A história de uma camisa

Pirataria custa R$ 2 bi ao futebol; ciclo de exploração atinge imigrantes e moradores da periferia

Beatriz Cesarini e Eder Traskini Do UOL, em São Paulo e Santos Foto: Andre Porto

Essa história é baseada livremente em entrevistas feitas com imigrantes, ambulantes e torcedores nas últimas semanas. Nenhum nome foi usado por opção da reportagem. Nem todos os fatos foram narrados pelos mesmos personagens, mas todo o ciclo é baseado em informações fornecidas por eles.

São quatro horas da manhã e uma costureira boliviana chega à oficina. Fica no porão escuro de uma loja de roupas do Bom Retiro, no centro da cidade de São Paulo. A imigrante partiu para o Brasil ainda jovem, em busca de condições melhores, e acabou engolida pela cadeia produtiva têxtil —na Bolívia, ela nunca tinha usado uma máquina de costura.

No início, essa trabalhadora não via a cor do seu salário. O chefe dizia que ela precisava pagar as despesas da viagem e bancar a alimentação e a acomodação que recebia. Grande parte dos imigrantes bolivianos chega ao Brasil assim. E passa até dois anos nessa situação antes de conseguir algo melhor.

Nessa oficina ilegal, ela e outros imigrantes conterrâneos transformam pedaços de tecido em camisas de futebol. Todas falsificadas. A rotina é intensa e as condições de trabalho são precárias, análogas à escravidão. Nenhuma norma de segurança de trabalho ou ergonomia é cumprida pelos empregadores. Enquanto não atingir a produção de um dia, a costureira não pode arredar o pé de lá.

O criminoso é oportunista: ele se aproveita de uma boa oportunidade de ter um lucro fácil, ilícito, e com isso ele opera. Muitas fábricas clandestinas usam mão de obra informal, subempregados, ou pior, mão de obra escrava. Já vimos operações no Bom Retiro com a loja em cima bonitinha e um porão lotado de bolivianos ilegais, que ficavam ali no chamado regime da tranca: entravam 5h e só podiam sair quando a produção do dia fosse alcançada. E pagando pela alimentação, pela internação no Brasil... Ou seja: pouco recebia, se é que recebia alguma coisa. É um absurdo isso".

Edson Vismona, presidente do Fórum Nacional Contra a Pirataria

Existem donos de oficinas mal-intencionados, que fazem parte desse esquema de tráfico de pessoas e que têm funcionários que trabalham de forma análoga à escravidão. São essas pessoas mal-intencionadas que fazem a pirataria e exploram os costureiros. Os imigrantes relatam que partem com uma expectativa, mas tudo muda quando chegam no Brasil".

Cristina Filizzola, diretora do projeto Tecendo Sonhos, da ONG Aliança Empreendedora

Tem muitos que demoram anos para ver a moeda brasileira. Vira uma dependência financeira e psicológica, porque esses proprietários colocam muito medo e pegam a documentação deles, ameaçam denunciar, falam que eles estão ilegais no país e não é bem assim. Com poucas informações, os imigrantes acabam se sujeitando ao trabalho precário, por medo mesmo".

Cristina Filizzola, diretora do projeto Tecendo Sonhos, da ONG Aliança Empreendedora

Pirataria no Brasil

O problema da pirataria no Brasil não é novidade em nenhum segmento. Quando falamos do mercado de produtos esportivos, sobretudo camisas de futebol, o número é assustador: a cada 10 camisas de time vendidas no país, quatro são piratas — segundo levantamento do Fórum Nacional contra a Pirataria e Ilegalidade (FNCP).

O FNCP estima que a perda para os clubes de futebol passou dos R$ 2 bilhões em 2020. No contexto do mundo atual, a pirataria vai além dos varais nos entornos dos estádios e invadiu o ambiente digital, com vendas em e-commerces de grande porte.

"As camisas de times brasileiros mais vendidas são de Flamengo e Corinthians. As duas juntas somam 3,7 milhões de camisas no mercado mundial. O Bayern (ALE) vende sozinho 3,2 milhões. É evidente que nosso potencial de arrecadação com clubes é muito grande. Estamos falando de uma evasão de 40% a 50% de produtos falsos, que, portanto, que não geram arrecadação para os clubes. Há um potencial enorme de crescimento, de financiamento dos clubes via material esportivo", explica Edson Vismona, presidente do FNCP.

Na hora do almoço, aquela costureira que chegou ainda de madrugada à oficina ilegal deixa os tecidos de lado e se alimenta com a comida fornecida pelo empregador. É a única refeição que a boliviana teve em um dia inteiro de trabalho em que não conseguiu ver a luz do dia.

A noite já se sobrepôs ao dia quando a costureira, enfim, vai para casa. Essa casa é um quarto em um cortiço alugado com o pouco dinheiro que juntou depois de anos morando no próprio porão-oficina. As ruas já estão vazias e as lojas, todas fechadas.

Agora, as camisas já prontas vão para um lado, enquanto os imigrantes vão para outro.

Quando chegou, essa imigrante queria trabalhar para retornar ao país natal assim que juntasse algum dinheiro. O tempo, porém, se encarregou de mudar os planos: como muitas imigrantes que chegam cedo ao país, ela conheceu seu marido — também boliviano — no porão em que trabalhava. Formou uma família no Brasil e, agora, os dois pretendem ter a própria oficina, mesmo pequena, porque acreditam que podem ganhar um pouquinho mais com negócio próprio.

Não são todos os imigrantes que costuram no mesmo regime em que a boliviana desta história. Segundo Cristina Filizzola, diretora do projeto Tecendo Sonhos, da ONG Aliança Empreendedora, que trabalha com esses imigrantes, existem muitas oficinas corretas e que não fazem parte da produção de materiais falsificados. Na medida do possível, esses proprietários tentam legalizar o negócio e melhorar as condições de trabalho dos empregados. O que dificulta é o sistema da cadeia produtiva brasileira, que paga muito pouco para essas fábricas.

Existem mais de 300 oficinas em São Paulo e 400 mil imigrantes trabalhando assim. É muito difícil dar um número certo, é uma estimativa feita pelas organizações que trabalham para regularizar essas oficinas".

Cristina Filizzola, diretora do projeto Tecendo Sonhos, da ONG Aliança Empreendedora

A rota da pirataria

A produção interna de produtos piratas é grande e é daí que saí a maior parte dos produtos que você vê em portas de estádio. O custo explica isso: "Por ser um produto têxtil, é fácil a produção clandestina e os titulares de marca tentam identificar a existência dessas fábricas", explica Vismona, do FNCP.

Para quem compra em outros canais, porém, os produtos ilegais chegam do exterior, por rotas de entrada que mudam sempre. "Em geral, você tem o contrabando de produtos fabricados na China e que entram via Paraguai e Bolívia. Também identificamos uma novidade: rotas vindas da Guiana. Outra possibilidade são os portos, dentro de contêineres", continua Vismona.

Recentemente, surgiu a oferta de "réplicas" em grandes sites de comércio eletrônico brasileiro. Alguns produtos contam com o selo de "réplicas perfeitas" e são, geralmente, produzidos na Tailândia. Vismona alerta que "réplica é apenas um nome bonito para falsa, pirata, ilegal".

"Temos que combater a oferta pela internet, e aí os grandes e-commerces têm responsabilidade. A plataforma precisa ser pró-ativa. No lugar de esperar denúncias para retirar, pode ter seus próprios mecanismos para apurar, antes da oferta, se aquele produto atende ou não à lei, se emite nota fiscal, se é original, se tem autorização do titular de marca. O grande desafio é estimular que os e-commerces atuem próativamente", afirma o presidente do FNCP.

Na data de publicação desta reportagem, o UOL Esporte pesquisou nos principais sites de venda do Brasil e não teve dificuldades em encontrar camisas de futebol abertamente descritas como réplicas.

Se você for para o mercado europeu e norte-americano, há quase uma padronização dos preços. Seja por conta do custo de produção ou acessibilidade do mercado consumidor. Quando a gente vê uma camisa próxima de 300 reais, obviamente se fizer a conversão para dólar ou euro, verá que elas não estão caras comparado ao padrão mundial. Agora, quando a gente começa a entender um pouco sobre a propensão de consumo, poder aquisitivo aqui no Brasil, essas camisas têm valor extremamente elevado".

Pedro Daniel, economista e gerente sênior da Ernst & Young

O consumidor é movido pelo preço. Várias pesquisas perguntam: você compra produto pirata? 66% afirma que sim. E a segunda pergunta é: por quê? Porque é mais barato. E por que é mais barato? Porque não paga imposto. É uma sequência de culpados. O imposto é alto [chega a representar até 40% do custo na cadeia de produção], onera o fabricante, a indústria, e é embutido no preço. Fica caro".

Edson Vismona, presidente do Fórum Nacional Contra a Pirataria

O ilegal não paga nada de imposto, não investe nada em marketing, nada em tecnologia, faz produtos de baixíssima qualidade. Às vezes, nem precisa ter o selo falso, só de pegar o produto você já sabe que é uma falsificação grotesca. Ele só quer ganhar muito dinheiro às custas de quem investe. Ele subtrai do mercado quem está investindo. O consumidor integra essa cadeia ao comprar".

Edson Vismona, presidente do Fórum Nacional Contra a Pirataria

Longe do porão no Bom Retiro, as camisas encontram seu destino na periferia de São Paulo. O fornecedor é conhecido no bairro e repassa o material em consignação para os ambulantes.

Na quarta-feira, pouco depois da hora do almoço, os trabalhos começam. Os ambulantes que trabalharão na partida daquela noite passam no local para retirar o kit: grandes sacos pretos repletos de camisas e bandeiras falsificadas são entregues.

O nosso segundo personagem é um desses vendedores, que pode fazer os três clubes da capital. Se tem Palmeiras, ele está no Allianz Parque, na zona Oeste. Se tem São Paulo, se dirige ao Morumbi, na zona sul. Quando o Corinthians joga, Itaquera é seu destino, na zona leste. E o modo de agir é sempre o mesmo: pega a camisa falsificada a R$ 20 e tenta vender a R$ 70, já prevendo o desconto para fechar.

O entorno do estádio ainda está praticamente deserto quando os vendedores chegam. Varais são esticados entre postes e árvores, lonas estendidas no chão e os produtos falsificados ficam ali expostos, perto de policiais que fazem a segurança do jogo.

— Olha a camisa, olha a bandeira. Vai camisa aí, 'palmeirás'?

Pessimismo e pouco esforço no Brasil

O cenário no Brasil é de pessimismo quando o assunto é pirataria. A maioria dos clubes já desistiu de fazer ações contra o problema e as grandes fornecedoras de material esportivo veem o país como um caso perdido. No exterior, entendem que o problema tem três frentes: social, cultural e criminal/jurídico.

Socialmente falando, o perfil do brasileiro fã de futebol é de baixo poder aquisitivo e o esporte teria pouca penetração na alta renda. Esse cenário, entretanto, vem mudando, principalmente com a disseminação das arenas pelo país e com o aumento do valor do ingresso.

O problema cultural passa pelo que elucidou Vismona: 66% dos brasileiros admitem comprar produtos piratas. Isso quer dizer que dois a cada três consumidores nacionais não escondem que compram ou não consideram desvio de conduta grave comprar produtos piratas.

Por último, há um entendimento das multinacionais de que a legislação brasileira é pouco efetiva na hora de punir quem pratica ou consome a pirataria. Todo esse cenário leva a um quadro em que as grandes fornecedoras não tencionam aumentar gastos no país e são resistentes mesmo à criação de linhas populares com preços reduzidos —no quadro abaixo, você vê quem está tentando achar um caminho, com camisas populares.

Para o Palmeiras, por exemplo, não há a menor chance de fazer uma camisa oficial a preço popular. Segundo apurou a reportagem do UOL Esporte, o clube alviverde pode até fazer camisas "sem marca" com valores mais baratos, mas não a de jogo. Portanto, mesmo contra a vontade e promessa de eleição da presidente Leila Pereira, nenhuma peça de jogo vai ser barateada pela Puma.

UOL UOL

Sabemos que o torcedor quer ter uma camisa oficial do time, de qualidade, produzida pelo clube e pelo fornecedor oficial de uniformes e tínhamos esse compromisso com a torcida desde a nossa candidatura. Estamos oferecendo o que foi proposto, oferecendo um produto produzido pela Umbro com preço mais acessível. Assim, incentivamos que mais torcedores usem uma camisa oficial, criando mais empatia, mais proximidade com o clube e ainda evitando pirataria".

Andres Rueda, presidente do Santos

Como é dia de jogo, o torcedor sai correndo do trabalho em direção ao metrô paulistano para chegar a tempo. Nesta história, ele é palmeirense, mas poderia ser são-paulino ou corintiano, por exemplo. Nosso terceiro personagem reservou um dinheirinho especificamente para comprar uma camisa do seu time naquele dia, mas não será uma camisa oficial. Uma assim custa R$ 300, o equivalente a 24,75 % do salário mínimo que ele ganha.

O palmeirense chega aos arredores do Allianz Parque e encontra um varal de camisas vendidas pelo ambulante na esquina da Rua Palestra Itália com a Avenida Antártica. Tem bandeiras e uniformes de todos os tipos e tamanhos.

-- Fala, irmão! Quanto tá a camisa verde, a de jogo?
-- 70 reais, 'palmeiras'! Vamos levar?
-- Pô, aí fica complicado, hein? Não tem um desconto, não?
-- Tá difícil, chefe. Tenho que levar a janta para a família.
-- Ah, não vai dar, então.
-- Vai, faço 50 no dinheiro para você levar
-- Aí sim, fechado.

Os R$ 50 que o ambulante ganhou na venda da camisa representam um lucro de 150% para quem pegou o produto a R$ 20. Em um dia de bom movimento, ele chega a lucrar R$ 2 mil.

Se o jogo não tem tanto apelo, ao menos R$ 150 enchem seu bolso na volta para casa. Pode não ser o valor desejado, mas muitos não conseguem ganhar tal valor em seu emprego fixo — quando há um emprego fixo.

Nosso personagem trabalha em uma barbearia. Nela, ganha menos do que R$ 150 em qualquer dia da semana, exceto sextas e sábado. Nesses dias, o movimento é maior e, mesmo que tenha jogo, vale mais cortar o cabelo ou aparar a barba dos clientes do que se arriscar no futebol.

Essa escolha tem, também, outro motivo: sempre existe a chance de o ambulante se dar mal. Quando a polícia faz ações contra a pirataria, há corre-corre. O "rapa" apreende produtos que ambulantes pegaram em consignação no distribuidor.

Quando o vendedor consegue retornar para casa, ele passa no fornecedor para explicar a situação, mas já sabe que não há perdão. Se perdeu para a polícia, precisa pagar para o fornecedor os produtos perdidos. Esse fornecedor até parcela os valores para o ambulante, mas faz questão de receber. Para pagar sua dívida, o ambulante usa o melhor meio que tem: pega um novo kit em consignação e vai ao estádio para vender mais camisas falsificadas.

Assim, o ciclo se repete: a boliviana costura a camisa no porão, a camisa chega ao centro de distribuição dos fornecedores ilegais, vai para os vendedores e termina no peito dos torcedores.

+ Especiais

Rodrigo Coca

Formação, 'efeito Mourinho' e fácil adaptação: porque todos os times querem um técnico português?

Ler mais
João Cotta/Globo

O velocista Paulo André Camilo até pode não vencer o BBB, mas ele já ganhou na loteria.

Ler mais
Jose Breton/Pics Action/NurPhoto via Getty Images

Precoce em tudo, Rodrygo amadurece no Real Madrid e na seleção sem abandonar o espírito de garoto.

Ler mais
Caio Guatelli/Folhapress

Neymar faz 30 anos como o craque de uma geração. E pode não jogar mais por um time brasileiro.

Ler mais
Topo