. É um ambiente que frequentei muito na adolescência, com meu irmão, meu pai, mas senti que eu não podia mais frequentar quando eu me assumi. Não tenho espaço; se eu for lá, vou ser linchada. Então, nunca mais fui assistir a um jogo de futebol. Só agora voltei para o estádio, pra jogar."

Foi jogando no comando de ataque que Nicole fez 6 gols e deu 4 assistências nas cinco partidas do Nacional na primeira fase. Pela primeira vez em sua história, o time de Visconde do Rio Branco avançou à semifinal, se classificando em quarto lugar atrás de Cruzeiro, América-MG e Atlético-MG.

Ao brilhar com 38 anos no Campeonato Mineiro Feminino, a atacante que treinava chutes na parede de casa na infância enfim se reconciliou com seu sonho de criança. Sendo só mais uma jogadora de futebol, Nicole Rose está onde sempre desejou.

"A gente perde muito espaço quando se assume, eu tive esse sentimento de perda. Nunca mais fui numa arquibancada, mas agora assisto de dentro."

Assista à íntegra da entrevista de Nicole

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