De cabeça erguida

Técnico, poliglota e 'ser humano diferenciado': a história esquecida de Zózimo, bicampeão mundial pelo Brasil

Guilherme Padin Colaboração para o UOL Reprodução/Museu Afro Brasil

Zagueiro elegante, jogava de cabeça erguida. Quem o viu em campo conta que, quando soava o apito final, a camisa ainda estava dentro do calção e o uniforme nem tinha manchas de barro. A técnica, a inteligência, o fino trato com a bola, que lhe levaram à seleção brasileira bicampeã mundial, combinavam com sua personalidade: calmo, culto e educado, Zózimo Alves Calazans falava quatro línguas, cursou Pedagogia e se distinguia dos demais pela postura fora das quatro linhas.

Lembrado como um jogador e ser humano diferenciado, o defensor não é dos mais conhecidos entre os 14 atletas campeões em 1958 e 1962. Conquistas estas que ainda preservam o seu nome - embora muitas vezes esquecido - na história do futebol brasileiro e mundial.

Estudioso, pois se sentia profundamente preocupado com o futuro e as condições financeiras da família, teve os planos e a carreira como técnico abreviados pelo acidente de carro que o vitimou em uma tarde chuvosa de setembro de 1977. Deixou a mulher e dois filhos.

A fim de resgatar a memória do acanhado e brilhante zagueiro, nascido em Salvador (BA) em junho de 1932, que se mudou para o Rio de Janeiro ainda pequeno e conquistou o mundo duas vezes, o UOL conversou com pessoas próximas a Zózimo e colheu registros de jornais da época, como a entrevista em que Pelé o descreve como o marcador mais difícil que encontrou.

Reprodução/Museu Afro Brasil

Zózimo pensava no futuro

Reservado, modesto e inteligente. Preocupado com o futuro após a bola. Não bebia, não fumava e era "casado direito, não igual alguns que casam com uma e ficam com outras", lembra o irmão Jorge Calazans: uma vida de retidão.

A forma tímida com a qual se lembram de Zózimo é como ele próprio se observava. Durante entrevista à Revista do Esporte, em 1963, mostrou incômodo com a reação de um fã que o chamou de mascarado, pois o atleta não havia lhe dado atenção suficiente. "Não sou mascarado, é uma injustiça contra mim. Meu temperamento é retraído. Não sou expansivo como meu irmão Calazans. Sou muito acanhado", se justificou.

Companheiro no Bangu no início dos anos 1960, o ex-ponta-esquerda Aladim confirma o que dizia o zagueiro, a quem rasga elogios. "O Zózimo tratava os outros no clube como se ele também fosse um novato. Quando cheguei, era a estrela do time. Uma pessoa espetacular. Personalidade marcante, um cara inteligente. Fez faculdade, falava várias línguas", afirma.

O gosto pelos estudos atravessou todas as fases da vida do soteropolitano: cursou pedagogia e aprendeu francês, espanhol e inglês. Acreditava ele que, se quisesse seguir a carreira de técnico, falar outros idiomas abriria portas para o exterior - o que mais tarde se confirmou em El Salvador e no Peru.

Ainda atleta, Zózimo adquiriu seis imóveis no Rio de Janeiro, ciente de que poderiam lhe servir de renda após a aposentadoria.

"Sempre pensamos no futuro. No futebol, você joga, toma uma pancada, se machuca e como fica? Nos formamos no segundo grau e no técnico. Arrumávamos nossa vida direitinho, juntávamos nosso dinheiro, nossas economias. Se ele ganhava dez reais, gastava um", comenta Calazans.

Acervo UH/Folhapress

Um bicampeão de personalidade e gostos simples

À Revista do Esporte, o inibido atleta que conquistara o mundo com Pelé e Garrincha confirmou, ao revelar seus costumes e interesses, a simplicidade que os amigos descreviam.

Adorava ir à praia, principalmente Copacabana, gostava de filmes românticos e ler romances com enredos interessantes. Não resistia a um prato de bife com ovos, seu predileto.

"Nunca se vangloriou por nada. Não era mascarado, naquela época não tinha isso. Era o contrário: campeão mundial, titular do Bangu há anos e tinha uma simplicidade fora do comum", Aladim, ex-companheiro de equipe.

Bangu: aclamação e título internacional

Zózimo se mudou para o Rio ainda criança, junto de nove irmãos e os pais Ermenegildo e Felipa. Morou em São Cristóvão, onde atuou pelo time juvenil local. Focado nos estudos, foi convencido pela família a dar mais atenção à bola e estreou como profissional pelo Bangu, clube que o projetou para o país.

O elegante defensor vivia, na década de 1950, uma franca ascensão pelo Alvirrubro, que o levou a vestir a camisa da seleção brasileira em 1956. Após o título mundial, dois anos depois, se tornou o grande destaque banguense.

A fase e a relação eram tão boas que chegou a recusar propostas de Santos, Botafogo, São Paulo e do Millonarios (COL), que, à época, possuía um dos melhores times do continente. Pesava o fato de que o habilidoso canhoto era tratado como um rei no Bangu. Algo que mudaria drasticamente ao fim de sua passagem.

Divulgação/Bangu
Zózimo é o segundo em pé, da direita para esquerda

A despedida dolorosa

Em 1963, o Bangu de Zózimo, Ubirajara, Paulo Borges e companhia liderou o Campeonato Carioca por 25 rodadas. Seria o segundo estadual da história do clube. Mas, na reta final, derrotas seguidas para Flamengo e Fluminense tiraram a conquista da equipe do técnico Elba de Pádua Lima, o Tim. Uma falha do zagueiro o tornou vilão da decepcionante campanha. Em um lance contra o Flu, Zózimo agarrou a bola com as mãos, acreditando que o jogo estava paralisado. Pênalti para o adversário, que fechou a conta: 3 a 1.

O lance enfureceu a torcida e levantou boatos de que o defensor e outro colega teriam sido subornados. "Nada pesa sobre a honestidade dos dois atletas", rechaçou o técnico Tim. Mas Zózimo não se via tão protegido dentro do clube. A diretoria o multou em 60% de seu salário e o afastou. O insólito confronto contra o Fluminense foi seu último pelo Bangu. Dali até a dolorosa saída, Zózimo e o então presidente, Euzébio de Andrade, trocariam farpas na imprensa.

Após a fatídica falha, ele foi comunicado sobre o afastamento por tempo indeterminado. Quando encerraram suas férias, começou a treinar entre os juvenis por conta própria e recusou o pedido da diretoria para voltar aos treinamentos.

"Sempre procurei ter o máximo de zelo no desempenho das minhas funções. Na primeira tempestade que surgiu, não fui apoiado pela diretoria", afirmou à Revista do Esporte.

Não quis se curvar à punição e preferiu deixar o clube amado a aceitar as condições da diretoria. Mas, disse ele, o sentimento nunca mudaria: "Existe um amor grande para com o clube, que não será abalado".

Após a saída, o declínio marcou o fim da carreira de Zózimo - não sem novas conquistas, porém. Teve passagens apagadas por Guaratinguetá, Flamengo e Fluminense, e então partiu para o exterior. Foi vice-campeão peruano pelo Sport Boys e ganhou a liga nacional pelo Águila, de El Salvador, em 1968 como jogador e técnico interino.

Memória apagada no Bangu

Terceiro jogador que mais vezes entrou em campo pelo Bangu, o único bicampeão da Copa do Mundo na história do clube e, ao lado de Domingos da Guia e Zizinho, uma das maiores lendas que vestiram a camisa vermelha e branca. Somou 476 partidas, 261 vitórias, 104 empates, 111 derrotas, 30 gols e apenas três expulsões com a camisa branca e vermelha. Mas, ainda hoje, Zózimo não figura na seção de ídolos do site oficial do Bangu.

"O Zózimo foi muito injustiçado. Eles não foram legais com meu irmão, por tudo o que ele fez pelo Bangu. Foi bicampeão do mundo jogando no Bangu. Não deram o tratamento necessário", diz Calazans.

Carlos Molinari, que pesquisa a história do Bangu, considera que a saída de Zózimo se desenvolveu da forma mais desacertada possível. "Foi a pior coisa. O cara que dedicou a vida toda ao Bangu ficar sem clima ali. Morava perto do Bangu, e a torcida xingava ele na porta de casa. Foi transferido para uma equipe pequena, o Guaratinguetá. E a carreira desceu a partir dali", comenta.

Zózimo voltaria ao Bangu quase uma década depois da conturbada partida, em 1973, para substituir Vavá como técnico, no que poderia ser interpretado como um perdão por parte do clube, comenta o jornalista. Mas a passagem durou somente cinco partidas: três empates e duas derrotas.

"Hoje, quando se fala em Bangu, até o colocam nos 11 principais de todos os tempos, mas o torcedor do Bangu acaba não lembrando muito dele, até pela posição, e por fazer parte de uma geração mais esquecida. Não teve a mesma visibilidade de outros atletas da história do clube. Há um carinho muito grande pelos outros jogadores, e ele acaba não sendo muito lembrado", observa Molinari.

Alguns torcedores banguenses tratam Zózimo como tricampeão mundial devido à conquista da International Soccer League de 1960, tida como um Mundial pelo clube, diz o jornalista.

/ESTADÃO CONTEÚDO/AE Seleção brasileira de 1958. Zózimo é o primeiro em pé, da direita para a esquerda

Seleção brasileira de 1958. Zózimo é o primeiro em pé, da direita para a esquerda

A consagração na seleção

Somente 21 jogadores ganharam duas Copas do Mundo. Destes, 16 eram brasileiros. Zózimo compõe o seleto grupo. É lembrado também como o único que falava inglês na delegação que foi à Suécia para conquistar a primeira das cinco taças do Brasil.

Presente nos Mundiais de 1958 e 1962, o ídolo santista Pepe lembra do zagueiro baiano como um jogador muito inteligente e uma pessoa tranquila, séria, que evitava brincadeiras. "Tinha uma liderança, podia ser chamado pelo treinador para bater um papo [sobre táticas e o jogo]. Entre ficar com a turma da fuzarca e a turma dos inteligentes, que batiam papo, era do segundo grupo", conta Pepe.

Porém, não seria a Copa da Suécia a grande glória de Zózimo. O técnico Vicente Feola optou por utilizar Orlando para compor a zaga com Bellini. Assim, o atleta banguense acompanhou toda a competição do banco de reservas.

Posteriormente, Zózimo deixou de ser convocado à seleção. Dizia-se, à época, que havia uma rusga entre Feola e o zagueiro, que prontamente colocou panos quentes na especulação. "Deve ser onda da oposição. Feola é muito meu amigo. Se não gostasse de mim, não teria, recentemente, indicado meu nome ao São Paulo", disse ele, em entrevista à Revista do Esporte, em 1961, quando reafirmou a ambição de disputar o Mundial no ano seguinte.

Seu desejo foi realizado a partir da saída de Vicente Feola. O técnico deu lugar a Aymoré Moreira, que já havia treinado o Bangu. Sem contar com Orlando Peçanha, e, após a inesperada decisão de colocar Bellini no banco de reservas, Moreira deu a chance para Zózimo.

Prestes a completar 30 anos, ele atingiu a consagração na carreira ao ser titular nas seis partidas da campanha no Chile. Na final contra a Tchecoslováquia, a dois dias de seu aniversário, conquistou sua segunda Copa do Mundo, desta vez em campo.

ESTADÃO CONTEÚDO ESTADÃO CONTEÚDO

O acidente fatal aos 45 anos

O ano de 1977 se aproximava do fim. Perto de completar uma década como treinador, Zózimo treinava a categoria juvenil do Campo Grande, no Rio. Segundo jornais da época, já estava acertado com o Alianza Lima, do Peru.

No entanto, na tarde de 21 de setembro daquele ano, Zózimo derrapou com o carro na pista molhada pela chuva na estrada do Mendanha, no Rio de Janeiro, e se chocou com um poste. Ele se dirigia ao treino no Campo Grande, onde os garotos da categoria juvenil lhe esperavam.

Reportagem do jornal O Estado de São Paulo descreve que ele ainda saiu do veículo e deu dois passos antes de cair no asfalto, onde morreu, deixando a esposa Aldair e os dois filhos.

"Ninguém esperava. Soubemos por intermédio do rádio. Tinha um jogo no Bangu aqui [ao lado da casa onde vive] no dia, estava cheio, e todo mundo olhando pra minha casa, e do lado a casa da mamãe. Ficaram olhando pra cá. Aí veio um cara para me contar", recorda o irmão, com a voz embargada.

O canhoto permanece vivo na memória dos familiares, ex-companheiros de equipe e em incontáveis edições de revistas e jornais da época. O texto da Revista Bimensal do Bangu Atlético Clube, de novembro de 1977, assinado por Paulo César Oliveira Santos, termina com a definição do que significaram a vida e a partida de uma gigante figura do futebol nacional:

"No dia 21 de setembro de 1977, o destino o levou. O mundo ficou menos elegante, o futebol ficou mais vazio e a bola, mais uma vez, chora a sua orfandade. O time do céu ganhou mais um reforço, mais uma estrela a brilhar. E, naquela parte do espaço onde tudo é felicidade, entre arquibancadas de nuvens e gramados de azul celeste, anjos e querubins têm mais um motivo para sorrisos e aplausos: acaba de entrar em campo, com seu futebol elegante e ágil, Zózimo Alves Calazans."

Reprodução/Museu da seleção brasileira Reprodução/Museu da seleção brasileira

+Especiais

Reprodução

Leônidas desembarcava há 81 anos na estação do Brás para mudar a história do São Paulo

Ler mais
Yasmin Ayumi / Arte UOL

Everaldo: tricampeão de 1970 quase foi esquecido e morreu aos 30 anos em acidente com a família

Ler mais
Divulgação / Vasco

Morte de Pai Santana: folclórico massagista segue vivo para os vascaínos

Ler mais
Arte/UOL

Mortes de dois jogadores do Corinthians e um veto do Palmeiras mudaram a rivalidade para sempre

Ler mais
Topo