O beque que não devia morrer

A história de como o zagueiro Vágner Bacharel morreu em 1990 após uma cabeçada e série de erros médicos

Bruno Doro e Vanderlei Lima Do UOL, em São Paulo Arquivo/Gazeta do Povo

No dia 14 de abril de 1990, na Vila Capanema, em Curitiba, o Paraná Clube enfrentava o Campo Mourão pelo Campeonato Paranaense. Era um jogo de meio de calendário, ainda de primeira fase. Vitória ou derrota não faria muita diferença. Pois foi nessa partida de pouca importância que o zagueiro Vágner Bacharel começou a morrer.

O lance em questão, no início do segundo tempo, era trivial. Falta na direita a favor do Paraná Clube, Charuto lateral direito do Campo Mourão estava na marcação, a bola foi alçada na área para o cabeceio do capitão Vágner Bacharel, um dos mais experientes do time, Charuto se antecipou e de cabeça cortou o cruzamento, foi quando aconteceu o choque cabeça com cabeça. O choque foi muito forte.

Bacharel caiu e reclamou de dores. Charuto também. Em um tempo em que os médicos não tinham muito a dizer sobre manter ou não um jogador em campo, Charuto lembra de ter insistido para voltar a jogar, apesar de um galo imenso na testa e a visão embaçada no olho esquerdo.

Bacharel caiu no lance, aparentemente desmaiado. Acordou rapidamente, reclamando de dores na coluna. Saiu de colar cervical diretamente para o hospital. A dor que ele estava sentindo, porém, não era no pescoço. Mas demoraram muito a perceber isso.

Arquivo/Gazeta do Povo

A pancada foi bem forte. Lembro que levantou um caroço, um galo grande na minha testa. Fiquei com o olho esquerdo embaçado sem enxergar durante uns 20 minutos e depois voltou ao normal. Mas não saí da partida. Naquele tempo, eram só duas substituições e nosso time já tinha feito as duas

Charuto, lateral do Campo Mourão, que cabeceou Bacharel e, ainda assim, seguiu em campo. O Paraná venceu por 2 a 0

Na hora do lance, a gente se assustou. Ele cabeceou a cabeça do Charuto e deu aquele chicote com o pescoço. Quando caiu, bateu a cabeça no gramado. Ele perdeu a consciência e saiu mole, caiu solto. Mas como ele acordou e estava falando, ninguém acreditou que o negócio fosse sério

Marco Antônio Assef, repórter da Rádio Cidade AM de Curitiba, que trabalhava em campo naquela partida e viu o lance

Trataram lesão na coluna. Era traumatismo craniano

Quando Vágner Bacharel entrou na emergência do hospital Evangélico, em Curitiba, fez radiografias na região da coluna e do pescoço. Os resultados não mostraram fratura.

Naquele momento, Bacharel era atendido por dois médicos. Um deles fez o primeiro socorro em campo e acompanhou o diagnóstico no hospital. O outro era um dos especialistas em ortopedia do hospital Evangélico.

Nenhum deles cogitou que o problema fosse traumatismo craniano. "Eu lembro perfeitamente: pegaram essa radiografia e colocaram contra a luz. 'Ó, não tem nada'. Com a presença dos médicos todos", lembra Aramís Tissot, presidente do Paraná Clube na época. Ele era um dos que acompanhou Bacharel desde o estádio.

O jogador, então, foi para um quarto e ficou em observação. Mesmo reclamando de dores de cabeça, dois dias depois de dar entrada no hospital, Bacharel teve alta. Novamente, em nenhum momento a possibilidade de traumatismo craniano foi avaliada pelos médicos responsáveis.

A verdade? No lance de jogo, Bacharel sofreu uma fratura de 180 milímetros no osso parieto-occipital esquerdo do crânio (localizado na parte posterior da cabeça), que só foi descoberta dias depois.

O lance: Bacharel e Charuto se chocam no ar

Reprodução Reprodução
Arquivo/Gazeta do Povo

As convulsões

O rumo do diagnóstico de Vágner Bacharel começou a mudar já no domingo à noite. "Ele já não passou muito bem. Sentia umas dores de cabeça fortes. Aí me deram um balde com gelo pra que eu colocasse na cabeça, pra passar a dor. Eles fizeram a radiografia da coluna, não deu nada. Ele estava com dor de cabeça, mas também com a ansiedade enorme de sair. Ele tinha aquele desespero de jogar", conta Renata Antunes, a mulher do jogador.

Após a alta, Bacharel foi para casa. Era segunda-feira e Renata não tomava banho desde sábado. Quando entrou embaixo do chuveiro, porém, o marido teve uma convulsão. Ela chamou os médicos do clube, mas como Bacharel cantava, suas preocupações foram ignoradas. Só aceitaram que a situação era grave quando Pedrinho Maradona, um dos melhores amigos de Bacharel no Paraná Clube e vizinho do zagueiro, presenciou uma nova convulsão.

"A Renata já tinha chamado o médico por causa da primeira convulsão, mas ele estava bem. A gente estava conversando. Quando o médico foi sair do apartamento, deu uma convulsão de novo. Foi aí que chamaram a ambulância e o Vágner voltou para o hospital. Depois desse dia, não voltou mais pra casa", lembra o ex-jogador.

Nesta segunda internação, a hipótese de traumatismo craniano já existia, mas o diagnóstico definitivo ainda demorou. Bacharel foi submetido a uma série de novos exames, chegou a ser transferido para outro hospital e a fratura foi confirmada. Nesse momento, porém, já era tarde.

Depois daquele jogo, eu viria para São Paulo. Antes, eu passei no hospital e ele estava bem. Só o que me deixou surpreso foi que ele falou assim: "Mas você está de bigode agora?" Eu não tinha bigode. Eu não sei o que ele viu. Quando foi sexta-feira e eu estava voltando de São Paulo, recebi a notícia

Rubens Minelli, técnico do Paraná Clube em 1990, que tinha indicado Bacharel ao clube

Nossas famílias estavam sempre juntas. Então, depois do acidente, acompanhei tudo. No sábado (dia do jogo contra o Campo Mourão) mesmo, fui para o hospital. No domingo também. Inclusive, as crianças dele, a Tayane e o Júnior, ficaram na minha casa no período em que ele estava no hospital

Pedrinho Maradona, atacante do Paraná Clube e vizinho de Bacharel em Curitiba

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

A morte

Vágner Bacharel morreu no hospital Evangélico de Curitiba por volta de 6h30 de 20 de abril de 1990, seis dias depois do choque de cabeça com o lateral Charuto. Nos documentos a que o UOL Esporte teve acesso, o óbito foi causado por edema cerebral, resultante da fratura.

O jogador teve alta na segunda-feira pela manhã e voltou no mesmo dia, à noite. Segundo sua mulher, nesse momento os médicos já tinham certeza da gravidade. Ela lembra de conversas entre alguns dos médicos envolvidos comparando a gravidade do caso, e os problemas do diagnóstico inicial, à morte do ex-presidente Tancredo Neves.

Enquanto o quadro de Bacharel piorava, sua visão ficava comprometida e ele era internado na UTI, Renata buscava respostas. Deu entrevistas a rádios e acionou até mesmo Zico, na época secretário nacional de Esportes, para ajudar a encontrar novos exames para descobrir qual era o problema do marido.

Nada o salvou. Três dias após a segunda internação, Vágner Bacharel teve a morte cerebral declarada. O coração deixou de bater na manhã seguinte.

Só me chamaram na sala para assinar o oficio que iriam divulgar à imprensa. Era uma mesa de uns 20 médicos e eu sentada ali, perdida. Eles só me deram uma caneta. Eu falei: "Não tem chance?" "Não tem chance, morte cerebral. Assina para gente poder..." Assinei. Voltei, me ajoelhei e pedi a Deus que minimizasse a vida dele. Seria um sofrimento ficar muito tempo em aparelho. Na madrugada, ele faleceu

Renata Antunes, mulher de Vágner Bacharel

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"Daqui a pouco ele vai chegar em casa"

Wágner Júnior nunca deixará crescer um bigode. A mãe o proíbe. Mesmo que, hoje, ele tenha 33 anos. "Ele é igualzinho ao pai. Só falta o bigode, essa é a verdade", diz Renata Antunes. Wágner, como você deve imaginar, é o filho de Bacharel — e, sim, o nome é com W, enquanto o do pai é com V. "Os gostos musicais são os mesmos, a risada é a mesma", completa Júnior.

Ele tinha cinco anos quando recebeu a notícia de que não teria mais o pai ao seu lado. "A minha mãe não estava em casa. Nós estávamos [ele e a irmã Tayane] com a Rita, a ex-esposa do Pedrinho Maradona. Quando ela deu a notícia, eu não entendi muito bem, pela idade mesmo. A única coisa que eu falei foi 'deixa, daqui a pouco ele vai estar aqui em casa pra jogar videogame comigo'. Eu lembro exatamente disso: voltei pro quarto e continuei a jogar, esperando".

As lembranças mais claras que tem do futebol e da despedida do pai são os cheiros. "Eu lembro muito do vestiário. É incrível isso, cara. Lembro muito: eu com ele, no vestiário, os demais jogadores. O cheiro do vestiário não sai do meu olfato", conta.

É uma memória parecida com a do velório: "Eu sinto o cheiro do caixão até hoje, da mesma forma. Penso nele ali, deitado, sem o bigode. Acredito que ele tirou por causa da biópsia. Estava com a faixa na cabeça. Essas cenas estão bem vivas na minha cabeça. Depois, a vida mudou completamente".

Júnior até tentou ser jogador de futebol. Não conseguiu. Hoje, é gerente de projetos. "A maior herança que o meu pai deixou foi isso: sou completamente apaixonado pelo Palmeiras. Você não tem ideia. Saio do Rio de Janeiro, faço ponte-aérea para assistir a um jogo".

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Um mês sem chorar

"Era um pai, muito, muito presente, ainda que viajasse muito. No momento em que estava em casa, era atenção 100% para os filhos. Deitava no chão pra brincar de cavalinho, de jogo de botão. A gente cantava muito em casa". A frase é de Tayane Antunes, a outra filha de Bacharel.

Mais velha, ela tinha oito anos quando o pai morreu. E, se o irmão simplesmente voltou a jogar videogame, ela se fechou às emoções. "Quem deu a notícia foi a Rita. Eu lembro exatamente da cena: meu irmão indo jogar no quarto. No momento em que ele saiu, a Rita falou: 'Você precisa ser forte pra ajudar a sua mãe porque agora o seu pai virou uma estrelinha lá no céu'. Aí eu não chorei. Fiquei forte porque achava que precisava ajudar minha mãe e meu irmão".

Tayane passou quase um mês assim. "Um dia, ela fez uma comida em casa e eu lembrei da gente sentado, todo mundo ao redor da mesa para jantar. Era comida mineira, aquela que o meu pai gostava. Naquele momento, eu desabei e chorei tudo o que eu não tinha chorado".

Hoje, Tayane tem 36 anos e é economista. "Ele queria que eu fosse modelo. Eu queria ser dentista. E a gente brincava muito de entrevista. Eu o entrevistava em casa. No fim, não fui nada disso. Eu era boa com números".

Falando em números: a filha de Tayane, Mayara, nasceu no dia 11 de dezembro. Dia do aniversário de Bacharel.

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Cirurgia poderia salvar Bacharel?

Você também está se perguntando onde está o erro do caso Bacharel? Era isso que Renata sentia quando o marido morreu. Ela processou os médicos envolvidos, o hospital e o clube. A reportagem teve acesso a uma decisão do juiz Valter Ressel, datada de 1995, que fala em negligência e imprudência, após mostrar trechos de um laudo pericial dizendo que não havia encontrado razões para que uma intervenção cirúrgica fosse descartada. Lembrando: Bacharel morreu por edema cerebral. Teoricamente, uma operação poderia atenuar o problema.

"Ora, se a cirurgia era solução factível, com chances de sobrevivência, e ela não foi realizada, mormente porque não diagnosticada a lesão cerebral em tempo hábil, por negligência e imprudência dos médicos aqui acusados, é induvidoso que entre essa conduta omissiva e o resultado de morte há uma relação de causalidade, porquanto a causa da morte poderia ser revertida", escreveu o juiz.

É a mesma linha de pensamento que faz Renata, até hoje, ter certeza que a morte poderia ter sido evitada. "O Viola [ex-Corinthians] também teve uma lesão como essa e está vivo até hoje. Por quê? Porque foi feito o atendimento correto. Até li uma entrevista em que se afirmava que lesão foi igual à do Vágner. Só que ele teve o atendimento e está vivo, sem sequelas, sem nada", lembra.

Nota da redação: a lesão de Viola aconteceu em um jogo entre Corinthians e Juventus em 1995, após um choque do ombro do volante Luizão com o atacante corintiano. Viola foi atendido no local e tratado imediatamente por suspeita de lesão craniana. Ficou um mês sem jogar, mas a carreira não foi afetada.

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Empresário pagou a indenização

A família de Vágner Bacharel ganhou o processo que moveu contra médicos, hospital e clube. O juiz determinou o pagamento de 500 salários mínimos (R$ 50 mil em valores da época, R$ 272 mil atualizados pelo IGP-M) por danos morais e 10 salários mínimos mensais até a data em que o jogador completaria 65 anos. Os responsáveis pelo pagamento eram o Paraná Clube e o Hospital Evangélico.

"O hospital pagou muito pouco. O Paraná Clube que foi o responsável por cerca de 90% dos pagamentos. Quando atrasava, eu entrava com penhora e eles regularizavam", conta o advogado da família, Mafuz Antônio Abrão. O hospital, inclusive, faliu no meio do caminho, deixando o clube sozinho na indenização.

Os pagamentos iriam até 2019, mas a dívida foi saldada em 2013, quando os atrasos chegaram ao máximo. A solução encontrada foi a mais improvável:

"Na época, a dívida estava em quase 600 mil reais. Alguns imóveis do clube foram a leilão aqui em Curitiba e a quantia total seria da família. Mas o clube estava com dificuldade para pagar o 13º salário dos funcionários e a família concordou em receber 50% do valor e parcelar o pagamento dos outros 50%", explica Mafuz.

Só que o clube continuou atrasando os pagamentos. "Foi um torcedor do Paraná chamado Carlos Alberto Werner que me chamou. Ele disse assim: 'isso é um absurdo, é contra a memória das pessoas e contra a família. Eu vou pagar isso aí. Vê o cálculo'. E ele pagou cerca de R$ 550 mil reais. Se esse torcedor não pagasse, acho que nunca teria recebido".

A reportagem entrou em contato com Werner para falar sobre o caso, mas ele não quis comentar. Werner faz parte da vida política do clube.

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O que aconteceu com a família depois de 1990

Após a morte do marido, Renata levou a família para o Rio de Janeiro, onde ela e Bacharel nasceram. Um dos frutos do trauma foi a insônia, que a acompanha até hoje. Sem os rendimentos do futebol, voltou a trabalhar. Primeiro, em uma agência de turismo, depois em hotéis.

O filho Júnior tentou ser jogador de futebol: "Fui até o juvenil do Madureira, que foi onde o meu pai começou, mas faltou também um pouquinho de vontade. Eu percebia que a minha mãe não ficava à vontade. Ela nunca foi assistir, ficava incomodada de alguma forma. Ela trabalhava muito, de segunda a sábado, não tinha muito tempo, mas acho que também esperava mais vontade da minha parte, entendeu?"

A filha Tayane conta que até hoje tem dificuldades com o assunto. "A ausência da figura paterna modificou a minha vida em tudo. Eu via a minha mãe trabalhando, cuidando de tudo. E eu meio que me tornei uma mulher muito precoce. Amadureci muito rápido. Até mesmo depois de casada eu não esperava o meu marido pra tomar certas decisões. Sempre fui muito imediatista porque não tinha a figura paterna".

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Quem era Bacharel?

Vágner Bacharel começou a carreira no Madureira, passou por Joinville e Internacional antes de chegar ao Palmeiras. No Palestra Itália, fez sucesso ao lado do ídolo Luiz Pereira e chegou a ser capitão da equipe. Depois, virou andarilho. Passou por Botafogo, jogou no Guarani e terminou no Paraná Clube.

Nunca foi considerado craque, mas todos que jogaram com ele eram unânimes ao falar de suas qualidades: era técnico e clássico, mas conseguia unir isso a uma raça em campo que poucos têm. Fora do campo, sua personalidade alegre e expansiva também era elogiada.

O nosso primeiro técnico foi o Rubens Minelli, que levou o Valdir Joaquim de Moraes como treinador de goleiros e o Carlinhos Neves como preparador físico. Era uma comissão de alto gabarito. E o Bacharel foi indicado pelo Minelli

Aramís Tissot, presidente do Paraná Clube na época

O Vágner tinha jogado comigo numa seleção do interior e eu via muita qualidade. Então, na hora em que vi que faltava um zagueiro no elenco do Paraná, eu sugeri que o Vágner Bacharel fosse contratado. E ele foi muito bem

Rubens Minelli, técnico do Paraná em 1990

O Vágner era meu irmão, pô! No Palmeiras, pegamos uma grande amizade. Minha família ia ao Rio, a dele vinha para São Paulo. Era uma pessoa encantadora. Aonde estava, deixava o ambiente alegre. Era brincalhão e um baita profissional

Luiz Pereira, companheiro de Bacharel no Palmeiras

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