Pensamento forte

Sobrevivente do voo da Chape, Alan Ruschel supera tragédia com a capacidade mental

Marinho Saldanha Colaboração para o UOL, em Porto Alegre Luiz Erbes/AGIF

Era 28 de novembro de 2016 e a delegação da Chapecoense viajava à Colômbia para a primeira final continental da história do clube. De repente as luzes se apagam. Todas elas. A incerteza toma conta do voo 2933 da empresa Lamia. Ninguém poderia prever o que aconteceria. Na penumbra, o anúncio de que o avião pousaria. De repente soa um alarme... E depois o nada. Até acordar no hospital com uma grave lesão na coluna, entre outros problemas.

Esta é a memória de Alan Ruschel, um dos seis sobreviventes da tragédia com a delegação da equipe catarinense. O único dos três jogadores que sobreviveram que conseguiu seguir carreira.

"Me recordo de alguns flashes de quando estava lá em baixo (dos escombros do avião), mas vou ser bem sincero, eu não procuro forçar minha memória para lembrar, porque foi um momento bem delicado, e eu procuro não pensar naquele momento. Procuro focar em lembranças boas, da minha recuperação em diante", conta.

Este foi o amparo do lateral-esquerdo de 34 anos que atualmente defende o Juventude. Seus pensamentos viraram escudo contra os efeitos da tragédia que vitimou 71 pessoas. Focar em temas positivos, entender a agrura pela qual passaria, e buscar o melhor — primeiro dentro de seu cérebro — depois fora: assim ele venceu uma batalha mais difícil do que qualquer jogo decisivo.

"A vida é feita de escolhas. Dentro de tudo que eu vivi, teria uma escolha para fazer. Ou escolhia ter parado de jogar, ter feito a minha carreira até aquele 28 de novembro de 2016. Ou escolheria dar a volta por cima como atleta e ser um ser humano muito melhor", disse.

Ao olhar para trás em entrevista exclusiva ao UOL (na íntegra no vídeo abaixo), Ruschel se vê como um vencedor, superando uma batalha que parecia perdida e retomando a carreira em alto nível. Afinal, pra quem tem pensamento forte, o impossível é só questão de opinião. E disso os loucos sabem, como diria a banda Charlie Brown Jr.

Luiz Erbes/AGIF

Eu me lembro de tudo, irmão

Eu não vou falar que seja confortável (falar sobre isso), mas hoje eu encaro com mais naturalidade, porque foi uma situação que eu passei, e para eu poder levar minha vida em frente eu teria que passar por isso, eu teria que enfrentar esses medos, esses traumas, eu teria que passar por cima disso da melhor maneira possível"

Alan Ruschel

Hoje eu acredito que consegui levar minha vida adiante, eu acho que consegui voltar, realizar o meu sonho, realizar o sonho da minha família de novo, e a minha vida precisava continuar. Sabendo e respeitando tudo o que aconteceu, mas a vida não poderia parar, então eu teria que dar um jeito de mostrar a minha superação"

Alan Ruschel

Reprodução/Youtube

O medo cega os nossos sonhos

"Me lembro de quase tudo, na verdade eu me lembro desde o momento que a gente saiu do aeroporto, até o momento que a gente estava dentro do avião, que teve aquela pane... Eu me lembro de tudo até esse momento. Depois, a partir dali, eu só me lembro depois que eu acordei no hospital", recorda.

Mas ele nunca sonhou com o acidente ou mesmo se viu traumatizado com aviões. Se o medo cega, Alan preferiu seguir enxergando e realizar o sonho de voltar a jogar em alto nível. A solução para isso foi exatamente entender o processo e fazer valer uma das coisas que o atleta profissional faz desde criança: trabalhar. Mas não no campo, nem na academia, e sim dentro de seus pensamentos.

"Nunca sonhei com o acidente. Acho que pelo fato de não ficar forçando muito para lembrar o que aconteceu. Procurei tocar minha vida adiante, lembrar das coisas boas, pensar sempre na minha família, pensar no que tenho que fazer, ser um exemplo de superação para as pessoas", contou.

Aliada à recuperação mental houve também a física, que consistiu primeiro na dúvida sobre voltar a andar, depois sobre conseguir jogar. Ali, de novo, o foco fez sua parte.

Foram nove meses de pensamento positivo e muito esforço no tratamento até o jogo contra o Barcelona, amistoso, em agosto de 2017. O marco da retomada do alto nível, porém, veio contra o Flamengo, na Sul-Americana: ali Ruschel realizou o sonho de se tornar atleta profissional pela segunda vez.

O impossível é só questão de opinião

Eu sabia que se eu queria voltar a jogar, teria de enfrentar esses medos, teria de enfrentar tudo isso de novo. Eu teria que passar por um momento, teria que voltar a Chapecó, eu teria que entrar no vestiário de novo, eu teria que entrar dentro de um avião"

Alan Ruschel

Procurei sempre pensar nas melhores coisas possíveis. Nunca pensei que o avião de repente pode dar alguma coisa e cair de novo. Nunca foi esse meu pensamento e nunca vai ser. Até porque se eu pensar desse jeito, não vou conseguir viver"

Alan Ruschel

Guillermo Ossa/Reuters Guillermo Ossa/Reuters
Fernando Alves/Juventude

Bom recomeçar, poder contar com você

Ele conseguiu. Alan Ruschel voltou a atuar profissionalmente e quis o destino que sua carreira fosse marcada por um reencontro. Depois de passar por vários clubes, ele reviveu o começo de sua história defendendo o Juventude, clube pelo qual completou 100 partidas exatamente diante da Chapecoense.

"Atingir essa marca, pra mim, é um privilégio, é uma honra muito grande, porque é um clube gigante no futebol brasileiro", contou orgulhoso. Titular e peça importante do time de Tiago Carpini, ele soma 32 partidas, com dois gols e duas assistências em 2023.

Os efeitos do acidente mudaram as características em campo. Depois de surgir como um lateral de força e velocidade, hoje Ruschel se tornou um jogador construtor, que aposta na técnica e no passe.

"O futebol mudou um pouco. Não precisa ser tão agressivo assim. A nossa característica aqui, principalmente, é um jogo mais apoiado, um jogo em que o lateral vem construir um pouco mais por trás da linha da bola. É o que o Tiago precisa. Mas se tiver que fazer um jogo mais agressivo, consigo também", disse.

Com vínculo até o fim do ano, ele evita um planejamento mais longo. Vivendo 'um ano de cada vez', ele já tem conversas para prorrogar o período em casa: o Alfredo Jaconi.

Aprender um pouco mais sobre a percepção

Quando tenho oportunidade, converso com os meninos. O Ruanzinho (Ruan) é 2005. Em 2007 eu já estava jogando Brasileiro da Série C. Ele tinha dois anos de idade. Quando o treinador fala isso ou aquilo, tem momento certo, acabamos não dando muita bola, mas é o que faz a diferença"

Alan Ruschel

A carreira do jogador de futebol é tão curta, num piscar de olhos está acabando. Então tem que focar, naquelas quatro, cinco horas do dia, tem que se concentrar no que tem que fazer. É o mais importante da sai vida, seu futuro está ali, naquelas quatro linhas, nas cinco horas de sessões de treinamento"

Alan Ruschel

Houve um momento que eu estava em um grande clube que minhas escolhas, sendo bem sincero, não foram as melhores, principalmente extra campo. Eu tinha 23 anos... A gente pensa que nunca vai ficar velho, mas a idade chega. Fiz escolhas erradas e não fui tão profissional quanto deveria ser"

Alan Ruschel

Marcio Cunha/Chapecoense Marcio Cunha/Chapecoense

Segurei minhas lágrimas

Tão duro quanto tratar do acidente e seus reflexos é abordar a saída da Chapecoense. Alan viveu as maiores emoções pelo clube, chegou a abrir mão de pagamentos para que os funcionários recebessem salários, mas se sentiu magoado quando, em 2022, a defesa da Chape alegou na Justiça que ele teria 'se beneficiado com o acidente' para recusar-se a efetuar pagamentos atrasados.

"Algumas pessoas não entendem o que acontece dentro de uma carreira de um atleta e aí te julgam de maneira errada. O atleta profissional é um trabalhador como qualquer outro trabalhador. Acho que a rusga que teve entre a Chapecoense e eu foi o fato de algumas pessoas não terem gostado de eu ter cobrado o clube da maneira que eu cobrei", contou.

"Eu nunca quis cobrar o clube na Justiça, até pela história que eu tive lá dentro. Só que eu cheguei a ficar 22 meses sem receber salário. Recebia só metade do meu salário. E mesmo assim nunca deixei de treinar, nunca deixei de trabalhar. Bem pelo contrário. Conquistei dois títulos muito importantes para o clube naquele ano (2020). Só que chegou na hora de acertar e o clube não acertou comigo, do jeito que eles tinham que acertar. E não acertaram e simplesmente não respondiam, não falavam mais nada. Tu tens que cobrar o que é teu direito. Eu tenho família para sustentar".

"Deixei de receber salário para os funcionários receberem no meu lugar. Um dia um diretor chegou em mim e falou assim: 'Eu tenho três meses de salário para te pagar, de imagem, só que se eu te pagar, eu vou deixar de pagar os funcionários'. Estava eu e o Neto. Decidimos não receber ali porque eles (funcionários) precisavam mais do que a gente naquele momento. Só que a gente não externou isso para ninguém, porque a gente não precisa. Não precisava falar nada. Fiz isso porque naquele momento eu achava que aquelas pessoas precisavam mais do que eu".

"A maneira que eles foram se defender... Falaram que eu tinha me beneficiado com o acidente. Isso eu achei um absurdo. Eu acho que aquelas pessoas que estavam lá, acredito que não estão mais no clube, estavam despreparadas para tomar conta de um assunto tão importante como foi o meu. Hoje eu tenho um carinho gigante pelo clube, por Chapecó, pelas pessoas que sempre me apoiaram. Mas foram momentos que a gente precisa passar para poder dar valor um pouco mais para as pessoas que realmente merecem", finalizou.

Agora eu sei exatamente o que fazer

Quando a gente toma consciência da autorresponsabilidade que a gente tem, de tudo que a gente planta, a gente vai colher, de tudo que a gente faz ali na frente, se tu estás fazendo as coisas certas ali na frente, não tem como tu colher uma coisa errada, entendeu?"

Alan Ruschel

Eu acredito que tudo que tu plantas, tu colhes, tudo que tu vais fazer agora, ali na frente vai ter uma consequência. No começo, logo depois que aconteceu (o acidente), eu brinco sobre falar que agora eu vou viver a minha vida, começar a encher (a cara), a tomar (beber), e não é desse jeito"

Alan Ruschel

Tu viver a tua vida é saber da tua autorresponsabilidade, de saber que tudo que tu vais fazer aqui vai refletir ali na frente. Isso é saber viver melhor a tua vida, isso é saber escolher melhor as coisas que tu vais fazer, e fez com que eu aprendesse e vivesse um pouco melhor"

Alan Ruschel

O homem quando está em paz não quer guerra com ninguém

Alan não quer guerra com ninguém. Depois de passar por tantas coisas na vida, seja pessoal ou profissional, ele foca apenas no que chama de 'terceiro sonho'. Depois de virar jogador profissional, o sonho da maioria dos brasileiros, e de voltar ao alto nível superando uma tragédia, a meta passa a ser perene e profunda. "Quero ser o exemplo para meus filhos", garante.

Profissionalmente, Alan se recusa a fazer planos. A certeza é que quando a carreira retomada em 2017 tiver fim, ele quer levar sua forma de encarar a vida e a maneira pela qual lidou com seus traumas para mais pessoas. Ser inspiração para os outros compartilhando lições de superação em palestras é o plano, e o caminho de buscar o aperfeiçoamento através de cursos de oratória será iniciado em breve.

"Eu procuro sempre pensar nas coisas boas que aquela coisa ruim pode me trazer", diz. Este legado que precisa perdurar.

Luiz Erbes/AGIF Luiz Erbes/AGIF

+ Especiais

Ricardo Moreira/Getty Images

São Paulo conquista a Copa do Brasil pela primeira vez, título que faltava ao clube

Ler mais
Art

Espírito de porco - como duas mortes acirraram a rivalidade entre Corinthians e Palmeiras

Ler mais
Avocado Midia

Magno Navarro fala sobre depressão e abre o jogo sobre saída da Rede Globo

Ler mais
UOL

Milton Neves abre o jogo sobre depressão e a vida sem Lenice, a Pelé das mulheres

Ler mais
Topo