O primeiro jogador livre

Afonsinho conta como desafiou sistema para ser primeiro jogador livre do futebol brasileiro em plena ditadura

Bernardo Gentile e Vanderlei Lima Do UOL, no Rio de Janeiro Zô Guimarães/UOL

"Eu morava em General Severiano, praticamente em frente ao campo. Bastava atravessar a rua. Só que atravessar aquela rua começou a se tornar um peso. Quando acabou o ano, o Olaria procurou a direção do Botafogo. Pediu autorização para me fazer uma proposta. Na primeira reunião, lá na Praça XV, agradeci, mas recusei. No fim de semana, em casa, pensando com mais calma, mudei de ideia.

Eu tinha acabado de assinar o segundo contrato com o Botafogo. Com o primeiro, tinha dado entrada nesse apartamento em que eu morava. Tinha que acabar de pagar. Pensei: 'O Campeonato Carioca são três meses. Eu vou trabalhar, não vou roubar. É legítimo que eu aceite isso'.

A ideia maior era conseguir manter um teto, não depender de aluguel. Mas o Olaria acabou sendo um renascimento. Olha só: eu só precisava atravessar a rua para treinar no Botafogo. No Olaria, tinha de atravessar a Avenida Brasil de fusquinha para chegar em um estádio em obras, que nem lugar para treinar tinha. A gente ia para uma refinaria da Petrobrás, em Caxias. Mas para mim, era uma felicidade.

Retomei o gosto pelo futebol e entendi uma coisa: mesmo que eu deixasse o futebol, não ia mudar nada. Eu sairia e continuariam os jogos de quarta e domingo. Isso ficou claro. Quando você está com um problema, não tem uma visão ampla.

Mas era um empréstimo. E tive de voltar para o Botafogo. E quando eu voltei, o negócio pegou mais ainda. Eu até tentei retomar a minha carreira. Eu me apresentei e, no final da primeira parte do treino, chegou o diretor e me chamou num canto com o treinador, com o Zagallo.

Eu tinha ido para uma excursão no final do empréstimo com o Olaria e, quando eu voltei, a barba estava começando a crescer. E o diretor falou assim: 'Você está parecendo um tocador de guitarra, um cantor de iê-iê-iê'. Eu olhava pra um, olhava pra outro. 'Eu me apresentei aqui porque vocês fizeram questão. Eu não quero resolver a minha questão administrativamente'. Tinha ainda um final de contrato. No dia seguinte, estava proibido de receber material da rouparia, estava proibido de treinar. Eu tive que recorrer à Justiça porque ficou um impasse total".

Foi aí que o meio-campista Afonsinho, estrela do Botafogo e com passagens por Flamengo e Santos, mudou a história trabalhista do futebol brasileiro. Neste 1º de maio, conheça a história do primeiro jogador a conquistar o passe livre.

Clique para assistir à entrevista com Afonsinho

A luta pelo passe livre

Afonsinho chegou ao Botafogo em 1966, após ser revelado pelo XV de Jaú. Desde que chegou, a postura forte pela liberdade individual incomodava. Os tempos eram de repressão em um país que vivia em plena ditadura. E o ambiente do Botafogo, cheio de militares no comando, foi ficando cada vez mais pesado. Até que o craque perdeu espaço. Ao se reapresentar em 1970, foi barrado pelo então técnico Zagallo.

Insatisfeito com a situação, Afonsinho pediu para ser negociado. Só que, nos 1970, as coisas não eram tão fáceis. Na época, os vínculos esportivos de um atleta não estavam ligados ao contrato, mas eram perenes. Isso significa que um jogador, mesmo sem contrato, só poderia jogar em outro clube se a agremiação anterior permitisse. Era a Lei do Passe.

"Eu tinha sido lançado, me destaquei, e, numa mudança dentro do clube, houve uma outra opção. Passei a ser reserva, o que era compreensível para o clube. Mas eu não podia ficar naquela situação muito tempo. Apareceu São Paulo, Atlético-MG, Cruzeiro e o Santos, que era, junto com o Botafogo, o melhor time da época", disse.

"Eu levei isso por dois anos, tentando resolver de maneira administrativa, cordial, cavalheiresca. Mas a questão do passe impedia. Vencia um contrato, eu não podia sair, mesmo com interessados... Fiquei atado, amarrado. Tive que procurar, de alguma maneira, reconhecer os meus direitos".

Legalmente, o Botafogo poderia acabar com a carreira de Afonsinho. Foi o que o clube tentou no fim do relato que abre essa matéria. "Era cômodo pra eles. Eles eram donos do meu passe: eu não podia sair, não podia jogar. E o tempo passando. Eu não podia regredir. Já tinha disparado, estava valorizado e esse impasse foi criando áreas de atrito. Até que, num determinado momento, a questão de estar usando barba e cabelo comprido serviu de pretexto pra me impedir até de treinar", lembrou.

Afonsinho, então, procurou um advogado e, em março de 1971, conseguiu uma decisão favorável.

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O homem que mudou o jogo

Se hoje os jogadores hoje são livres para negociar com qualquer clube, isso se deve a Afonsinho. O embate com o Botafogo na Justiça, em 1971, o premiou com o passe livre e representou uma revolução na legislação esportiva. A vitória nos tribunais serviu como jurisprudência para que outros atletas seguissem o mesmo caminho. Mas foi só em 1998, quando Pelé era secretário do esporte, que todos os boleiros passaram a ser donos do próprio destino.

Afonsinho, portanto, foi fundamental para que os jogadores de hoje possam fazer contratos milionários? "Sem dúvida. Muita gente fala isso, até entre os próprios jogadores sempre corria essa história".

"O jogador tem a dificuldade de ter uma carreira curta. Um garoto, pra conseguir chegar num clube, precisa ser aprovado numa peneira, Tem que batalhar pra ser titular do infantil, depois no juvenil, ir pra seleção de base. Aí é emprestado para clube do subúrbio, do interior. O tempo é curto", disse.

"Muita gente argumenta que jogador passou a ser escravo do empresário, mas é um vínculo diferente".

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Polêmica atrapalhou carreira na seleção

Afonsinho sabia que comprar briga na Justiça com um grande clube poderia trazer danos colaterais. Um temperamento contestador em uma época de repressão também não o ajudou. Esses foram alguns dos ingredientes que fizeram com que o ex-jogador do Botafogo não chegasse à seleção brasileira.

"O desejo de todo jogador é jogar num time grande, é defender a seleção do seu país. Pra mim não era diferente, mas tive que fazer uma opção", lembrou Afonsinho. A opção, além do passe, era a manutenção de sua personalidade contestadora.

Quando chegou 1978 e a Copa do Mundo da Argentina, Afonsinho estava no auge. Tinha 31 anos e poderia ser a base da seleção que Cláudio Coutinho levou para o Mundial. Só que o regime autoritário seguia. E Coutinho era formado Escolha de Educação Física do Exército. "Na Copa da Argentina, que era a Copa da minha geração, talvez, eu pudesse estar. Só que o que adiantava me submeter a todas aquelas coisas que me violentavam profundamente?"

Portanto, Afonsinho mantém uma mágoa de não ter sido convocado para a seleção, mas jamais mudaria suas atitudes para conseguir isso. "Ter sido jogador da seleção teria sido muito bom, mas foi melhor ter assumido as posições que eu assumi. Pelo menos, eu me sinto mais íntegro", finalizou.

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Como era ser jogador de futebol na ditadura?

A carreira de Afonsinho foi toda durante o período de governo militar, entre 1964 e 1985. Portanto, pode falar com propriedade como era ser jogador de futebol durante um regime de exceção. Para ele, os militares entraram no esporte da mesma forma que se fizeram presentes em todas os setores do país. Em sua opinião, os 24 anos sem Copa do Mundo tem total ligação com algumas atitudes do período.

"A ditadura militar foi entrando no futebol, como foi entrando na imprensa, nos negócios, em tudo. Objetivamente, as comissões técnicas dos clubes passaram a ter intervenção muito clara, muito nítida. A gente vinha de um dos períodos mais ricos do futebol brasileiro, ainda jogando com jogadores que tinham sido os primeiros campeões de 58, de 62. A gente foi formado de uma maneira, mas a intervenção do período militar foram incomodando, criando problemas. No meu caso, além disso, era estudante, também", disse.

"Eu sempre tive, e continuo tendo, o interesse na questão social, na preocupação da justiça social. E isso foi criando uma área de atrito dentro do clube. Algumas medidas autoritárias não tinham muito a ver... Foram essas ações que levaram, inclusive, o Brasil a ficar de 70 a 94 sem ganhar um título. Isso é uma coisa que pouca gente fala, mas existe uma relação direta com o momento político de exceção, com uma ditadura".

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Afonsinho foi investigado pelos militares

"O nível intelectual em relação ao meio em que atua. Em função de um temperamento rebelde e irreverente, que lhe empresta uma personalidade marcante está sempre a liderar seus companheiros de profissão".

Esse é um trecho de um documento do governo à época que fazia uma análise sobre Afonsinho. Sim, quando defendia a camisa do Santos, o jogador era observado de perto por militares. A verdade apareceu em uma conversa reveladora com um jornalista.

"Os clubes seguiam em excursão, algumas longas. Nessa época, a delegação era sempre acompanhada de um jornalista. Quando voltamos, o representante de um jornal de Santos teve um gesto de hombridade e me procurou. Disse que tinha sido perguntado por órgãos de repressão sobre um papo de que eu procurava, durante as viagens, a embaixadas de países da chamada Cortina de Ferro. Isso nunca aconteceu", disse.

"Nessas excursões, a gente cruzava muito com time da Checoslováquia, da Iugoslávia, da Hungria. Tinha um roteiro: Buenos Aires, Lima e Caracas. Na América Central, tinha um torneio no México com clubes dos países da Cortina de Ferro. A gente cruzava por aí e era sempre uma rapaziada boa. Tinham alguns da Checoslováquia que tinham jogado a Copa de 62. Eu tinha intenção de visitar, mas eu não tinha nenhum contato. Eu não tive nem oportunidade, nem isso chegou a acontecer. Isso está nos dossiês sobre mim, informações que eles colheram".

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Quem era Afonsinho?

Filho de um radiotelegrafista com uma professora, Afonsinho sempre se interessou por duas coisas: futebol e sociedade. O esporte sempre teve presente em sua vida, mas começou a ficar mais sério quando chegou ao XV de Jaú, com 15 anos.

"Passei pra fase de amador, com 14, 15 anos, e em fases de crises, é preciso usar as pratas da casa. Começam a aparecer oportunidades. Foi tudo de forma natural. Com 16 anos, já estava na segunda divisão do Campeonato Paulista, pelo XV de Jaú, até vir pro Botafogo".

A vinda para o Rio de Janeiro, no entanto, não foi tão simples: os pais não abriam mão de que Afonsinho concluísse os estudos. O Fluminense foi o primeiro a fazer proposta. Só não foi aceita porque aconteceu em julho, durante o ano letivo. Em dezembro, o Botafogo deu o chapéu.

"O Fluminense recebeu a indicação e foi conversar com o meu pai para fazer um convite pra testes. Eu estava no segundo ano do científico. Meu pai, que nunca mandou, só argumentou, perguntou se eu não achava que era mais conveniente esperar o final do ano, pra não perder o ano de escola, já que eu não saberia quanto tempo eu ia ficar. Quando chegou no final do ano, houve uma mudança de direção no Fluminense e o diretor da base foi para o Botafogo, que me levou para lá".

No Botafogo, jogou com Garrincha, Manga, Zagallo, Quarentinha e ainda fez parte de uma nova geração do clube, com Roberto, Jairzinho, entre outros. Depois de deixar o clube, defendeu o Olaria, Vasco, Santos, Flamengo e América-MG.

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Como Afonsinho conseguiu cursar medicina enquanto jogava

Apesar de ser um dos grandes jogadores de sua geração, Afonsinho jamais abriu mão de estudar ao mesmo tempo em que jogava futebol. E isso se deu desde quando ainda começava no esporte, quando cursava o ensino médio. Para não perder o ano letivo, recusou o Fluminense e parou no Botafogo meses depois.

A mesma força de vontade seguiu quando já era reconhecido. Dividia as obrigações com o Botafogo com as cargas de estudos necessárias para se formar em medicina. "Não havia treinamento em tempo integral. Então, pude fazer o vestibular, entrar pra faculdade. A luta pelo passe livre acabou me permitindo ir mais avante. Quando eu fui emprestado pro Olaria, pude fazer um acordo de que se eu tivesse algum conflito de horário. No caso de ser treinamento coletivo, podia perder alguma aula. E podia fazer a parte física, já que no campeonato tem muitos jogos e não tem tanta parte física, no final do expediente".

"Quando fui para o Santos, uma faculdade muito conceituada de medicina me ofereceu a possibilidade de uma transferência, que era uma coisa muito interessante. Eu ainda tive o cuidado de esperar, o que foi bom, porque não continuei no Santos. Não iria conseguir voltar, não ia conseguir me formar. Então, tranquei a matrícula. Quando voltei, tive mais uma passagem pelo Olaria, levei em frente e consegui concluir", completou.

Outra ajuda especial veio quando ele precisava fazer a especialização. E não dava para conciliar com o esporte. "Também tive um favorecimento muito consciente de um professor, um cirurgião renomado, um craque do bisturi. No último ano, você tem que fazer uma opção pra especialização. Fiquei encucado com aquilo: 'Pra que lado eu vou correr?' Porque não daria para continuar jogando. Aí esse professor me disse: 'Ô, Afonso. Vai jogar a tua bola. Jogador para cedo. Quando você parar, você volta e me procura'. No fim da carreira, fiz o concurso do INSS, comecei a trabalhar e emendei uma coisa com a outra".

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"Uma outra ditadura"

Afonsinho sempre foi visto como resistência. Viveu grande parte da vida enfrentando a ditadura e foi reconhecido por isso. Ganhou, inclusive, música de Gilberto Gil: "Meio de campo".

"Prezado amigo Afonsinho, Eu continuo aqui mesmo, Aperfeiçoando o imperfeito, Dando um tempo, dando um jeito, Desprezando a perfeição, Que a perfeição é uma meta, Defendida pelo goleiro, Que joga na seleção, E eu não sou Pelé nem nada, Se muito for, eu sou Tostão, Fazer um gol nessa partida não é fácil, meu irmão", diz a letra.

Afonsinho não tem dúvida que hoje em dia há um aparelhamento assustador do governo com os militares. Para ele, o povo brasileiro vive um momento crucial na democracia e é preciso cuidado para não entrar de vez em uma nova ditadura.

"Não é fácil fazer um gol nessa partida. Voltou a ser muito mais difícil e complicado. Uma outra ditadura. É muito explícito isso, não tem como mascarar isso. É uma diferença pequena de formato, quase nenhuma. Inclusive, agora, nesses dias, procura-se um calendário semelhante ao de 64. Nós estamos num momento muito crucial desse processo. Parece seguir um calendário, como uma marcha em março. É muito explícito", disse.

"Eu não tenho dúvida de que vivemos uma ditadura. A saída é a democracia. A saída é a liberdade. A nossa história vem se repetindo na base de golpes de 50 em 50 anos. Democracia com financiamento público de campanha? Você paga, você quer receber. De período em período, tem uma intervenção. Esse é um lado triste da história tão bonita desse povo", concluiu.

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