A obra prima

Abel Ferreira tenta seu feito máximo contra o Chelsea para conquistar o Mundial com o Palmeiras

Diego Iwata e Eder Traskini Do UOL, em Santos (SP) e Abu Dabhi (EAU) Staff Images/Conmebol

Há muitas maneiras de se mensurar a importância histórica de um personagem, mas a mais comum é avaliar seus feitos. Na história de um clube de futebol, títulos têm o maior peso nessa análise, mas não são a única medida. Isso vale, em especial, para os técnicos.

Há os que são grandes pelo tempo de clube. Outros, por marcas atingidas, identificação com o espírito da torcida ou pelo modo de se pensar futebol, por algo revolucionário, que dá ao time, por aquele momento de parceria, uma qualidade de encantamento.

Abel Fernando Moreira Ferreira, 43, português da pequena Penafiel, preenche todos os quesitos. Vivendo sua terceira temporada no Palmeiras, com um ano e meio de clube, ele já é o treinador que mais comandou o time no Allianz Parque desde o batismo do estádio. Poucas vezes um comandante soube assimilar tão bem a essência do palmeirense. O descontrole, o grito, a desconfiança, as manias e superstições. A paixão.

Cunhou o lema "Todos somos um". Fez do "Avanti, Palestra!" um mantra que denota, inclusive, uma reverência à história verde. Transformou o gesto com os dedos nas têmporas, pedindo para os jogadores terem "a mente fria", sem perder o "coração quente", em uma liturgia no campo e nas arquibancadas.

Os títulos? Nenhum outro técnico do Palmeiras conquistou duas Libertadores. Apenas cinco outros, antes de Abel, haviam levantado dois troféus na mesma temporada - só um deles, Luxemburgo, no ano de estreia.

Neste contexto, o português chega à sua primeira final de Mundial de Clubes. Perder ou ganhar do Chelsea (ING) altera algo do que foi listado acima? Alguma coisa ainda é necessária para ratificar Abel? Com ou sem o troféu, o técnico já não deixa mais o panteão e o coração alviverdes. Mas se o tão sonhado Mundial vier, a dúvida quanto a ele ser o maior técnico da história palmeirense será cada vez mais rara na torcida que canta, vibra e ama Abel Ferreira.

Staff Images/Conmebol

Comando detalhista

Mais do que capacidade tática, Abel Ferreira tem em sua estante muitas características que o tornam um líder no vestiário do Palmeiras. O português tem um domínio invejável de grupo, sabe sair de situações em que precisa colocar estrelas no banco para rodar o elenco, consegue blindar o time em derrotas e, sobretudo, cuida como poucos da parte mental.

Abel é assumidamente um entusiasta da psicologia do esporte. Diversas foram as pequenas ações realizadas para motivar os jogadores antes de partidas importantes. Na prévia das finais da Libertadores, por exemplo, o português preparou ações com os familiares dos atletas, de surpresa.

Abel costuma falar em desenvolver uma mentalidade competitiva. Foi esse trabalho psicológico que lhe permitiu, por exemplo, ter apoio total e irrestrito de seus jogadores para armar um time diferente, sacrificando a individualidade de Gustavo Scarpa, para vencer o Flamengo de Renato Gaúcho.

O meia atuou como ala esquerdo e não teve dúvidas ao dizer sim para a pergunta feita por Abel na palestra antes da final da Libertadores: "Quero fazer isso, mas só vou fazer se todos se sentirem confortáveis". O sim foi imediato.

A impressão é de que Abel sempre tem um plano para vencer e um plano para fazer os jogadores aceitarem de bom grado o primeiro plano. São planos dentro de planos que têm resultado em troféus para a galeria.

É preciso treinar bem [o mental], criar a prevenção de lesão [na mente]. Isto que aconteceu com o Ramires foi algo novo, me ajudou a ver a mídia de outra maneira. Para se competir em alto nível, precisa de uma estrutura mental muito forte. O futuro é por aqui [na cabeça], na mentalidade competitiva. O sistema tático, treinos, já estão todos inventados. A mentalidade competitiva faz a diferença"

Abel Ferreira, após o volante Ramires decidir deixar o Palmeiras

Os números de Abel

  • Total

    110 jogos. 59 vitórias. 24 empates. 27 derrotas. Aproveitamento: 61%

  • Em mata-mata

    19 vitórias. 9 empates. 5 derrotas. Aproveitamento: 66,6%

  • Em pontos corridos

    77 jogos. 40 vitórias. 15 empates. 22 derrotas. Aproveitamento: 58,4%

  • Em clássicos

    7 vitórias. 7 empates. 4 derrotas. Aproveitamento: 51,8%

É o treinador que em tão pouco tempo conquistou títulos tão importantes como Libertadores. Entra pra história, sim, como um dos nomes de maior peso. Claro que, pela história do clube, têm outros treinadores que tiveram excelentes trabalhos também e tem seus méritos. Mas o Abel por, em tão pouco tempo, conquistar duas Libertadores e agora prestes a se concretizar o título do Mundial, seria, com certeza, eternizado como o maior treinador da história

Galeano, campeão da Libertadores com o Palmeiras em 1999

Quem são os técnicos históricos do Palmeiras

  • Ventura Cambón (Diversas passagens entre 1935 e 1957)

    O uruguaio Cambón foi o maestro da conquista da Copa Rio, em 1951, no mesmo ano em que conquistou o valioso, à época, Torneio Rio-São Paulo. Conquistou também os campeonato paulistas de 1940 e 1944.

    Imagem: Reprodução/Site Palmeiras
  • Filpo Nuñez (Três passagens entre 1964 e 1979)

    O argentino foi o técnico da primeira Academia de Futebol do Palmeiras, um time que tinha Djalma Santos, Julinho Botelho e um jovem Ademir da Guia. Ganhou, entre outros, o Rio-São Paulo de 1965. E é o único estrangeiro da história a ter comandado a seleção brasileira, quando o Palmeiras foi o Brasil na inauguração do Mineirão: 3 a 0 sobre o Uruguai, em 1965

    Imagem: Reprodução/Site Oficial
  • Oswaldo Brandão (Cinco passagens entre 1945 e 1980)

    Foi o técnico da Segunda Academia do clube, nos anos 1970. É o que mais vezes conquistou títulos no Palmeiras. Foi campeão paulista de 1947, 1949, 1972 e 1974, que manteve o Corinthians na fila. Ganhou ainda o Supercampeonato Paulista de 1959 e três dos dez Brasileiros do Palmeiras: 1960, 1972 e 1973.

    Imagem: Reprodução/Reprodução
  • Vanderlei Luxemburgo (1993 e 1994; 1996; 2008 e 2009; 2020)

    Herói de uma geração de palmeirenses, tirou o Palmeiras de uma fila de 16 anos sem conquistas em 1993, no Paulista. No mesmo ano, conquistou o Rio-São Paulo e o Brasileiro. No ano seguinte, seria bicampeão Estadual e Brasileiro. Em 1996, ganhou o Paulista com o Palmeiras dos 100 gols. Voltou ao clube para ganhar dois novos Paulista, em 2008 e 2020.

    Imagem: Fernando Donasci/UOL
  • Luis Felipe Scolari (1997 a 2000; 2010 a 2012; 2018 e 2019)

    Foi de desafeto, como técnico do Grêmio, a ídolo. Ganhou a Copa do Brasil e a Copa Mercosul de 1998, laboratórios para a conquista da Libertadores em 1999. Levou o redivivo Rio-São Paulo de 2000. Após anos de hiato, voltou em 2010 e ganhou a Copa do Brasil de 2012. Mas saiu do clube antes que essa mesma equipe fosse rebaixada. Voltou em 2018 e ganhou o Campeonato Brasileiro.

    Imagem: Almeida Rocha/Folha Imagem
Getty Images

Um plano B que superou o plano A

E pensar que todo esse casamento perfeito entre Abel Ferreira e o Palmeiras poderia nem ter acontecido. O português não foi a primeira opção do Verdão no mercado de treinadores após a demissão de Vanderlei Luxemburgo: a prioridade era o espanhol Miguel Ángel Ramírez, que dirigia o Independiente del Valle (EQU).

Houve um princípio de acerto com Ramírez, mas a vontade do espanhol de terminar a temporada no clube equatoriano fez o Alviverde desistir: não queria esperar. E foi aí que Abel entrou na jogada.

Assim como Ramírez, Abel Ferreira foi outra indicação do departamento de análise de mercado do Palmeiras. A prioridade era buscar alguém com ideias modernas de treinamento e modelo de jogo, além de bom trabalho com jovens das categorias de base.

Abel não era nem de longe o português mais badalado do mercado. O técnico ainda não tinha nenhum título em sua curta carreira, de apenas quatro anos, e somava passagens pelos modestos Braga (POR) e PAOK (GRE).

Foram necessárias duas reuniões virtuais para alinhar ideias e definir o português como o nome certo para dirigir o Palmeiras. A partir daí, o clube precisou negociar com o PAOK e pagar uma multa rescisória de 600 mil euros (R$ 4 milhões) para tirá-lo da Grécia depois de muita negociação, uma vez que o valor total da multa rescisória era de 7 milhões de euros (R$ 46 milhões).

Enquanto Abel ganhava tudo por aqui, Miguel Ángel Ramírez durou apenas 20 jogos no Internacional. Hoje, dirige o Charlotte FC, da MLS, enquanto o Palmeiras do português se vê a um passo de ser campeão do mundo.

É o maior?

Abel Ferreira, em um clube que tem como decano Oswaldo Brandão, não é o maior treinador. Em um clube que teve o privilégio de ter o melhor momento da carreira do Vanderlei Luxemburgo e um dos melhores do Luiz Felipe Scolari, também não é o melhor treinador. Abel já está no top-5, junto com o Filpo Nuñez que montou a primeira academia em 1965. As conquistas são absurdas pelo pouco tempo, pelo grau de identidade -- ele é um palmeirense que nasceu em Penafiel, um corneteiro de Penafiel -- e o trabalho é excelente mesmo se não ganhar, o que não é favorito a ganhar. Certamente está entre os cinco maiores da história, mas não é o maior, nem o melhor. Mas não ser o melhor com esses nomes à frente não é demérito algum. O portuga está na nossa história.

Mauro Beting, jornalista e ícone palmeirense

Relação teve suas "DRs"

Como toda relação, Abel Ferreira e o Palmeiras também tiveram seus momentos ruins. Depois do êxtase da conquista da Copa Libertadores em cima do rival Santos, o Verdão viajou ao Mundial de Clubes apenas dias depois e pagou o preço pelo confuso calendário brasileiro: foi eliminado ainda na semifinal perdendo para o Tigres (MEX).

Abel tentou tirar o peso da derrota e valorizou tudo que o clube tinha feito para estar ali naquele torneio. No entanto, uma sucessão de tropeços obrigou o português a repetir o discurso e estremeceu a relação com o torcedor.

O Palmeiras perdeu em sequência a Recopa Sul-Americana para o Defensa y Justicia (ARG), a Supercopa do Brasil para o Flamengo e, pouco tempo depois, caiu precocemente na Copa do Brasil para o modesto CRB.

Naquele momento, o torcedor palmeirense chegou a se dividir. Alguns criticavam Abel Ferreira pelas atuações recentes da equipe, enquanto outros seguiam apoiando a continuidade do português.

O tempo, agora, mostra que esses últimos tinham razão. Não demorou para a equipe voltar a dar a resposta, sobretudo na Libertadores: eliminou o poderoso Atlético-MG de 2021 e, na tacada de mestre do português, venceu o rival Flamengo e levantou o bicampeonato continental para não restarem dúvidas de que Abel Ferreira está na galeria dos maiores técnicos que já pisaram em solo brasileiro.

Ettore Chiereguini/Ettore Chiereguini/AGIF

Para avaliar o maior técnico, pode-se usar vários critérios. Já encontra-se como um dos maiores. Ele mudou a história recente do Palmeiras. Pegou um time desacreditado e ganhou Copa do Brasil e duas Libertadores! Ganhou meu respeito e virou meu ídolo!

Paulo Nobre, ex-presidente do Palmeiras

O Abel seguramente é um dos principais técnicos da história do Palmeiras. Ele é extremamente competente, vitorioso e muito identificado com o clube e com o nosso torcedor. Espero que ele siga fazendo história no Palmeiras".

Maurício Galiotte, ex-presidente do Palmeiras

O Abel associa o talento estratégico às virtudes da sabia convivência humana amparada nos valores da vida coletiva e solidária. “Não sou eu, somos nós”. A história do Palmeiras registra, em cada tempo de sua vida, a presença de grandes treinadores. Entre todos, Abel revela a compreensão mais completa da ação humana coletiva

Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-presidente do Palmeiras

O jeito Abel de ser

Abel Ferreira não é protagonista somente na beira do gramado: o português merece um capítulo à parte atrás dos microfones. Com ideias claras e frases fortes, o técnico do Palmeiras é constantemente manchete na imprensa brasileira por suas entrevistas coletivas.

O português, porém, concede poucas exclusivas, nunca no meio da temporada. Ainda assim, consegue deixar cristalinas suas opiniões críticas sobre os meandros do futebol brasileiro e como ele precisa mudar.

Abel vai de questionamentos à imprensa ao modo como o futebol é consumido no país, e faz críticas à cúpula do esporte no Brasil. Às vezes se cansa e promete não falar mais sobre o assunto, mas logo já está novamente discorrendo sobre o tema na próxima vez que pega um microfone.

Outro alvo de sua atenção é sempre a busca por reforços. Abel não esconde seus desejos e já cobrou publicamente de diretores do clube por mais profundidade de elenco, principalmente pelo maior terror que o português encontrou por aqui: o calendário.

O número de jogos e o intervalo diminuto entre eles é tema certo nas entrevistas de Abel, bem como as críticas e sugestões do português para que isso seja melhorado. O próprio técnico já se colocou à disposição das entidades que regem o esporte no país para discutir o tema - e se irritou quando foi ignorado.

Volta e meia o português também coloca seu futuro em xeque. Não foram raras as vezes em que falou sobre estar cansado do futebol e da forma como ele é entendido no Brasil. Há o temor, inclusive, de que a partida de hoje seja a última de Abel pelo Palmeiras, independentemente do resultado. Será?

Ettore Chiereguini/Ettore Chiereguini/AGIF

As pessoas me ligam de Portugal e me perguntam se é nesse futebol (do Brasil) que eu quero continuar, e eu fico envergonhado. É uma reflexão que todos temos que fazer, e isso passa por mim também. As críticas que faço são para todos melhorarem. E, se queremos melhorar o futebol brasileiro, todos precisamos refletir. Que imagem queremos passar do futebol brasileiro".

Abel Ferreira, em desabafo após vencer o Santos na Vila Belmiro

Abel já está no pódio dos melhores. Considerá-lo 'o melhor', porém, vai depender dos critérios: por resultados, pode-se dizer que o Mundial dissipará qualquer eventual dúvida. Valendo o critério (subjetivo) da plasticidade do jogo, Brandão e Luxemburgo estão à frente. Seus times, além de vencer, davam espetáculo. E o Mundial, com mais um jogo apenas, não mudará a ideia que se tem do time de Abel neste aspecto.

Gian Oddi, jornalista dos canais Disney

Marcello Zambrana/AGIF Marcello Zambrana/AGIF
Cesar Greco/SE Palmeiras

Despedida?

Quem é apostador costuma dizer: saia do jogo enquanto estiver ganhando. Se vencer o Mundial, com duas Libertadores e uma Copa do Brasil na prateleira, ainda haveria, para ele, motivação para conquistar algo mais?

Do ponto de vista meramente prático, mesmo com a conquista, ainda há lacunas no currículo de Abel. Ele não venceu um Campeonato Brasileiro. Ainda tem a Recopa Sul-Americana, no mês que vem. Tampouco ganhou um Paulista.

Mas Abel sente saudade de sua família e está cansado mental e fisicamente. O futebol brasileiro é extenuante. O Brasil é um país continental, com viagens de seis horas dentro do território nacional. Tem um calendário muitas vezes irracional, que lhe tira as melhores peças e as leva para seleções várias vezes ao ano.

Abel tem mercado no exterior. Mas para a Ásia e os países do Oriente Médio, ele não tem interesse de ir neste momento de sua carreira. É incomum, também, que os clubes mais bem estruturados da Europa demitam treinadores no meio de uma temporada.

Mas, na janela de meio de ano, ao fim da temporada europeia, ainda mais se tiver o Mundial na conta, portas devem se abrir para ele. Seu nome é especulado no Leeds United (ENG), onde Marcelo Bielsa balança. Times franceses, suíços e turcos também já o procuraram.

Não seria surpresa se Abel deixasse o Palmeiras muito em breve, diante de todo o cenário exposto. O Palmeiras lhe ofereceu renovação até 2026, com aumento substancial de salário. A decisão está totalmente nas mãos dele. Se depender da atual diretoria, o português se torna ativo fixo do clube.

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