Dos 100 dólares aos 100 mil

Alexandre Pantoja quer contar ao mundo a trajetória que o tornou campeão do UFC

André Martins e Arthur Macedo Do UOL, em São Paulo Steve Marcus/Getty

"Vocês precisam conhecer a minha história". Foi com essa frase que Alexandre Pantoja, carioca de 33 anos que se tornou campeão do UFC, defendeu-se de vaias após conquistar o título do peso-mosca da maior organização de MMA do mundo.

O lutador relembra com carinho da noite em que superou as provocações dos mais de 19 mil mexicanos que apoiavam Brandon Moreno, seu rival no caminho pela busca de seu maior sonho.

O que as pessoas não sabem, pelo menos ainda, é que os empecilhos dentro daquela arena não eram nada perto das provações que ele precisou enfrentar para chegar até ali.

Pantoja superou a ausência do pai em um contexto familiar conturbado, foi pedreiro, garçom, motorista de aplicativo, mudou de país, superou lesões e a distância da família até poder ostentar o cinturão do UFC em seu corpo.

Mas, como pedido pelo próprio campeão, agora ele vai contar a própria história.

Steve Marcus/Getty

"Isso é a vida real"

Estava trabalhando em um sábado para fazer 100 dólares pela Uber e, no outro, ganhei 100 mil dólares com uma luta no UFC. Desde esse dia não precisei mais trabalhar com outros serviços sem ser a luta. Minha esposa também não precisou mais trabalhar, mas falamos que, se fosse preciso, faríamos tudo de novo.

Trabalhar não é um sacrifício, uma loucura, nem nada. Isso é a vida real, entende? Você batalha pelos seus sonhos. Somos pais, temos duas crianças que dependem da gente, nunca vamos nos colocar à frente dos nossos filhos. Desejo muito ter aquela casa do 'sonho americano', com graminha e tudo, mas ainda não é o momento. Sou pé no chão, reconheço que tem que ser passo a passo.

Às vezes, ganhando em dólar você pensa: 'vou para o Brasil, ter uma vida bem tranquila, bem confortável'. Mas a gente investiu no nosso sonho e nos nossos filhos. Queria que eles morassem nos Estados Unidos e tivessem a educação que estão tendo, que eu tivesse o treinamento que tenho hoje. Tenho total noção que, se não tivesse feito essa mudança, não teria chegado ao título.

Foi tudo um acerto. Esse cinturão representa as escolhas que eu e minha esposa fizemos na vida. Até brinquei: 'agora eu me aposento. Ganhei o cinturão, estou cansado, é muito difícil'. E ela falou: 'agora que a gente vai ganhar dinheiro, você está doido?'.

Graças a Deus tenho ela do meu lado. E agora um novo ciclo se inicia.

Reprodução/Arquivo pessoal

"Vi muita briga em casa"

Sou o caçula de três filhos. Tenho um irmão e uma irmã mais velhos, mas a minha história começa pela minha mãe.

Ela e os irmãos foram adotados ainda quando crianças porque seus pais não tinham condição de criá-los. Minha mãe foi para uma família adotiva que é de onde vem o nome Pantoja. O meu sobrenome, que me dá muito orgulho.

Seu pai adotivo era capitão da Marinha e proporcionava coisas boas para ela, mas viajava muito e não podia estar sempre cuidando. Já a madrasta não a via com muito bons olhos, tratava meio diferente. Além disso, o meu tio, irmão biológico dela, foi assassinado. Minha mãe tem vários traumas, sofreu bastante na infância.

Então chegou o meu pai e eles tiveram três filhos. Uma coisa boa que nos ensinaram é estarmos sempre unidos, eu e meus irmãos, o que mantemos até hoje. Mas, como marido, ele não foi o ideal para a minha mãe. Um cara que começou a beber mais do que deveria, vi muita briga em casa, muita agressão verbal. Ele nunca chegou a agredi-la fisicamente, mas o clima ficou muito pesado, até que se separaram de vez.

Minha mãe ficou sozinha com a gente. Teve que segurar a casa durante muito tempo, trabalhar e se virar em várias. Mas vejo que a ausência do meu pai me mostrou a nunca precisar de ajuda. Isso foi um dos grandes aprendizados que ele me deu, que eu teria que me virar. Eu teria que fazer por mim.

"A única ajuda que um filho espera é de seu pai"

Chris Unger/Zuffa LLC

"Sempre tive essa busca por uma referência masculina"

Acho que sempre tive essa busca. Não sei se paterna de fato, mas acho que até foi, né? Via os caras maneiros da minha rua e falava: "pô, esse cara é irado, fortão, bacana, quero ser como esse cara quando crescer".

Daí já foi crescendo a vontade de entrar para o mundo da luta, ser um cara mais descolado. Falo que, graças a Deus, fui pra arte marcial.

Não tive o contato presente do meu pai durante muito tempo, e graças a Deus fui para o mundo da luta, onde você tem respeito, amor ao próximo e gratidão, além de pessoas e mestres que via como exemplos para mim. Carrego lições desses caras até hoje.

Meu irmão não teve a referência que eu tive porque ele não foi da arte marcial. É como se fossem duas vias: eu vou para a arte marcial e meu irmão, não. Então vejo a falta aqui de uma figura paterna, a falta de uma figura de um homem com mais sabedoria, que fez diferença de mim para o meu irmão. Sou muito mais centrado, muito mais tranquilo.

Tenho essa filosofia realmente do jiu-jitsu, do samurai. Fui criando, lapidando essa identidade com todas essas referências.

Reprodução/Instagram

"Perdi dois anos da vida dos meus filhos"

Não demorei para perceber que Arraial do Cabo não me levaria longe. Decidi treinar em academias no Rio de Janeiro, eram três horas de viagem de ônibus. Precisava arrumar dinheiro com um, com outro, e dormir na casa de primos ou tios. Não queria ser um fardo para ninguém.

Trabalhei para bancar meus treinos e fazia o que aparecia: fui pedreiro, garçom, fiz passeios de barco na minha cidade. Nunca tive um estudo tão avançado, fui acabar a escola com 27 anos porque realmente optei pela luta. Nunca tive realmente um plano B.

Foi na época de garçom que me envolvi com a minha esposa. A gente se conhecia desde a adolescência. Para mim, foi paixão imediata, mas ela não deu muita bola e foi viver a vida. Depois de anos sem nos vermos, foi ela quem me mandou mensagem.

Desde aquela notificação, a gente nunca mais se separou. Meu filho mais velho é fruto de um relacionamento anterior dela. Comecei a criá-lo quando ele tinha um ano. Em dois meses, já estávamos morando juntos, em seis ficamos grávidos e vai fazer 11 anos que estamos juntos. Tê-la ao meu lado foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida.

Meu verdadeiro sacrifício sempre foi ficar longe da minha família.

Viajei aos Estados Unidos várias vezes. Na primeira, dormi sozinho na academia por um mês. Em outra, não tinha alojamento para mim e estava prestes a voltar para o Brasil, mas uma senhora que eu mal conhecia abriu a porta da casa dela para mim. Pude treinar e fiz uma participação muito boa no TUF (The Ultimate Fighter), tanto que fui contratado pelo UFC.

Uma das viagens, que seria de uma semana, durou cinco meses. Em todas essas vezes, minha esposa ficou com as crianças e me incentivou a correr atrás do meu sonho. Cheguei a levá-los para lá, morava de aluguel, mas veio a pandemia. Os eventos acabaram e me vi em uma situação financeira ruim que não poderia segurar minha família nos Estados Unidos. Então, eles voltaram para o Brasil e ficamos oito meses sem se ver.

Acho que perdi no mínimo dois anos da vida dos meus filhos. Tento recuperar esse tempo todos os dias quando estou com eles.

"Será que ainda sei ser pai?"

"Vou lutar com o joelho ruim, mesmo"

Minha esposa e meus filhos foram de vez para os Estados Unidos em 2021. Conseguimos dar entrada na nossa casa, que é uma quitinete praticamente, mas é onde a gente deu o passo inicial. Com o pé no chão.

Estávamos novamente juntos e eu tinha luta marcada contra o Brandon Royval. Fiquei trabalhando de Uber, minha esposa de faxineira, só que rompi o ligamento do joelho. Eu tinha que lutar porque só tínhamos um mês de contas pagas. Se não lutasse, o dinheiro não daria.

Falei: 'vou lutar com o joelho ruim, mesmo'.

Continuei treinando até que um dia caí no chão, o joelho não aguentava. Meu treinador me mandou levantar, eu disse que não conseguia e ele rebateu: 'se você não levantar, vou desmarcar a luta'. Levantei.

Segui me preparando, mas fiquei gripado uma semana antes da luta. Estava entregando comida e caiu um temporal. Viajei com medo de estar com covid-19, quando vi que não era e bati o peso para lutar, já agradeci. Teria dinheiro para pagar alguns meses do financiamento da casa.

Além de vencer por finalização, ganhei um bônus de performance da noite e foi acertado no octógono mesmo a minha luta com Moreno. A que seria pelo cinturão.

Só que fui ao médico, que examinou meu joelho e disse: 'você tem que operar e são seis meses de recuperação'. O UFC me ligou no dia que saí da cirurgia: 'vamos lutar pelo cinturão?'. Eu tive que abdicar dessa oportunidade.

Fiz reabilitação, voltei para a academia e treinei muito as pernas e a mente. Nove meses depois lutei com Alex Pérez, venci em um minuto e meio e mostrei para todos que estava pronto para disputar o cinturão.

Jeff Bottari/Zuffa LLC via Getty Images

"Se conhecerem minha história, vão gostar de mim"

A lesão no joelho ficou para trás. Estava, enfim, pronto para desafiar Brandon Moreno pelo cinturão.

Normalmente fico sozinho antes das lutas, mas naquele dia quis fazer diferente. Estive com minha esposa e meus filhos. A gente assistiu ao primeiro, ao segundo e ao quarto filmes da saga Rocky. Pulei o terceiro, que adoro, porque sabia que precisava ver Rocky IV.

O maior psicólogo da minha vida foi Rocky. Os filmes de Stallone me ajudaram a entender a dedicação necessária nesse esporte e que um lutador jamais pode ficar "civilizado".

O quarto filme me preparou para aquela noite. Dos 20 mil torcedores na arena, 19.950 eram mexicanos apoiando Moreno. Eu me senti como Rocky lutando contra Ivan Drago na Rússia.

Acho que foi como em um filme de Rocky: uma luta de bate, apanha, e de quem quer vencer mais. Fui para o quinto round tranquilo, só depois vi que estava 2x2, mas sentia que ganhava por 3x1. Então ele me deu um soco, a galera gritou. Deu outro, mais gritos, vindos de milhares de pessoas. Vi que tinha que resolver a luta e consegui.

Assim como Rocky não tinha nada contra os russos que o vaiavam após a vitória, eu não era rival daqueles mexicanos. Foi aí que veio o estalo: 'se vocês conhecerem minha história, vão gostar de mim'.

Eu precisava conquistar aquelas pessoas. Do mesmo jeito que Rocky fez as vaias russas se transformarem em aplausos.

"Está orgulhoso de mim agora, pai?"

Veio à tona na entrevista após ser campeão: "Você está orgulhoso de mim agora, pai?". Porque é muito fácil você se orgulhar do seu filho ser campeão mundial, né? Mas quanto você ajudou a chegar nesse momento? Fiquei feliz por saber que outras pessoas se sentiram representadas.

Alexandre Pantoja

Já deve fazer uns quatro anos desde a última vez que falei com meu pai. A última vez que nós conversamos foi por uma mensagem de WhatsApp. Eu expressei bastante raiva, bastante insatisfação com toda essa falta da presença dele para nós. Desde então, a gente não se fala.

Alexandre Pantoja

Meu pai tem mais contato com meus irmãos. Optei por não tolerar, a não ser que ele tivesse uma postura diferente. Talvez seja um grande erro meu, porque hoje tenho consciência que é muito difícil as pessoas mudarem, ainda mais quando mais velhas. Ele talvez nunca vá ser o que eu quisesse.

Alexandre Pantoja

Reprodução/Arquivo pessoal

"Sinto que virei uma referência para eles"

Minha mãe sempre será tudo na minha vida. Heroína, referência, aquela que me ensinou a amar.

Ela me ensinou muito através das músicas. Na infância, eu achava as canções chatas, mas hoje entendo totalmente. Djavan, Roberto Carlos, Elis Regina... Ouvi-los agora é como voltar ao passado. Poesia total.

Minha mãe nunca se deixou abalar pelas dificuldades. Ela continua amando a vida como sempre amou, chorando como sempre chorou, escutando as músicas que sempre ouviu. Hoje, eu me sinto como chefe da família ao lado dela e fico muito feliz por assumir essa posição. Sei que adquiri conhecimento e consigo passá-lo aos meus irmãos mais velhos.

Sinto que virei uma referência para eles. Não só pelo esporte e pela superação, mas pelo pai e pelo marido que sou. Eles sabem o quanto lutei para chegar onde estou.

Mike Roach/Getty

"Tudo que vivi não foi em vão"

Meu objetivo é virar um campeão dominante. Quero defender esse cinturão, no mínimo, cinco vezes.

Também tenho vontade de subir no ranking peso por peso e me tornar, com muito esforço, o melhor lutador do mundo. Já entrei agora como nono entre todas as categorias, tenho certeza de que com as defesas vou galgar posições.

Mais para frente, desejo virar treinador da American Top Team. Treinar outros lutadores profissionais e, em paralelo, cuidar da vida dos meus filhos, dar uma direção para eles.

Reforço que, graças a Deus, eu ganhei esse cinturão, porque tudo que vivi não foi em vão. Todos que me ajudaram fizeram a diferença para alguém que poderia não se tornar nada. Na minha vida, tive quem nunca me deixou olhar para um plano B. Eles sempre acreditaram no plano A, até mais do que eu.

Se eu perco esse título, nada disso ia ficar em evidência. Mas eu venço e essas pessoas ganham notoriedade. Para mim, isso é o mais importante.

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