Meu pai, o paciente

Minha História: campeão olímpico de vôlei de praia, Alison conta como o pai o fez a ver a vida de outra forma

Alison Cerutti Marcus Steinmeyer/UOL

Chovia muito na areia da praia de Copacabana quando a bola deslizou no punho do jogador italiano, o árbitro apitou o fim do jogo, e o nosso mundo, meu e do meu parceiro Bruno Schmidt, virou de ponta-cabeça.

Quando eu percebi que a batalha tinha acabado, eu me entreguei completamente e me deixei levar pela indescritível sensação de ser campeão olímpico pela primeira vez. Se o arbítro tivesse mandado voltar aquele ponto, se ele tivesse invertido a marcação e o jogo permanecesse em aberto, eu não teria nenhuma condição de seguir jogando. Eu estava acabado. Mas o erro do italiano foi confirmado, 21 a 17 pra gente: a medalha da Rio-2016 era nossa.

Eu corri de braços abertos contra a chuva e o vento frio da madrugada e me joguei no meio dos trinta amigos e parentes que saíram do Espírito Santo só para me ver chegar ao ponto mais alto do pódio olímpico. Eu abracei, eu fui abraçado, eu beijei minha namorada, que se tornaria a minha esposa, e perdi a noção do tempo, e a realidade pareceu uma cena de ficção.

Mas eu não pude abraçar uma pessoa. Uma pessoa que foi uma das maiores responsáveis por me permitir chegar ali.

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Minha história no vôlei de praia começou por volta de 1996, quando meu pai me levou para uma de suas caminhadas na areia da praia de Camburi, em Vitória, a capital capixaba. Ele gostava de se exercitar sentindo a brisa do mar no rosto.

Eu tinha 11 anos e era louco por futebol. Mas não tinha vaga na escolinha de futebol do Sesi, que ficava ao lado da minha casa, então minha mãe me matriculou nas aulas de vôlei. "Mas vôlei é esporte de meninas", eu protestei. Fiz birra, fiquei emburrado, mas fui às aulas mesmo assim.

Foi minha primeira vitória: o vôlei era realmente um esporte de meninas, pelo menos nos anos 90, no Espírito Santo. Naquela turma só tinham outros dois meninos além de mim. Meus hormônios pré-adolescentes acharam o máximo treinar perto das meninas. Ali eu fiz minhas primeiras amizades. E logo o vôlei virou o meu esporte.

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Às terças e quintas eu treinava na quadra; às segundas, quarta e sextas, treinava na areia, levado pelo meu pai, que aproveitava para fazer suas caminhadas vespertinas. A adolescência do meu pai não foi tão tranquila quanto a minha. Ele trabalhou na roça, dirigindo trator e capinando terrenos, desde muito cedo. Foi pra cidade em busca de outras oportunidades.

Trabalhava em uma loja de material de construção durante o dia e estudava em um curso de eletrotécnica à noite. Quando estava cansado durante o expediente, cochilava na caçamba da caminhonete que transportava cimento. Dessa forma, conseguiu dar uma vida mais sossegada para mim, minha irmã e nossa mãe.

Quando eu comecei a pensar em me tornar atleta, ele sempre teve a preocupação de me orientar a seguir com os estudos. "Podem tirar tudo de você", ele dizia, "menos o seu conhecimento."

Isso me levou a me dividir entre o esporte e a escola. Aos 16 anos, eu já viajava para competir e comecei a ser convocado para as seleções juvenis de vôlei. Primeiro a capixaba, depois a brasileira. Participava de competições estudantis e sonhava em me profissionalizar como atleta. Mas sabendo que o esporte é um caminho incerto, não abandonei outras opções.

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Quando eu tinha 17 anos, meu pai era dono de uma microempresa de serviços e equipamentos de telefonia. Ele me chamou a trabalhar com ele. Achei que, sendo filho do dono, minhas atividades se resumiriam a bater o ponto e, de vez em quando, ajudar em uma ou outra coisa.

Mas logo no começo, meu pai me colocou em uma mesa e espalhou por ela centenas de milhares de micropecinhas de placas telefônicas. Eu tinha que catalogar todas e separá-las em caixas organizadoras. "Você tá brincando comigo?", eu perguntei. Mas o velho não estava brincando, e eu levei mais de um mês naquele trabalho de organizar as pecinhas. Era um trabalho chato, metódico, repetitivo, mas que precisava ser feito. Eu tive muita raiva dele ali. Eu xinguei muito meu pai. Mas ele queria me ensinar uma lição, que eu só entenderia plenamente um tempo depois: o valor da persistência. E da paciência. A beleza da monotonia.

Meu pai talvez seja a pessoa mais paciente que eu já conheci. Eu nunca vi ele se irritar e querer jogar tudo pro alto, embora a vida tenha colocado na frente dele barreiras que poucas pessoas seriam capazes de encarar.

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O primeiro golpe aconteceu quando ele era um jovem senhor de 47 anos. Meu pai teve uma isquemia cerebral que deixou metade do seu corpo paralisado por cerca de um mês. Nessa época, nós morávamos em um prédio que não tinha elevador e precisamos mudar para a casa de uma tia porque meu pai não conseguia subir as escadas.

Foi a primeira vez que eu vi meu pai frágil, mas não foi a última. Ele suou muito em sessões intermináveis de fisioterapia, de manhã e de tarde, e logo conseguiu recuperar os movimentos e falar normalmente. Foi a primeira vez que eu vi de perto a magia da fisioterapia, mas não foi a última.

A carreira de um atleta amador iniciante, você sabe, não é fácil. Meu pai patrocinava minhas viagens para jogar o circuito brasileiro de vôlei de praia. Aquele dinheiro pagava tudo: passagem, hotel, alimentação. Mas depois que ele teve que fechar a empresa, me disse que a situação estava difícil e que não conseguiria mais me ajudar financeiramente. Eu me dei um prazo: jogaria as duas etapas seguintes e, se não conseguisse um patrocínio de verdade, desistiria da praia.

E eu consegui. Depois de vencer uma etapa no Recife, ganhei uma premiação de R$ 1.100. O Bruno me convidou para jogar com ele porque seu então parceiro se machucou e precisou operar o ombro. Ele tinha patrocínio. Em seis meses, entramos no ranking do circuito brasileiro. E fui convidado a treinar no Rio de Janeiro, com uma bolsa que dava para o aluguel, o pacote de telefone e internet e alguns móveis usados de brechó.

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Eu já não precisava da ajuda financeira do meu pai, mas sempre contei com sua orientação para tomar as decisões mais importantes da minha vida, como a de largar a faculdade para me dedicar completamente aos treinos. E em 2010, a coisa mais assustadora e inacreditável que poderia acontecer com um jogador de vôlei de praia aconteceu comigo: fui convidado a formar dupla com o campeão olímpico Emanuel Rego. Eu tive medo de aceitar o convite, não corresponder às expectativas e descobrir que eu não era tão bom assim quanto imaginava ser.

Mas meu pai me deu força e me incentivou a dizer sim ao Emanuel. A parceria vingou. Juntos, fomos medalhistas de prata na Olimpíada de Londres, em 2012.

Enquanto minha carreira decolava, a saúde do meu pai degringolava. Ele sempre teve problemas com tromboses, que começaram nas pernas e em algum momento subiram para os pulmões. Ele tinha dificuldade para respirar naturalmente e um dia descobriu que precisaria sempre ter a ajuda de um aparelho para ajudar a levar oxigênio para dentro do corpo. Ele, que sempre gostou de caminhar, teve que reduzir o ritmo porque se cansava muito rápido.

Por causa dessas limitações, nunca ia me ver jogar. E minha mãe também não, já que precisava ficar em casa para cuidar dele. Mas nós sempre nos falávamos, antes e depois dos jogos. Após cada competição, minha verdadeira vitória era pegar o avião, chegar em casa, abraçar meus pais e mostrar a eles o resultados das nossas escolhas.

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Um ano depois de Londres, comuniquei ao meu parceiro Emanuel que gostaria de voltar ao Espírito Santo para ficar mais perto dos meus pais, irmã e amigos. Nossa dupla foi desfeita e, para o novo ciclo olímpico, convidei o Bruno. Ele topou na hora e montamos em Vitória uma equipe para nos trazer a medalha dourada.

A preparação foi difícil. Dois anos antes dos Jogos, tive que fazer uma operação delicada no joelho, que me tirou de ação. Nos anos seguinte, quando estava no hotel, na véspera de voltar a jogar, tive uma crise de apendicite e precisei entrar na mesa de cirurgia outra vez. O medo era que essas cirurgias em sequência acabassem com nosso sonho olímpico, mas conseguimos a vaga e chegamos ao Rio como favoritos à medalha.

Em Copacabana, logo no terceiro jogo, outro percalço: torci o tornozelo em quadra e só consegui seguir jogando com a ajuda de uma botinha que imobilizou parcialmente meu pé. Vencemos, mas a dor me acompanhou durante toda aquela noite. E havia chance de eu não estar pronto nas oitavas de final contra uma dupla da Espanha.

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Nesses momentos de incerteza, eu lembrava do meu pai e das coisas que ele me ensinou. E lembrei das intermináveis sessões de fisioterapia que ele enfrentou para recuperar os movimentos do corpo depois de ter uma isquemia cerebral. Naquela época, meu pai levou um mês para ficar 100%. Eu teria 48 horas. Sem poder sair de casa, ele não estava por perto, mas suas palavras martelavam na minha mente a cada treino. "Paciência, Alison... calma, Alison..."

A mágica da fisioterapia recuperou meu tornozelo e me deixou pronto para pular sobre a areia de Copacabana outra vez. Naquele jogo contra a Espanha, fiz 31 pontos e ficamos mais perto do ouro.

Ser campeão olímpico é uma coisa de outro mundo. Se você nunca passou por isso, vou dar uma dica: durma bem antes de ser campeão olímpico. Porque eu fiquei dois dias seguidos sem dormir, no meio de entrevistas, campanhas publicitárias, festas e outros compromissos com patrocinadores. Em Vitória, fizemos uma carreata pela cidade. Só depois de tudo isso, depois de chegar ao topo do mundo, voltei pra casa, mostrei minha medalha ao meu pai e me perdi dentro do nosso abraço.

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Meu pai era um homem de poucas lágrimas. Eu só o vi chorar duas vezes na vida e uma delas foi um ano depois do Rio, quando ele foi ao meu casamento. A doença já o impedia quase totalmente de sair de casa, mas ele abriu uma exceção e nós montamos uma estrutura para ele entrar na igreja e me ver casar.

Alguns meses depois ele foi internado, com muita dificuldade de respirar. Eu fui ao hospital para visitar aquele paciente que eu conhecia tão bem, o homem mais paciente que já existiu, e ele estava com o mesmo olhar sereno de sempre. "Pai, obrigado por tudo o que você sempre fez por nós", eu disse a ele. "Não fiz mais do que a minha obrigação", ele respondeu.

Logo depois voltou para casa, recuperado da crise. Um dia, minha mãe levou ao quarto uma das muitas pílulas que ele tomava diariamente e foi buscar um copo d'água para ele ingerir o medicamento. Quando ela voltou, meu pai estava deitado, já sem vida. Ainda fui chamado às pressas e tentei ressuscitá-lo, mas aquela tinha sido a hora dele. Ele tinha 66 anos. Ele me tornou um campeão.

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Estarei na Olimpíada de Tóquio no ano que vem ao lado de meu novo parceiro, o paraibano Álvaro Filho. Será a minha primeira competição sem meu pai por perto. Meu pai, o paciente. Mas sei que de algum lugar ele estará me acompanhando. E me lembrando que, diante das maiores dificuldades, é preciso ter tranquilidade e calma, porque tudo tende a dar certo no final.

E mesmo se tudo der errado, se o time de lá fizer mais pontos que o time de cá, se a bola cair alguns centímetros distante de onde deveria, o senhor Abílio Cerutti vai estar no mesmo lugar, com o mesmo sorriso de sempre, me lembrando que existem coisas mais importantes na vida do que ganhar ou perder.

Lucas Lima/UOL

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