Ameaças ao Hexa: Alemanha

Tetracampeã, Alemanha já não é a mesma do 7 a 1 e aposta na falta de favoritismo para surpreender

Thiago Arantes Colaboração para o UOL, em Barcelona Marvin Ibo Guengoer - GES Sportf/Getty Images

A cada quatro anos, nos meses que antecedem a Copa do Mundo, uma pergunta se repete: quem são os favoritos ao título? Desde o Mundial de 1954, quando conquistou o título pela primeira vez, a Alemanha sempre aparece na lista. Ou quase sempre. Este ano, os alemães estão fora do grupo de favoritos -nas casas de apostas, ocupam apenas a sexta posição-, fruto de desempenhos ruins nos torneios mais recentes.

Desde 2014, quando humilhou o Brasil por 7 a 1 e venceu a Argentina para conquistar o tetracampeonato, a Alemanha não voltou a uma final. A Mannschaft foi semifinalista na Eurocopa de 2016 e caiu nas oitavas em 2021, mas a maior vergonha aconteceu na Copa da Rússia, em 2018: queda na fase de grupos depois de perder para a Coreia do Sul.

"A Alemanha chega ao Qatar muito reformulada. Depois das dificuldades nos últimos anos do Joachim Löw, agora começa uma retomada com o [Hansi] Flick. Ele pegou uma molecada jovem e talentosa, e precisa fazer eles serem um time. Não vejo como uma seleção favorita, mas pode ser uma boa surpresa", afirma Cacau, atacante brasileiro que disputou a Copa de 2010 pela seleção alemã.

Para o jornalista Gerd Wenzel, comentarista da OneFootball, a renovação da equipe demorou para começar. "A seleção está iniciando uma fase de renovação que já deveria ter acontecido depois da Copa de 2018. Mas o Joachim Low era muito conservador e muito ligado aos jogadores. Ele deveria ter saído antes da seleção. Agora, a Alemanha tem sido escanteada, e com alguma razão. A seleção deixou de ser protagonista no futebol mundial", afirma.

O treinador Hansi Flick, que deixou o Bayern para assumir o comando da seleção em setembro do ano passado, sabe que o momento é a situação é diferente de outros Mundiais, mas se nega a aceitar o papel de coadjuvante.

"Não vamos ao Qatar apenas para fazer figuração. Todo nós, jogadores, treinadores e membros da comissão técnica, depositamos a mais alta expectativa em nós mesmos. Nosso diretor-executivo, Oliver Bierhoff, já falou que alcançar as semifinais é nosso objetivo mínimo. Todos aqui trabalham com a ideia de sermos campeões mundiais", disse Flick em entrevista ao Blog do Rafael Reis, do UOL.

Marvin Ibo Guengoer - GES Sportf/Getty Images

Como joga a Alemanha?

Pressão e qualidade no meio

O idioma alemão tem palavras enormes e que muitas vezes parecem complicadas. Uma dessas palavras que explica um pilar fundamental do estilo da seleção de Hansi Flick: "gegenpressing". Traduzindo do alemão (e, depois, do tatiquês), o termo significa "pressionar para tentar recuperar a bola o mais rápido possível".

Para colocar a estratégia em prática, Flick abandonou o sistema de três zagueiros como plano principal. Nos últimos jogos, ele escalou a equipe no 4-2-3-1, com dois volantes de qualidade, três meio-campistas de características ofensivas e um atacante que ajuda a pressionar a saída de bola.

A defesa tem como nome principal o goleiro e capitão Manuel Neuer, titular nas últimas três Copas do Mundo, que deve se despedir aos 36 anos. "Sua performance debaixo das traves é capaz de decidir o resultado de uma partida", define Flick.

Poucos metros à frente, dois zagueiros de características bem especiais: Antonio Rudiger, além da incrível imposição física, é rápido e surpreende com arrancadas ofensivas; Niklas Süle tem ótimo posicionamento e é capaz de dar passes longos que superam linhas rivais. Nas laterais, o destaque fica na esquerda, onde David Raum é uma máquina incansável de atacar; na direita, a opção costuma ser mais defensiva -o versátil Thilo Kehrer é candidato à vaga no time titular.

À frente da defesa, a dupla de volantes tem um nome certo: Joshua Kimmich. O parceiro do maestro do Bayern de Munique pode ser o companheiro de clube Leon Goretzka ou Ilkay Gundogan, do Manchester City. Em comum, ambos têm uma boa capacidade física e a chegada à área adversária. Nos 15 primeiros jogos da temporada, Goretzka marcou 5 gols e deu 4 assistências; Gundogan, por sua vez, vem de marcar 10 vezes na temporada 2021/22 e outras 17 em 2020/21.

O setor ofensivo tem como característica a velocidade dos meias abertos -Sané e Gnabry, ambos do Bayern de Munique, largam na frente. A dúvida fica por conta quem será o meia central. "Caso ele escolha o Thomas Muller, ganha um jogador com mais leitura de jogo, mais experiência; se optar pelo [Jamal] Musiala, passa a ter mais drible e velocidade", avalia Gerd Wenzel.

Na referência ofensiva, o mais usado sob o comando de Flick foi Timo Werner, que voltou nesta temporada ao RB Leipzig depois de dois anos sem muito brilho no Chelsea. Mas uma lesão no tornozelo esquerdo tirou o atacante da Copa do Mundo. Sem um "9" de ofício, o mais provável é que Kai Havertz seja improvisado na função.

Ponto forte

A Base do Bayern

A falta de tempo de Hansi Flick para comandar a renovação da Alemanha acabou tendo um efeito colateral que pode ser positivo para a seleção tetracampeã mundial: como vinha do Bayern de Munique, o técnico acabou montando um time que tem muitas características táticas do ex-clube, além de pelo menos cinco jogadores do possível time titular.

O provável time titular tem jogadores do time bávaro em todas as linhas e não é por acaso. "Como ele foi técnico do Bayern, vai aproveitar ao máximo o que conseguir recriar na seleção. A lista de convocados deve ter sete jogadores do clube. A ideia dele é manter essa base e misturar com outros clubes", explica Gerd Wenzel.

A estratégia não chega a ser uma novidade. Em 2010, o brasileiro Cacau, então no Stuttgart, também tinha sete representantes do Bayern ao seu lado na seleção alemã. "Quando a Alemanha consegue entrosar essa base do Bayern com o restante do grupo, é sempre uma grande vantagem. É pela questão tática, mas também pelo entrosamento, saber o que o companheiro pensa, como ele vê uma jogada, como ele gosta de receber o passe".

No título de 2014 e no fracasso de 2018, a Alemanha também tinha sete jogadores do Bayern entre os convocados. A diferença é que, no Qatar, a influência não será apenas pelo número de atletas - o esquema tático e a forma de jogar também são parecidas às da equipe bávara. Julian Nagelsmann, substituto de Flick na equipe da Baviera, manteve o esquema 4-2-3-1, com dois volantes que têm ótima qualidade técnica (ambos da seleção) e muita pressão para recuperar a posse de bola.

Foi com essa base bávara que a Alemanha começou a se reerguer após a decepcionante campanha na Eurocopa de 2021, o último torneio antes da chegada de Flick. "Nossas últimas atuações foram muito promissoras. Aplicamos uma goleada por 5 a 2 sobre a atual campeã europeia, a Itália. Acredito que estamos no caminho certo", afirmou o treinador ao UOL.

Roland Krivec/DeFodi Images via Getty Images Roland Krivec/DeFodi Images via Getty Images

Ponto fraco

Falta um goleador

Gerd Müller, Karl-Heinz Rummenigge, Jurgen Klinsmann e Miroslav Klose. Nos últimos 50 anos a seleção alemã teve uma linhagem de atacantes de primeiro nível mundial. Mas, desde a aposentadoria de Klose -o maior artilheiro da história das Copas do Mundo, com 16 gols- o país ainda procura um substituto, e chegará ao Qatar sem encontrá-lo.

Para Oliver Hartmann, da revista Kicker, a falta deste goleador é o que mais preocupa na equipe de Hansi Flick. "O grande problema da equipe é a falta de um centroavante clássico, que possa fazer gols. Um cara como Karim Benzema ou Robert Lewandowski. A Alemanha não tem esse cara", afirma.

Cacau, que jogou ao lado de Klose na seleção, concorda. Para ele, nenhuma das opções atuais tem o perfil goleador dos antecessores. O brasileiro sugere que Serge Gnabry, que atua como ponta, seja testado no comando do ataque. "É uma posição realmente carente. Depois do Klose não teve centroavante, e não parece ter nenhum em visto pelos próximos anos. Vejo o [Serge] Gnabry como esse jogador, sabe fazer mais gols", afirma.

Com a lesão de Timo Werner, Gnabry é uma das opções de Flick para o setor; também há a possibilidade de o treinador mudar o perfil do atacante, dando chances a Kai Havertz, Thomas Muller ou Jamal Musiala.

Apesar das críticas a seus atacantes e à falta de gols, a Alemanha marcou 45 vezes nos 15 jogos sob o comando de Flick. Com a lesão de Timo Werner, artilheiro da Era Flick, a busca por novas opções deve ser o principal desafio da seleção na reta final de treinamentos para a Copa.

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O craque

Thomas Muller (Bayern)

Aos 33 anos, Thomas Muller chega à sua quarta Copa do Mundo com a possibilidade de fazer história. Com 10 gols marcados em Mundiais, ele é o jogador que tem mais chances de tentar bater o recorde do ex-companheiro Miroslav Klose, que marcou 16 vezes entre 2006 e 2014.

A façanha de Muller é improvável, mas dá uma dimensão do que é o meia-atacante alemão em Copas do Mundo. Desde a estreia em 2010, na África do Sul, ele criou uma forte identificação com o torneio -naquela edição, acabou com um dos artilheiros, com 5 gols marcados, e foi eleito o melhor jogador jovem.

Doze anos depois, ele é a voz da experiência em uma seleção que tenta se renovar. "O Muller é extremamente importante, porque ele traz uma leveza, uma forma diferente de encarar o futebol: é autêntico, divertido, sabe lidar com pressão e transformá-la em algo mais tranquilo. Ele pode trazer toda a responsabilidade para si e tirar o peso em cima dos jovens", explica Cacau, que jogou ao lado de Muller em 2010.

Para Gerd Wenzel, o meia do Bayern tem algo que os mais jovens ainda não conseguem ter: uma visão de jogo privilegiada. "Ele sabe onde os espaços vão aparecer, 3 ou 4 segundos antes de aparecem", afirma. No entanto, há dúvidas sobre a condição física do veterano.

Com uma inflamação no quadril, Muller luta para chegar à Copa 100% fisicamente. "Temos que pensar como ele vai jogar nesse quadrado ofensivo, e em que tipos de jogos poderá ser aproveitado. Havia uma dúvida entre convocar o Muller ou o Musiala, também do Bayern. Eu levaria os dois", conclui Wenzel.

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A promessa

Jamal Musiala

Rápido, inteligente, bom driblador, frio, confiante, espetacular. Quem acompanha de perto o futebol alemão já não sabe mais como elogiar Jamal Musiala, 19 anos, o jogador mais promissor do Bayern de Munique e apontado como futuro craque da seleção. No Qatar, ele terá a chance de mostrar ao mundo se todos os elogios se justificam.

"É um jogador espetacular, uma estrela que está aparecendo. Acredito que na copa ele vai brilhar. Ele tem uma técnica espetacular, uma capacidade incrível de se movimentar em espaços curtos, faz gols, sabe dar passes, segura bem a bola. É excepcional. Não quero colocar pressão no garoto, mas podem esperar: vai ser craque", prevê o brasileiro Cacau, que acompanha Musiala desde as categorias de base.

Na imprensa alemã, a empolgação se repete. "Ele é um grande jogador, com um futuro brilhante pela frente. Já provou suas qualidades no Bayern de Munique, onde confiam muito nele. Espero que Hansi Flick encontre um lugar para Musiala entre os titulares, porque ele é um jogador que pode fazer a diferença", afirma Oliver Hartmann, da revista Kicker.

Os números de Musiala no Bayern de Munique nesta temporada impressionam: nas primeiras 19 partidas da temporada, ele marcou 10 gols e deu assistências para outros sete. Já são mais participações em gols que durante toda a temporada 2021-22, quando ele passou a ser titular com mais frequência. A dúvida agora é se Flick dará minutos a ele na seleção -em 17 partidas com a Alemanha, o jovem ainda tem números tímidos: marcou uma vez e deu uma assistência.

O que a Alemanha pensa do Brasil?

Engana-se quem pensa que a histórica goleada por 7 a 1, na semifinal de 2014, mudou a imagem que os alemães têm da seleção brasileira. No único país que pode alcançar o Brasil em número de títulos mundiais, a imprensa trata com muito respeito a equipe comandada por Tite.

"O Brasil parece pronto para fazer uma grande Copa do Mundo no Qatar. São sete vitórias seguidas e um total de 15 jogos sem derrotas, que fazem de Neymar e seus companheiros fortes candidatos ao título", escreveu o jornal Frankfurte Algemeine Zeitung, depois dos amistosos contra Gana e Tunísia, os últimos jogos antes da estreia no Mundial.

A revista Kicker também acompanhou de perto os amistosos e viu uma seleção "fazendo um primeiro tempo fabuloso" na vitória sobre Gana, por 3 a 0, em Le Havre, em setembro. "Jogando como criador de jogadas, Neymar se conectou especialmente bem com Vinícius Junior", disse a publicação.

O respeito ao futebol brasileiro aparece até mesmo ao falar do histórico 7 a 1 do Mineirão. Em entrevista ao Blog do Rafael Reis, do UOL, o treinador Hansi Flick fez questão de elogiar o comportamento dos alemães no jogo e lembrou que o Brasil não tinha força máxima.

"Essa vitória foi uma das maiores partidas da história da seleção alemã. Não apenas por causa da inesperada margem de gols que aplicamos, mas também por conta da forma como nossos jogadores reagiram a ela: eles foram respeitosos e demonstraram apreço por seus colegas brasileiros, tiveram muita humildade apesar do resultado. Também não podemos nos esquecer que o Brasil não pode escalar sua melhor equipe naquele dia e estava enfraquecido por não poder contar com Thiago Silva e Neymar", afirmou Flick.

Para o jornalista Gerd Wenzel, a seleção brasileira tem algo que a diferencia das demais. "O Brasil tem jogadores que, com uma jogada individual, podem resolver as partidas. Às vezes o jogo está difícil, o time não está bem, mas, em uma jogada, o talento resolve. E isso o Brasil tem", afirma.

Marvin Ibo Guengoer - GES Sportf/Getty Images Marvin Ibo Guengoer - GES Sportf/Getty Images

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